DÍVIDA PÚBLICA
Nova crise da dívida: as semelhanças e diferenças da
situação actual
As subidas das taxas de juro da dívida registadas nas
últimas semanas puseram o país a pensar no risco de regresso de uma crise
semelhante à vivida no início da década passada. A actual situação tem
semelhanças, mas também diversas diferenças.
Sérgio Aníbal
18 de Junho de
2022, 6:58
Subidas das taxas
de juro da dívida, atenção focada nos países periféricos e olhos postos nas
ajudas que possam vir a ser dadas pelo BCE. Na última semana, Portugal voltou a
sentir, mesmo que de forma ainda relativamente suave, o ambiente de tensão a
que se assistiu, no início da década passada, durante aquela que acabou por
ficar conhecida como a crise das dívidas soberanas.
O Banco Central
Europeu (BCE), a entidade que muitos consideram ter evitado a ruptura da zona
euro, começou, por causa do regresso da inflação, a retirar rapidamente as suas
ajudas, anunciando subidas de taxas e colocando um ponto final nas compras
líquidas de dívida pública que vinha fazendo quase ininterruptamente já desde
2015. E o resultado foi uma subida rápida das taxas de juro da dívida pública
de todos os países da zona euro, com especial destaque nos suspeitos do
costume: os países classificados como periféricos, que estão no Sul da Europa e
que têm níveis acumulados de dívida mais elevados. Portugal é, como em 2010, um
desses países.
Em comparação com
o período em que a crise anterior começou a dar os sinais, há no entanto, para
além de algumas semelhanças, também diferenças importantes na situação que se
vive em Portugal e no resto da zona euro. O suficiente para que, no mínimo, não
se possa dar como um dado adquirido que os sinais de tensão a que agora se
assiste nos mercados são o suficiente para empurrar o país para uma crise igual
à que trouxe a troika a Portugal em 2011.
Dívida ainda a
níveis elevados
O primeiro
indicador para onde se olha neste tipo de crise é, claro, o rácio da dívida
pública no PIB. E neste capítulo, quando se faz simplesmente uma comparação
entre o nível registado em 2010 – quando os países periféricos, incluindo
Portugal, começaram a ser pressionados pelos mercados da dívida – e o nível que
se verifica agora, a verdade é que Portugal está pior. Em 2010, a dívida
pública estava situada em 100,2% do PIB. Agora, chegou ao final de 2021 com
este indicador nos 127,4%.
Este valor mais
alto é a consequência de um agravamento muito acentuado do rácio da dívida no
PIB no auge da crise, entre 2011 e 2014, quando a economia se contraiu bastante
e, do novo aumento registado em 2020 quando o Estado foi chamado a responder
aos efeitos da pandemia, eliminando de uma só vez a diminuição progressiva da
dívida que tinha ocorrido entre 2014 e 2020.
No entanto, há
algumas características na actual dívida pública que podem torná-la mais
aceitável a quem tenta perceber se o país será capaz de cumprir os seus
compromissos ao longo dos próximos anos ou se chega, como em 2011, a uma
situação de ruptura. Durante os últimos anos, aproveitando os níveis
historicamente baixos das taxas de juro conseguidas nas novas emissões, o
Estado português foi não só acumulando um stock de dívida muito alargado a
taxas de juro fixas extremamente baixas (algumas mesmo negativas) como também
aumentou o prazo médio da dívida. O que isto significa é que, mesmo perante
subidas rápidas das taxas de juro exigidas pelos mercados como as que se estão
a verificar agora, os encargos do Estado com o pagamento de juros tendem a
subir de forma bem mais moderada, dando ao país mais tempo para resistir a um
aumento da pressão dos mercados.
Em 2021, a
despesa com juros suportada pelo Estado correspondeu a 2,4% do PIB, o valor
mais baixo de que há registo desde pelo menos 1995, e que é mais favorável do
que os 2,9% de 2010 e que os 4,3% para que subiu rapidamente em 2011.
