sábado, 12 de março de 2022

Tempos interessantes (2)

 



 OPINIÃO GUERRA NA UCRÂNIA

Tempos interessantes (2)

 

O erro monumental de Putin foi comprovar que os países encostados à Rússia precisam de uma defesa sólida, porque têm um agressor à porta. E não há alternativa a essa defesa vital que não seja a NATO

 

José Pacheco Pereira

12 de Março de 2022, 5:52

https://www.publico.pt/2022/03/12/opiniao/opiniao/tempos-interessantes-2-1998471

 

No final de 2021, na sua conferência de imprensa anual, respondendo a uma jornalista da Sky News, Putin deu uma explicação detalhada das razões de queixa que a Rússia entendia que tinha e, ao mesmo tempo, recusou comprometer-se a não atacar a Ucrânia. Mais tarde, mentiu várias vezes sobre a iminência do ataque à Ucrânia, mas, no essencial, expôs com clareza a sua posição, que, tomada de forma abstracta, não é desprovida de racionalidade.

 

Diz Putin que “não é uma questão de história, mas uma questão de segurança”, e toda a resposta anda à volta daquilo que considera o sentimento de insegurança da Federação Russa: “A NATO deu-nos uma garantia nos anos 90 de que não viriam para leste e enganaram-nos”, colocaram os seus sistemas de ataque na Roménia e na Polónia e, se a Ucrânia entrar para a NATO, farão o mesmo à nossa porta. Resumindo: “Não fomos para as fronteiras dos EUA”, nem para o Canadá, nem para o México (revelou saber alguma coisa sobre a guerra entre os EUA e o México e a conquista do Texas e da Califórnia do Sul), mas a NATO avançou “cinco vezes” para a nossa porta. Presumo que se refere ao alargamento para a Polónia, Roménia, os países bálticos e a Bulgária, ocorrido entre 1999 e acelerando-se em 2014, quando a Federação Russa anexou a Crimeia e apoiou os separatistas pró-russos. 2014 é o ano-chave, e a situação ucraniana, em termos de política interna e externa, a mãe e o pai da actual situação.

 

Nestes anos, de 1999 a 2014, a política dos EUA e da NATO tem uma contradição de fundo: ao mesmo tempo que a sua “união” se enfraquecia, com a falta de disponibilidade europeia para suportar custos da sua própria defesa, e a errância da política americana, para além de aventuras nos Balcãs e na Líbia, foi-se aceitando uma expansão para leste que tinha que ser vista como ameaçadora para a Federação Russa. Por isso, olhando pelos olhos de Putin, há muitas razões para preocupação, mas nenhuma para a invasão.

 

A resposta completamente desproporcionada muda os termos da questão, e transforma a insegurança invocada com a expansão da NATO num pretexto, e não numa razão. E aqui é que é preciso ver a situação com os olhos dos países do Leste da Europa com fronteira com a Federação Russa. Porque, da mesma maneira que a invasão da Ucrânia retira razão aos argumentos invocados por Putin, dá toda a razão às preocupações de segurança de países como as nações do Báltico, a Polónia e a Roménia, que já fazem parte da NATO, e outros países como a Geórgia e a Ucrânia, que tinham pedido para aderir. O erro monumental de Putin, que fragiliza mais do que nunca a situação de segurança da Federação Russa, é que não há hoje dúvidas para ninguém de que os países encostados à Rússia precisam de uma defesa sólida porque têm um agressor à porta e não há alternativa a essa defesa vital para a sua soberania que não seja a NATO.

 

Numa NATO fragilizada por Trump, pelo comodismo inconsciente da União Europeia – a começar pelo seu eleitorado e a acabar na burocracia europeia – e pela dependência energética da Rússia – um erro estratégico colossal –, a organização da Guerra Fria recebeu uma forte dose de legitimidade política. Os chineses compreenderam isso, e Putin começa também a percebê-lo, mas está encurralado nos seus próprios erros e não tem saída para o buraco em que se meteu.

 

Mais: uma “vitória” militar na Ucrânia seguida de uma ocupação de tipo colonial é como uma gangrena: não fecha e envenena tudo à sua volta. O grau de violência destes dias é o de uma guerra convencional, transmitindo pela primeira vez na televisão o impacte nas pessoas comuns a que chamamos civis, mas a violência que se passará numa ocupação é tudo menos convencional. É uma violência íntima, próxima, vingativa, de uma guerra civil. Por isso, esta ferida não se pode fechar sem uma humilhação russa, e uma grande nação humilhada é perigosa. O que os ucranianos já fizeram, mesmo descontando a desinformação que anda à solta dos dois lados, salvou a “honra” da nação, e esta noção não é abstracta para os povos e os indivíduos, é até fortíssima, que o digam os franceses em 1940. O pior está mesmo para vir.

 

Estamos em “tempos interessantes”, e o desejo de que os vivamos é mesmo uma maldição.

 

O autor é colunista do PÚBLICO

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