OPINIÃO
Fanatismo
É estranho que tantas pessoas que não cessaram de
combater no passado qualquer ideia de defesa europeia surjam agora a considerar
que uma das culpas da guerra na Ucrânia reside no facto de a Europa não ter
defesa própria! Não há maior cinismo! Não há mais grosseiro oportunismo!
António Barreto
12 de Março de
2022, 1:13
https://www.publico.pt/2022/03/12/opiniao/opiniao/fanatismo-1998516
A Rússia sempre
foi assim. Imperial e autocrata. E sempre será. Há para isso razões históricas,
geográficas, económicas, étnicas, religiosas e outras. E os dirigentes russos
nunca quiseram contrariá-las. Mais do que qualquer outro país europeu, a Rússia
sempre viveu com tortura, escravidão, servidão e ditadura. Com este passado, a
Rússia sempre foi brutalmente violenta. Tanto nos seus tempos de “esquerda”
como nos de “direita”. Internamente opressiva e externamente opressora.
Poder-se-ia
pensar que na Europa já não se bombardeavam bairros residenciais, escolas,
hospitais, fábricas e teatros. E que já não se cometiam crimes de guerra. Quem
assim pensava, desengane-se: esquecia-se da Rússia. O que esta faz na Ucrânia,
agressão mais invasão mais destruição, foi o que sempre fez, tanto no
estrangeiro como dentro das suas fronteiras.
Depois e apesar
do Pacto entre a Alemanha nazi e a União Soviética, de 1939 a 1941, o heroísmo
do Exército Vermelho, de 1941 a 1945, ficou para a história, mas só porque
também a sua própria vida estava em causa. Mas ainda mais, para a crónica dos
anos, ficou um dos seus perenes contributos para a história dos direitos
humanos, o gulag. Comparável ou igual, ao que dizem, ao katorga czarista, uma
rede de prisões e de estabelecimentos de trabalhos forçados que se estendia por
toda a Rússia e que tinha os presos políticos como principais clientes.
Com a Rússia, não
há entendimentos permanentes, nem cooperação, a não ser por necessidade, como
aconteceu nos anos oitenta, quando perdeu influência no mundo, foi
economicamente derrotada, foi cientificamente ultrapassada, atrasou-se militarmente
e deixou fugir alguns dos seus aliados por esse mundo fora. No essencial, a
Rússia tem de ser contida pela força, pela eficácia económica, pela
superioridade da ciência, pela cultura e pela política. E pela lei
internacional, com certeza, que a Rússia só respeita se a isso for forçada.
Esta é a Rússia
que está em guerra e que invadiu a Ucrânia. Esta é a Rússia que suscita a
complacência de muitas das esquerdas europeias, até de muitas direitas. E de
intelectuais, universitários e jornalistas. Para muitas destas pessoas, a
culpa, a responsabilidade e a autoria desta agressão, deste verdadeiro
massacre, pertencem por inteiro à NATO, às democracias ocidentais, à União
Europeia e sobretudo aos Estados Unidos. Assim como, evidentemente, ao
capitalismo.
Os críticos da
democracia chegam a afirmar solenemente que a Europa é culpada e não está à
altura dos acontecimentos porque não está armada e não tem uma defesa própria!
É verdadeiramente obsceno ver os que sempre recusaram que a Europa tivesse uma
qualquer força militar proclamarem agora que a Europa deve abandonar a aliança
com os americanos e forjar a sua própria força militar! Ou já o devia ter feito
há muitos anos!
Garantir que a invasão da Ucrânia não é mais do que uma
guerra entre os EUA ou a NATO e a Rússia, provocada pelos primeiros, é do
domínio da fantasia fanática
Culpar os
americanos pela guerra da Ucrânia é infame. Sublinhar as responsabilidades
europeias na agressão à Ucrânia é desonesto. Garantir que a invasão da Ucrânia
pelos russos não é mais do que uma guerra entre os Estados Unidos ou a NATO e a
Rússia, provocada pelos primeiros, é do domínio da fantasia fanática.
É extraordinário
que haja quem tenha dificuldades em avaliar a acção russa (que é tipicamente a
de uma agressão e de uma invasão), mas sinta necessidade de culpar e acusar o
Ocidente democrático, os países da NATO, a União Europeia e os Estados Unidos
da América. É verdade que, para se defender, a Europa tem de se armar,
organizar e libertar-se da dependência russa em energia. Mas não foi isso que
provocou a agressão à Ucrânia. Só espíritos particularmente perturbados são
capazes de formular a tese contrária.
E no entanto a
evidência parece simples: a Europa deve ter a sua própria defesa, apoiada em
forças comuns e forças nacionais, assim como deve prosseguir e reforçar a sua
aliança com os americanos, mas se possível em posição de menor dependência e
mais paridade. Isso custa muito caro. Seria bom que os europeus estivessem
dispostos a isso. Talvez a destruição da Ucrânia e talvez os crimes russos
cometidos nestes 15 dias sejam bons argumentos para os europeus finalmente
gastarem mais com a sua defesa e a sua segurança. Sempre com uma certeza: por
mais forte que seja, a Europa necessitará da sua aliança com a América. Podem
rever-se os termos, os custos, os prazos e as orientações. Mas tem de haver
aliança.
É estranho que
tantas pessoas que não cessaram de combater no passado qualquer ideia de defesa
europeia surjam agora a culpar a Europa (a UE e a NATO) pela invasão da Ucrânia
e pelos massacres de populações civis. Mas também a considerar que uma das
culpas da guerra na Ucrânia reside no facto de a Europa não ter defesa própria!
Não há maior cinismo! Não há mais grosseiro oportunismo! Impressionada com a
solidariedade mundial, essa gente menor procura um bode expiatório para os
actos de guerra e a agressão russa. Estava mesmo a ver-se: eram os Estados
Unidos e a inexistente defesa militar da Europa.
Imaginemos as
várias ideias de defesa europeia. Primeira, a de exércitos europeus
internacionais e transnacionais. Segunda, a coexistência de vários exércitos
nacionais devidamente articulados. Terceira, uma combinação das duas
anteriores. Imaginemos também que qualquer destas hipóteses pode ou não incluir
os Estados Unidos. E que a aliança com os Estados Unidos, como actualmente na
NATO, pode ou não coexistir com uma defesa mais europeia ou mais autónoma. De
toda a maneira, estas hipóteses podem sempre entender-se com mais ou menos
dependência dos Estados Unidos. Uma coisa é certa: quanto menos a Europa fizer,
maior será a sua dependência americana. E a sua vulnerabilidade perante a
Rússia.
Qualquer destas
hipóteses, com os seus méritos e defeitos, custa muito dinheiro, exige
esforços, implica constância e persistência. Qualquer destas soluções deve ser
compatível com a democracia e as liberdades. Ora muito bem: os críticos da
defesa militar europeia sempre condenaram estas hipóteses, sobretudo as que
implicam alianças com os Estados Unidos. Já se viu o essencial: estas opiniões
só parecem absurdas a quem não percebe que o que está em causa é a democracia
liberal, o Estado social europeu, a União Europeia, os Estados Unidos da
América, o capitalismo e a economia de mercado.
A agressão à
Ucrânia é violenta e destruidora. Mas também está a refundar uma nação e a
acordar um continente solidário. E a exibir os charlatães do pensamento.
O autor é
colunista do PÚBLICO
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