Tempos interessantes (2)
O erro monumental de Putin foi comprovar que os países
encostados à Rússia precisam de uma defesa sólida, porque têm um agressor à
porta. E não há alternativa a essa defesa vital que não seja a NATO
José Pacheco
Pereira
12 de Março de
2022, 5:52
https://www.publico.pt/2022/03/12/opiniao/opiniao/tempos-interessantes-2-1998471
No final de 2021,
na sua conferência de imprensa anual, respondendo a uma jornalista da Sky News,
Putin deu uma explicação detalhada das razões de queixa que a Rússia entendia
que tinha e, ao mesmo tempo, recusou comprometer-se a não atacar a Ucrânia.
Mais tarde, mentiu várias vezes sobre a iminência do ataque à Ucrânia, mas, no
essencial, expôs com clareza a sua posição, que, tomada de forma abstracta, não
é desprovida de racionalidade.
Diz Putin que
“não é uma questão de história, mas uma questão de segurança”, e toda a
resposta anda à volta daquilo que considera o sentimento de insegurança da
Federação Russa: “A NATO deu-nos uma garantia nos anos 90 de que não viriam
para leste e enganaram-nos”, colocaram os seus sistemas de ataque na Roménia e
na Polónia e, se a Ucrânia entrar para a NATO, farão o mesmo à nossa porta.
Resumindo: “Não fomos para as fronteiras dos EUA”, nem para o Canadá, nem para
o México (revelou saber alguma coisa sobre a guerra entre os EUA e o México e a
conquista do Texas e da Califórnia do Sul), mas a NATO avançou “cinco vezes”
para a nossa porta. Presumo que se refere ao alargamento para a Polónia,
Roménia, os países bálticos e a Bulgária, ocorrido entre 1999 e acelerando-se
em 2014, quando a Federação Russa anexou a Crimeia e apoiou os separatistas
pró-russos. 2014 é o ano-chave, e a situação ucraniana, em termos de política
interna e externa, a mãe e o pai da actual situação.
Nestes anos, de
1999 a 2014, a política dos EUA e da NATO tem uma contradição de fundo: ao
mesmo tempo que a sua “união” se enfraquecia, com a falta de disponibilidade
europeia para suportar custos da sua própria defesa, e a errância da política
americana, para além de aventuras nos Balcãs e na Líbia, foi-se aceitando uma
expansão para leste que tinha que ser vista como ameaçadora para a Federação
Russa. Por isso, olhando pelos olhos de Putin, há muitas razões para
preocupação, mas nenhuma para a invasão.
A resposta
completamente desproporcionada muda os termos da questão, e transforma a
insegurança invocada com a expansão da NATO num pretexto, e não numa razão. E
aqui é que é preciso ver a situação com os olhos dos países do Leste da Europa
com fronteira com a Federação Russa. Porque, da mesma maneira que a invasão da
Ucrânia retira razão aos argumentos invocados por Putin, dá toda a razão às
preocupações de segurança de países como as nações do Báltico, a Polónia e a
Roménia, que já fazem parte da NATO, e outros países como a Geórgia e a
Ucrânia, que tinham pedido para aderir. O erro monumental de Putin, que
fragiliza mais do que nunca a situação de segurança da Federação Russa, é que
não há hoje dúvidas para ninguém de que os países encostados à Rússia precisam
de uma defesa sólida porque têm um agressor à porta e não há alternativa a essa
defesa vital para a sua soberania que não seja a NATO.
Numa NATO
fragilizada por Trump, pelo comodismo inconsciente da União Europeia – a
começar pelo seu eleitorado e a acabar na burocracia europeia – e pela
dependência energética da Rússia – um erro estratégico colossal –, a
organização da Guerra Fria recebeu uma forte dose de legitimidade política. Os
chineses compreenderam isso, e Putin começa também a percebê-lo, mas está
encurralado nos seus próprios erros e não tem saída para o buraco em que se
meteu.
Mais: uma
“vitória” militar na Ucrânia seguida de uma ocupação de tipo colonial é como
uma gangrena: não fecha e envenena tudo à sua volta. O grau de violência destes
dias é o de uma guerra convencional, transmitindo pela primeira vez na
televisão o impacte nas pessoas comuns a que chamamos civis, mas a violência
que se passará numa ocupação é tudo menos convencional. É uma violência íntima,
próxima, vingativa, de uma guerra civil. Por isso, esta ferida não se pode
fechar sem uma humilhação russa, e uma grande nação humilhada é perigosa. O que
os ucranianos já fizeram, mesmo descontando a desinformação que anda à solta
dos dois lados, salvou a “honra” da nação, e esta noção não é abstracta para os
povos e os indivíduos, é até fortíssima, que o digam os franceses em 1940. O
pior está mesmo para vir.
Estamos em
“tempos interessantes”, e o desejo de que os vivamos é mesmo uma maldição.
O autor é
colunista do PÚBLICO
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