terça-feira, 21 de junho de 2022

Nova crise da dívida: as semelhanças e diferenças da situação actual

 


DÍVIDA PÚBLICA

Nova crise da dívida: as semelhanças e diferenças da situação actual

 

As subidas das taxas de juro da dívida registadas nas últimas semanas puseram o país a pensar no risco de regresso de uma crise semelhante à vivida no início da década passada. A actual situação tem semelhanças, mas também diversas diferenças.

 

Sérgio Aníbal

18 de Junho de 2022, 6:58

https://www.publico.pt/2022/06/18/economia/noticia/nova-crise-divida-semelhancas-diferencas-situacao-actual-2010465

 

Subidas das taxas de juro da dívida, atenção focada nos países periféricos e olhos postos nas ajudas que possam vir a ser dadas pelo BCE. Na última semana, Portugal voltou a sentir, mesmo que de forma ainda relativamente suave, o ambiente de tensão a que se assistiu, no início da década passada, durante aquela que acabou por ficar conhecida como a crise das dívidas soberanas.

 

O Banco Central Europeu (BCE), a entidade que muitos consideram ter evitado a ruptura da zona euro, começou, por causa do regresso da inflação, a retirar rapidamente as suas ajudas, anunciando subidas de taxas e colocando um ponto final nas compras líquidas de dívida pública que vinha fazendo quase ininterruptamente já desde 2015. E o resultado foi uma subida rápida das taxas de juro da dívida pública de todos os países da zona euro, com especial destaque nos suspeitos do costume: os países classificados como periféricos, que estão no Sul da Europa e que têm níveis acumulados de dívida mais elevados. Portugal é, como em 2010, um desses países.

 

Em comparação com o período em que a crise anterior começou a dar os sinais, há no entanto, para além de algumas semelhanças, também diferenças importantes na situação que se vive em Portugal e no resto da zona euro. O suficiente para que, no mínimo, não se possa dar como um dado adquirido que os sinais de tensão a que agora se assiste nos mercados são o suficiente para empurrar o país para uma crise igual à que trouxe a troika a Portugal em 2011.

 

Dívida ainda a níveis elevados

O primeiro indicador para onde se olha neste tipo de crise é, claro, o rácio da dívida pública no PIB. E neste capítulo, quando se faz simplesmente uma comparação entre o nível registado em 2010 – quando os países periféricos, incluindo Portugal, começaram a ser pressionados pelos mercados da dívida – e o nível que se verifica agora, a verdade é que Portugal está pior. Em 2010, a dívida pública estava situada em 100,2% do PIB. Agora, chegou ao final de 2021 com este indicador nos 127,4%.

 

Este valor mais alto é a consequência de um agravamento muito acentuado do rácio da dívida no PIB no auge da crise, entre 2011 e 2014, quando a economia se contraiu bastante e, do novo aumento registado em 2020 quando o Estado foi chamado a responder aos efeitos da pandemia, eliminando de uma só vez a diminuição progressiva da dívida que tinha ocorrido entre 2014 e 2020.

 

No entanto, há algumas características na actual dívida pública que podem torná-la mais aceitável a quem tenta perceber se o país será capaz de cumprir os seus compromissos ao longo dos próximos anos ou se chega, como em 2011, a uma situação de ruptura. Durante os últimos anos, aproveitando os níveis historicamente baixos das taxas de juro conseguidas nas novas emissões, o Estado português foi não só acumulando um stock de dívida muito alargado a taxas de juro fixas extremamente baixas (algumas mesmo negativas) como também aumentou o prazo médio da dívida. O que isto significa é que, mesmo perante subidas rápidas das taxas de juro exigidas pelos mercados como as que se estão a verificar agora, os encargos do Estado com o pagamento de juros tendem a subir de forma bem mais moderada, dando ao país mais tempo para resistir a um aumento da pressão dos mercados.

 

Em 2021, a despesa com juros suportada pelo Estado correspondeu a 2,4% do PIB, o valor mais baixo de que há registo desde pelo menos 1995, e que é mais favorável do que os 2,9% de 2010 e que os 4,3% para que subiu rapidamente em 2011.