Dívida privada
mais baixa
A situação que se
vive ao nível do endividamento privado é também muito importante para avaliar a
capacidade do país para resistir a uma escalada das taxas de juro. A este
nível, fruto da desalavancagem de dívida que tem vindo a ser feita por
empresas, famílias e bancos desde a crise anterior, o espaço de manobra é, à
partida, um pouco maior.
Em 2020, com a
pandemia, o nível de endividamento das empresas também voltou a aumentar, já
que em diversos sectores estas foram obrigadas a recorrer, perante a quebra
brusca de actividade, às linhas de crédito e às moratórias para não fecharem
portas. Ainda assim, neste caso, o aumento do rácio da dívida das empresas não
foi o suficiente para eliminar a descida progressiva que se verificou ao longo
de toda a década anterior.
Em 2010, a dívida
das empresas estava acima dos 140% do PIB, enquanto no final do ano passado se
situava nos 121,9%.
É um número ainda
elevado, um dos mais altos na zona euro, mas que dá às empresas portuguesas um
pouco mais de margem para enfrentar um cenário de agravamento dos custos de
financiamento.
Nas famílias, a
tendência tem vindo a ser também de redução progressiva dos níveis de
endividamento, que se mantém ainda assim a níveis elevados quando comparados
com a média europeia.
No total, a
economia portuguesa conseguiu manter – desde que em 2011 a troika a forçou a
apertar radicalmente o consumo e o investimento – um muito maior equilíbrio das
suas contas externas, quando comparado com o que se registava em 2010. Nesse
ano, o défice da balança corrente chegou aos 10,3% do PIB, enquanto em 2021 se
ficou pelos 1,1%, tendo o saldo sido positivo entre 2013 e 2019.
O aumento do peso
das exportações na economia, com uma grande ajuda do turismo, é o motivo para
esta situação global de maior equilíbrio.
Riscos de crise
no sector bancário
Um dos maiores
problemas sentidos durante a crise do euro do início da década passada foi a
forte interligação entre a situação financeira dos bancos e o estado das
finanças públicas. A desvalorização abrupta dos títulos de dívida pública
penalizou as contas dos bancos que tinham esses títulos em grandes quantidades.
O desequilíbrio financeiro em que caíram, ajudado pela crise económica e pela a
escalada dos custos de financiamento no exterior, forçou por sua vez os Estados
a terem de intervir com recurso ao orçamento, agravando os níveis de dívida
pública de forma muito significativa.
O ressurgimento
de problemas no sector bancário seria, sem dúvida, motivo para colocar Portugal
muito perto de uma crise semelhante à anterior.
Sem surpresa,
tendo em conta o impacto nas contas públicas que os bancos têm vindo a ter,
assistiu-se nos últimos anos a uma redução importante dos riscos assumidos pelo
sector, com uma maior exigência relativamente aos rácios de capital e à
capacidade de resistência a novas crises.
Ainda assim,
apesar da melhoria dos últimos anos, indicadores como os do crédito malparado
ou da exposição à dívida soberano, continuam a níveis elevados quando
comparados com a média europeia, algo que pode ser preocupante num cenário de
subida das taxas de juro.
De acordo com a
Autoridade Bancária Europeia, Portugal era, em Junho de 2021, o segundo país da
UE (apenas atrás da Polónia) com um nível de exposição dos bancos à dívida
pública (em percentagem dos seus activos) mais elevado. E, num relatório
publicado este mês, a agência de rating Moody’s previu que, no actual cenário
de subida de taxas de juro, “os bancos em Itália, Espanha e Portugal fiquem
mais expostos a potenciais aumentos do crédito malparado”, algo que no entanto
também é compensado pelo efeito positivo nas margens que a subida dos juros nos
empréstimos a taxa variável pode provocar nos bancos.
Risco de entrada
em recessão
Quando uma
economia entra em recessão, as finanças públicas ressentem-se muito
rapidamente. Nos meses antes da chegada da troika (e nos anos a seguir à sua
chegada) foram muito evidentes as dificuldades que a redução do nível de
actividade económica gerou na gestão orçamental.
