sexta-feira, 24 de junho de 2022

O BCE na encruzilhada da UE

 



OPINIÃO

O BCE na encruzilhada da UE

 

A UE só deixará de ser disfuncional (como foi na crise das dívidas soberanas e como o BCE está a ser agora) se der o passo seguinte na integração económica e monetária de ter um orçamento federal.

 


Susana Peralta

24 de Junho de 2022, 6:21

https://www.publico.pt/2022/06/24/opiniao/opiniao/bce-encruzilhada-ue-2011198

 

A Reserva Federal dos Estados Unidos aumentou a taxa de juro no início de março, em 0,25 pontos percentuais. Em maio, aumentou mais meio ponto e, em junho, outros 0,75 pontos. Também começou a vender títulos de dívida, começando assim a diminuir, de forma faseada, a carteira de 9 triliões de dólares de títulos de dívida que acumulou. O Banco Central de Inglaterra já aumentou a taxa de juro cinco vezes desde dezembro de 2021, que subiu de 0,1% para 1,25% em seis meses. O Banco do Canadá aumentou duas vezes a taxa de juro este ano. O Banco da Reserva da Austrália aumentou igualmente a taxa de juro, já este mês, em meio ponto percentual.

 

 

Estes aumentos têm em comum quebrarem recordes recentes. O aumento da Fed em maio foi o maior em mais de 20 anos. O australiano foi o primeiro em 12 anos. A taxa de juro inglesa está em máximos de 13 anos. São excecionais porque respondem à excecionalidade da maior inflação que as economias desenvolvidas conheceram desde os anos 90.

 

Não querendo adormecer as minhas leitoras e os meus leitores – especialmente quem passou a noite a festejar o merecido regresso do São João – recordo que a inflação é quase sempre provocada por um desequilíbrio da disponibilidade de moeda na economia. Subir as taxas de juro leva as pessoas e as empresas a pedir menos dinheiro emprestado e (talvez) poupar mais. Desacelerar a compra de títulos de dívida restringe a quantidade de dinheiro que o banco central injeta na economia. Ambas têm o objetivo de diminuir o dinheiro em circulação e, com isso, controlar a subida dos preços, em face da contração da oferta que tem várias causas e vai demorar a resolver.

 

A pandemia levou ao encerramento intermitente da indústria de países fundamentais às cadeias de valor globais como a China e a Índia e lançou a confusão no transporte marítimo, gerando estrangulamentos no aprovisionamento de empresas. A China continua com políticas de confinamento estritas. A invasão da Ucrânia pela Federação Russa garroteou o mercado de cereais e o de energia, sendo esta fundamental à indústria. Acresce a escassez de mão-de-obra em muitos setores, que também diminui a disponibilidade de bens e serviços para consumir.

 

O BCE tem sido titubeante. Esperou pelo dia 9 de junho para anunciar que ia descontinuar o seu programa de compra de ativos... a partir de 1 de julho. Na mesma data, anunciou que iria subir a taxa de juro, mas remeteu esse aumento para a reunião do mês de julho. Deixar a inflação descontrolada é uma má ideia por várias razões, das quais destacaria os efeitos desproporcionados que esta tem nas famílias mais pobres, como mostra o relatório Despesas Essenciais e Rendimento das Famílias: efeitos assimétricos da inflação, que publiquei em abril com o Bruno P. Carvalho e a Mariana Esteves.

 

Porque hesita o BCE? Basta ver o que aconteceu em poucos dias: a taxa de juro da dívida pública italiana atingiu o seu valor máximo dos últimos oito anos. No dia seguinte – ou seja, menos de uma semana depois de ter anunciado que ia finalmente fazer alguma coisa para contrariar a inflação na zona euro, o BCE reuniu-se de emergência e comunicou a criação de um novo mecanismo de compra de dívida, de contornos ainda desconhecidos. Bastou este anúncio para os juros da dívida de Itália voltarem a baixar.

 

O BCE deixou antever que este mecanismo envolverá sobretudo o reinvestimento dos euros resultantes do pagamento de juros e da própria dívida dos títulos que entretanto forem vencendo, o que obviamente limita a injeção de dinheiro na economia. Limita, mas não estanca. Por outro lado, agrava a imagem de hesitação do BCE, que durante meses nada fez, depois não fez, mas anunciou, para depois anunciar que afinal não era bem assim, ou seja, desdisse-se passada menos de uma semana.