 

Dívida privada mais baixa

A situação que se vive ao nível do endividamento privado é também muito importante para avaliar a capacidade do país para resistir a uma escalada das taxas de juro. A este nível, fruto da desalavancagem de dívida que tem vindo a ser feita por empresas, famílias e bancos desde a crise anterior, o espaço de manobra é, à partida, um pouco maior.

 

Em 2020, com a pandemia, o nível de endividamento das empresas também voltou a aumentar, já que em diversos sectores estas foram obrigadas a recorrer, perante a quebra brusca de actividade, às linhas de crédito e às moratórias para não fecharem portas. Ainda assim, neste caso, o aumento do rácio da dívida das empresas não foi o suficiente para eliminar a descida progressiva que se verificou ao longo de toda a década anterior.

 

Em 2010, a dívida das empresas estava acima dos 140% do PIB, enquanto no final do ano passado se situava nos 121,9%.

 

É um número ainda elevado, um dos mais altos na zona euro, mas que dá às empresas portuguesas um pouco mais de margem para enfrentar um cenário de agravamento dos custos de financiamento.

 

Nas famílias, a tendência tem vindo a ser também de redução progressiva dos níveis de endividamento, que se mantém ainda assim a níveis elevados quando comparados com a média europeia.

 

No total, a economia portuguesa conseguiu manter – desde que em 2011 a troika a forçou a apertar radicalmente o consumo e o investimento – um muito maior equilíbrio das suas contas externas, quando comparado com o que se registava em 2010. Nesse ano, o défice da balança corrente chegou aos 10,3% do PIB, enquanto em 2021 se ficou pelos 1,1%, tendo o saldo sido positivo entre 2013 e 2019.

 

O aumento do peso das exportações na economia, com uma grande ajuda do turismo, é o motivo para esta situação global de maior equilíbrio.

 

Riscos de crise no sector bancário

Um dos maiores problemas sentidos durante a crise do euro do início da década passada foi a forte interligação entre a situação financeira dos bancos e o estado das finanças públicas. A desvalorização abrupta dos títulos de dívida pública penalizou as contas dos bancos que tinham esses títulos em grandes quantidades. O desequilíbrio financeiro em que caíram, ajudado pela crise económica e pela a escalada dos custos de financiamento no exterior, forçou por sua vez os Estados a terem de intervir com recurso ao orçamento, agravando os níveis de dívida pública de forma muito significativa.

 

O ressurgimento de problemas no sector bancário seria, sem dúvida, motivo para colocar Portugal muito perto de uma crise semelhante à anterior.

 

Sem surpresa, tendo em conta o impacto nas contas públicas que os bancos têm vindo a ter, assistiu-se nos últimos anos a uma redução importante dos riscos assumidos pelo sector, com uma maior exigência relativamente aos rácios de capital e à capacidade de resistência a novas crises.

 

Ainda assim, apesar da melhoria dos últimos anos, indicadores como os do crédito malparado ou da exposição à dívida soberano, continuam a níveis elevados quando comparados com a média europeia, algo que pode ser preocupante num cenário de subida das taxas de juro.

 

De acordo com a Autoridade Bancária Europeia, Portugal era, em Junho de 2021, o segundo país da UE (apenas atrás da Polónia) com um nível de exposição dos bancos à dívida pública (em percentagem dos seus activos) mais elevado. E, num relatório publicado este mês, a agência de rating Moody’s previu que, no actual cenário de subida de taxas de juro, “os bancos em Itália, Espanha e Portugal fiquem mais expostos a potenciais aumentos do crédito malparado”, algo que no entanto também é compensado pelo efeito positivo nas margens que a subida dos juros nos empréstimos a taxa variável pode provocar nos bancos.

 

Risco de entrada em recessão

Quando uma economia entra em recessão, as finanças públicas ressentem-se muito rapidamente. Nos meses antes da chegada da troika (e nos anos a seguir à sua chegada) foram muito evidentes as dificuldades que a redução do nível de actividade económica gerou na gestão orçamental.