Agora, pelo menos
para já, a economia portuguesa parece estar a resistir. No primeiro trimestre
do ano foi a que mais cresceu em toda a União Europeia, lançando a variação
anual do PIB já para valores acima de 6%.
No entanto,
inevitavelmente, a guerra na Ucrânia – com os efeitos que está a ter na
confiança dos consumidores, na escalada dos preços e na procura internacional –
vai acabar, provavelmente já a partir do segundo trimestre do ano, por pesar na
actividade económica. A evoluir positivamente parece, ainda assim, estar o
sector do turismo, o mais afectado pela pandemia, que está a conseguir voltar,
durante o ano de 2022, aos níveis recorde que registava em 2019.
Percepção de
Portugal nos mercados
Para além dos
indicadores económicos, muito importante para a evolução das taxas de juro da dívida
portuguesa é a percepção que existe nos mercados em relação à forma como o país
será capaz de enfrentar as dificuldades.
Em 2010, no
início da crise do euro, os chamados países periféricos foram colocados pelos
investidores internacionais todos no mesmo barco, sem distinções marcadas entre
eles. E, por isso, a enorme desconfiança gerada em relação à Grécia rapidamente
se contagiou aos outros países do Sul da Europa.
Portugal, neste
capítulo, passou desde muito cedo a ser visto como o país que se iria seguir à
Grécia e à Irlanda no pedido de resgate à troika e essa profecia dos mercados
acabou mesmo por se concretizar.
Agora, à custa de
políticas orçamentais restritivas ao longo da última década, que conduziram a
reduções do rácio da dívida em todos os anos desde 2014, excepto 2020, e a uma
situação de excedente orçamental em 2019, Portugal parece ter conseguido
melhorar a imagem que internacionalmente têm das suas finanças públicas.
É isso que
explica, por exemplo, que as taxas de juro da dívida portuguesa estejam agora
bem abaixo da Itália e da Espanha, apesar da dívida do país vizinho ser ainda
menor. E é também por isso que entidades como a Comissão Europeia e o FMI
prevêem que, nos próximos anos, a dívida pública portuguesa passe a ficar
abaixo da espanhola e da belga, abandonando o top 4 europeu.
O problema destas
percepções é que, como mostrou a crise anterior, podem mudar de um dia para o
outro, bastando para isso uma análise mais negativa de uma agência de rating
internacional.
Políticas
diferentes à escala europeia
A grande
diferença entre a situação actual, contudo, está na forma como se espera que a
Europa venha a actuar perante uma nova crise. Em 2010, os líderes europeus
descobriram em choque que o facto de terem uma moeda única não protegia os
Estados-membros mais frágeis de serem atacados pelos mercados.
Apesar das
enormes hesitações na forma de responder a essa fragilidade, que ainda está
longe de estar resolvida, a verdade é que foram sendo criados, cimeira após
cimeira e sob a pressão de uma ruptura da zona euro, instrumentos que agora,
não só podem ser usados num cenário de crise, como, se espera, cheguem logo à
partida para dissuadir os mercados de apostar tudo no ataque a um determinado
país.
A forma como a
Europa inovou, já durante a pandemia, com o plano de recuperação e resiliência
financiado por uma emissão conjunta de dívida, foi o mais recente sinal de uma
predisposição para agir de forma diferente à anterior crise.
Para além disso,
também o Banco Central Europeu parece definitivamente ter aprendido as suas
lições, assumindo cada vez mais o papel de credor de último recurso. Na
anterior crise, foi preciso esperar pelo discurso de Mario Draghi em 2012,
garantido fazer “tudo o que for preciso” para salvar o euro, para que os
problemas se começassem a resolver.
Agora, mesmo numa
altura em que está a subir as taxas para travar a inflação, bastaram os
primeiros sinais de pressão nos mercados da dívida para o BCE se disponibilizar
para dar um apoio extra aos países que sentirem mais dificuldades.
De qualquer modo,
uma coisa é evidente na história da economia mundial. Os países estão sempre
bem preparados para enfrentar crises como as anteriores, mas acabam por ser
surpreendidos por crises com características novas.

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