 

O BCE está a tentar cumprir a dupla missão de controlar a inflação (parando de injetar euros na economia e subindo juros) e de não deixar o Euro entrar em crise (os países mais endividados preferem que o BCE compre dívida e não suba juros)

 

O problema do BCE é a famosa “fragmentação” do mercado da dívida na Zona Euro, que é como quem diz, o facto de as dívidas públicas de diferentes países pagarem diferentes taxas de juro. De facto, os países têm níveis de risco diferentes e por isso quem lhes empresta dinheiro querer remunerações que os reflita. Mais nenhum Banco Central tem este problema – são responsáveis pela política monetária de uma determinada moeda de um determinado país, que por sua vez emite dívida nessa moeda, à qual o mercado atribui um único nível de risco. Por isso, o BCE está a tentar cumprir a dupla missão de controlar a inflação (parando de injetar euros na economia e subindo juros) e de não deixar o Euro entrar em crise (os países mais endividados preferem que o BCE compre dívida e não suba juros).

 

Há duas formas de olharmos para esta quadratura do círculo. A primeira consiste em afirmar que os países teriam risco diferente sem união económica e monetária, e por isso devem resolver cada um os seus problemas. Esta ideia é falaciosa por muitas razões.

 

Em primeiro lugar, se os mercados perderem a confiança numa parte da dívida emitida em euros isso é mau para o projeto da moeda única, especialmente quando se trata de um gigante económico como a Itália (daí o BCE ter reagido a correr).

 

Em segundo lugar, se alguns países começarem a sair do euro, pior ainda.

 

Em terceiro lugar, se a crise levar os eleitorados a fazerem escolhas políticas que perigam o projeto europeu, é ver a ameaça da Rússia e ter medo.

 

Em quarto lugar, os países abdicaram da política monetária e esta tem consequências assimétricas, como se vê na reação dos países mais endividados. Logo, é normal haver medidas de políticas comuns que compensem essa perda de soberania.

 

Em quinto lugar, a união económica cria mobilidade de pessoas, empresas, lucros, mercadorias e serviços – o que limita a capacidade de cada país individualmente para cobrar impostos a certas empresas e indivíduos que têm mais facilidade em aproveitar as inúmeras oportunidades de exercerem a sua atividade económica em outros países (o que é ótimo) e de explorarem as diferenças tributárias para pagarem menos impostos (o que é péssimo).

 

Em sexto lugar, para implementar a agenda digital e de neutralidade carbónica da UE, os países têm diferentes necessidades de despesa pública em infraestrutura, porque estão em estádios diferentes do seu desenvolvimento, pelo que alguma folga orçamental é necessária.

 

A forma razoável de olhar para isto é perceber que a UE só deixará de ser disfuncional (como foi na crise das dívidas soberanas e como o BCE está a ser agora) se der o passo seguinte na integração económica e monetária de ter um orçamento federal. Este pode revestir-se de maior despesa direta da União, de dívida comum, ou de um regime de transferências da União para os Estados-membros, mais robusto, que corrija parcialmente as enormes assimetrias. Qualquer das opções tem de ser financiada com impostos europeus, como os verdes ou digitais (na calha) ou, quem sabe, sobre a riqueza (isto já sou eu a sonhar).

 

A boa notícia é que a UE tem em curso um debate sobre a sua governança fiscal e económica, que foi retomado depois de ter sido suspenso devido à pandemia, e que o aumento do endividamento de todos os países que esta causou só veio tornar mais urgente. O eventual alargamento futuro aos Balcãs Ocidentais e à Ucrânia torna ainda mais premente a necessidade de reformarmos a nossa União.

 

Nos EUA, cerca de 55% da despesa pública é realizada pelo governo federal, que cobra 64% da receita fiscal (e transfere parte da mesma para os estados para comparticipar os respetivos gastos). A UE não é uma federação, só que é demasiado parecida – com a livre circulação e a moeda única – para continuarmos a achar normal que o orçamento comunitário de 2019 representasse apenas 2% do total combinado de despesa pública dos Estados-membros.

 

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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