 

Agora, pelo menos para já, a economia portuguesa parece estar a resistir. No primeiro trimestre do ano foi a que mais cresceu em toda a União Europeia, lançando a variação anual do PIB já para valores acima de 6%.

 

No entanto, inevitavelmente, a guerra na Ucrânia – com os efeitos que está a ter na confiança dos consumidores, na escalada dos preços e na procura internacional – vai acabar, provavelmente já a partir do segundo trimestre do ano, por pesar na actividade económica. A evoluir positivamente parece, ainda assim, estar o sector do turismo, o mais afectado pela pandemia, que está a conseguir voltar, durante o ano de 2022, aos níveis recorde que registava em 2019.

 

Percepção de Portugal nos mercados

Para além dos indicadores económicos, muito importante para a evolução das taxas de juro da dívida portuguesa é a percepção que existe nos mercados em relação à forma como o país será capaz de enfrentar as dificuldades.

 

Em 2010, no início da crise do euro, os chamados países periféricos foram colocados pelos investidores internacionais todos no mesmo barco, sem distinções marcadas entre eles. E, por isso, a enorme desconfiança gerada em relação à Grécia rapidamente se contagiou aos outros países do Sul da Europa.

 

Portugal, neste capítulo, passou desde muito cedo a ser visto como o país que se iria seguir à Grécia e à Irlanda no pedido de resgate à troika e essa profecia dos mercados acabou mesmo por se concretizar.

 

Agora, à custa de políticas orçamentais restritivas ao longo da última década, que conduziram a reduções do rácio da dívida em todos os anos desde 2014, excepto 2020, e a uma situação de excedente orçamental em 2019, Portugal parece ter conseguido melhorar a imagem que internacionalmente têm das suas finanças públicas.

 

É isso que explica, por exemplo, que as taxas de juro da dívida portuguesa estejam agora bem abaixo da Itália e da Espanha, apesar da dívida do país vizinho ser ainda menor. E é também por isso que entidades como a Comissão Europeia e o FMI prevêem que, nos próximos anos, a dívida pública portuguesa passe a ficar abaixo da espanhola e da belga, abandonando o top 4 europeu.

 

O problema destas percepções é que, como mostrou a crise anterior, podem mudar de um dia para o outro, bastando para isso uma análise mais negativa de uma agência de rating internacional.

 

Políticas diferentes à escala europeia

A grande diferença entre a situação actual, contudo, está na forma como se espera que a Europa venha a actuar perante uma nova crise. Em 2010, os líderes europeus descobriram em choque que o facto de terem uma moeda única não protegia os Estados-membros mais frágeis de serem atacados pelos mercados.

 

Apesar das enormes hesitações na forma de responder a essa fragilidade, que ainda está longe de estar resolvida, a verdade é que foram sendo criados, cimeira após cimeira e sob a pressão de uma ruptura da zona euro, instrumentos que agora, não só podem ser usados num cenário de crise, como, se espera, cheguem logo à partida para dissuadir os mercados de apostar tudo no ataque a um determinado país.

 

A forma como a Europa inovou, já durante a pandemia, com o plano de recuperação e resiliência financiado por uma emissão conjunta de dívida, foi o mais recente sinal de uma predisposição para agir de forma diferente à anterior crise.

 

Para além disso, também o Banco Central Europeu parece definitivamente ter aprendido as suas lições, assumindo cada vez mais o papel de credor de último recurso. Na anterior crise, foi preciso esperar pelo discurso de Mario Draghi em 2012, garantido fazer “tudo o que for preciso” para salvar o euro, para que os problemas se começassem a resolver.

 

Agora, mesmo numa altura em que está a subir as taxas para travar a inflação, bastaram os primeiros sinais de pressão nos mercados da dívida para o BCE se disponibilizar para dar um apoio extra aos países que sentirem mais dificuldades.

 

De qualquer modo, uma coisa é evidente na história da economia mundial. Os países estão sempre bem preparados para enfrentar crises como as anteriores, mas acabam por ser surpreendidos por crises com características novas.

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