IMAGENS DE OVOODOCORVO
CRÓNICA ACÇÃO
PARALELA
A iconografia política
António Guerreiro
24 de Setembro de
2021, 8:40
https://www.publico.pt/2021/09/24/culturaipsilon/cronica/iconografia-politica-1978262
Quem, por estes
dias, circulou um pouco pelo país e observou os cartazes da campanha para as
eleições autárquicas terá certamente reparado que as “visibilidades políticas”,
como se diz num jargão a imitar a linguagem dos conceitos, são pouco
estimulantes e, muitas vezes, até suscitam alguma repulsa de ordem estética que
contamina a ressonância que tem em nós a política, na sua dimensão mais
imediata e pragmática. De um modo geral, os cartazes são graficamente
desastrosos, as fotografias dos candidatos são autênticos “cromos” e as
formações discursivas que os acompanham raramente são mais elaboradas.
Quem for dado ao
cinismo e à caricatura tem aqui material abundante para se entreter e
regozijar. No entanto, sabemos bem que as exigências estéticas não têm nada de
democrático e não há nada mais perigoso do que a estetização da política: na
sua forma totalitária, ela converge para um ideal sinistro, que é o da política
como obra de arte total. A iconografia política produzida nas campanhas
eleitorais, na sua indigência, até pode ser vista como um sinal do
fortalecimento democrático, de uma abertura popular (não confundir com
populista) do espaço político. Mas se a excessiva incidência nos critérios
estéticos das imagens tende a torná-las actos fúteis (sim, a imagem é um acto)
e a despolitizar a própria iconografia política, também é verdade que a
política não pode prescindir, nos seus rituais, nas suas convenções e na suas
práticas, de um suplemento estético. Estética a mais anula-a; ausência de
investimento estético torna-a aberrante e apta a provocar repulsa.
Tornou-se um
lugar-comum dizer que há uma crise da representação e que esse mal constitui
actualmente o perigo maior para as democracias. Representar — não podemos
esquecer — é mostrar, intensificar, redobrar uma presença. Assim definida, fica
bem claro que a representação articula estreitamente acepções políticas e
estéticas que não podem nunca ser totalmente dissociadas. As práticas políticas
encarnam hoje, como sempre aconteceu, lutas de representação sob formas visuais
singulares cuja análise requer utensílios conceptuais e metodológicos da
iconografia (ou da iconologia?) política, que é uma “disciplina” que, por cá,
nunca suscitou grande atenção. O arquivo da Ephemera, criado por José Pacheco
Pereira, solicita essa abordagem teórica e morfológica da iconografia política,
sem a qual o estudo histórico se torna um pouco cego.
Importa repetir:
a imagem é um acto e, nessa medida, tem um papel activo na fábrica da política.
E é evidente que a penetração das imagens na política tem hoje uma forte
influência da televisão e é determinada pelo fenómeno da pessoalização. Uma e
outra, a televisão e a pessoalização, são os recursos mais comuns,
estereotipados, da retórica visual da democracia. Por isso é que, quando se
trata de cartazes da campanha para as eleições autárquicas, que é a mais
pessoalizada de todas, os sinais de identificação partidária ficam quase
apagados pelas caras. A identidade gráfica não existe e os cartazes não dizem
nada a não ser “aqui estou eu!”. É evidente que esta apresentação ostensiva é
necessária, mas feita com a rudeza dos cartões de identidade civil adquire uma
dimensão quase obscena e os cidadãos acabam por ver apenas uma guerra das
caras. Sem um mínimo de densidade estética, a iconografia eleitoral é vazia,
sem ressonância e sem defesas contra a caricatura fácil.
Em tempos, os
partidos tinham os seus artistas ou, pelo menos, conselheiros nas questões
estéticas do material gráfico. Depois, as campanhas ficaram entregues aos
publicitários que, muitas vezes, até têm o condão de degradar ou mesmo
aniquilar o cliente partidário que os contratou. Deu-se aí um ponto de viragem
e, actualmente, até a iconografia política mais amadora parece querer imitar os
cartazes dos supermercados. Esta é a situação com que estamos confrontados. Se,
como alguém famoso diagnosticou, há um mal estar na visibilidade que assombra
as nossas sociedades chamada, então as “visibilidades políticas”, não apenas as
que a iconografia eleitoral exibe, são uma manifestação dessa doença. E assim
os cidadãos vêem cada vez mais a política com uma grande indiferença.
Alienação, desencantamento, reificação, absurdo: destes nomes, que exprimiram
com grande sucesso estados materiais e de espírito colectivos, algum deles
serve para designar a pobreza da experiência política de onde emergem as
campanhas eleitorais?
Livro de
recitações
“Rui Rio diz que
‘bazuca’ de Costa é afinal uma ´metralhadora’”
Diário de
Notícias, 20/09/ 2021
As metáforas no
discurso político estão ao nível das outras imagens, as visuais (das quais falo
no texto acima): parecem vir de uma linguagem muito coloquial — uma conversa de
amigos — deslumbrada com os seus achados. Não é o coloquialismo que é mau, é o
tom eufórico destes arremessos de fraca retórica, inventados para funcionarem
em títulos de jornais (e refiro-me tanto à “bazuca” quanto à “metralhadora”),
que parecem situar os políticos naquela fase infantil em que o bebé olha para o
seu cocó, aprende a dizer “cocó” com uma enorme felicidade e olha-o como um
“presente” que ele oferece aos adultos. Começa aí, nessa experiência
escatológica, a aquisição da linguagem, e a ela todos regressamos com frequência.
Ora, a linguagem política devia ser exactamente o contrário desta linguagem
regressiva e não devia satisfazer-se com as tiradas que dizem mais ou menos
isto: “o meu cocó é mais bem cheiroso que o teu”.


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