HABITAÇÃO
Quem anda a
investir no imobiliário de Lisboa e Porto?
Estudo
patrocinado pela Comissão Europeia procura perceber como a financeirização da
habitação está a mudar o perfil de oito cidades europeias. Lisboa e Porto estão
entre as cidades estudadas.
Luísa Pinto 1 de
Dezembro de 2019, 6:30
A Comissão
Europeia está a patrocinar a realização de um primeiro relatório científico que
aborda a questão da financeirização da habitação em várias cidades europeias. O
estudo pretende perceber qual a extensão da presença de grandes investidores
globais nas cidades europeias nos últimos anos, tendo como objectivo
identificar que tipo de investidores está presente em cada cidade
(nomeadamente, se são nacionais, estrangeiros, privados ou institucionais), e
cruzá-los com as medidas políticas que foram ou irão ser implementadas e
discutidas em cada caso. Portugal é o único país que tem duas cidades entre as
oito que estão a ser estudadas.
Para Ricardo
Barranco, investigador do Joint Research Centre da Comissão Europeia, que
funciona em Ispra (Itália), os resultados poderão ser muito relevantes na
definição de novas políticas.
“Durante o projecto apercebemo-nos que o
aumento dos custos com habitação é um fenómeno abrangente, com várias
determinantes e que a sua eventual resolução não é uma tarefa simples ou comum
a todas as cidades”, alertou o investigador, em resposta a questões formuladas
pelo PÚBLICO. Por isso, “uma maior e contínua recolha de dados para monitorizar
estes fenómenos e eventuais mudanças é fundamental”. “Existe cada vez mais e
melhor informação, mas há ainda muita dificuldade no que concerne à
identificação e caracterização dos investidores de maior dimensão”, advoga
Ricardo Barranco.
Em causa estão,
por exemplo, grandes fundos de investimento internacionais, que se mexem e se
desenvolvem sobretudo nas esferas financeiras e especulativas, e cuja actuação
acaba por ter impactos reais de microescala, ao nível de cada fogo/imóvel.
O facto das políticas
de austeridade terem imposto a redução gradual do crédito malparado, e a
imposição de limpar dos balanços dos bancos os chamados “non performing loans”,
permitiu que os fundos imobiliários passassem a ser senhorios de milhares de
inquilinos. E isto tanto foi verdade na Grécia e em Espanha, como em Portugal.
Em Lisboa e no Porto tivemos, por exemplo, o impacto da venda do portfólio da
Fidelidade ao fundo Apollo, e que é controlado a partir das ilhas Caimão.
O tema da
financeirização da habitação já foi abordada em termos académicos em Portugal
pelo Observatório de Crises e Oportunidades, da Universidade de Coimbra. A
economista Ana Cordeiro Santos coordenou uma obra colectiva onde referiu que “a
questão da habitação de hoje remete para a economia política de um sector cada
vez mais dominado pelo capital financeiro global, mas com impactos em
territórios precisos, produzindo crescentes desigualdades socioterritoriais”.
O estudo que está
a ser elaborado pelo Joint Research Centre envolve oito cidades europeias,
incluindo seis capitais: Amesterdão, Atenas, Barcelona, Berlim, Paris, Lisboa,
Porto e Vílnius. A escolha destas cidades foi determinada pela rede de
contactos construída pelo grupo de investigadores (que começou em Outubro de
2018 a trabalhar neste tema, num workshop que arrancou por iniciativa da cidade
de Amesterdão), e que inclui câmaras municipais, universidades, centros de
investigação, consultores e peritos imobiliários.
“Portugal é o
único país representado por duas cidades, porque quando contactámos o Centro de
Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade do Porto
percebemos rapidamente que disponham de dados interessantes para ambas as
cidades”, explica Ricardo Barranco.
A existência de
dados disponíveis, a sua fiabilidade e comparabilidade, foram por isso fundamentais
para o avanço do projecto. “As chamadas ‘fontes de informação não
convencionais’” são cada vez mais relevantes. Dados vindos da Internet, onde
estão presentes agências imobiliárias, plataformas turísticas e de alojamento
local são actualmente fundamentais. Os institutos nacionais de estatística e o
próprio Eurostat começam as dar os primeiros passos na sua recolha e
utilização. No futuro poderão fazer parte do leque de estatísticas oficiais”,
acrescenta o investigador.
Ricardo Barranco
conta que o seu centro de estudos desenvolveu o conceito de city lab com o
departamento de investigação e estatística de Amesterdão, trabalhando
metodologias que poderão agora ser adaptadas e aplicadas a outras cidades, e
que incluíram o enquadramento histórico sempre que possível: “Este permite ter
uma melhor percepção de cada identidade, como se desenvolveram ao longo dos
anos e algumas das políticas implementadas. Amesterdão é, por exemplo,
caracterizada por um forte planeamento onde o solo pertence à cidade e é alugado
por longas décadas. Atenas por sua vez cresceu de um modo menos estruturado,
onde alguns dos seus habitantes construíram de modo autónomo parte do seu
edificado”, exemplifica.
Problema igual,
causas diferentes
O investigador
explica que apesar de estarem a recolher e trabalhar dados disponíveis de uma
dimensão temporal bastante alargada em alguns indicadores, estão concentrados
em trabalhar nos últimos dez anos, por perceberem que foi neste período que se
registou o fenómeno do aumento significativo dos preços das habitações. E nesse
período já encontraram várias razões a sustentar essa tendência.
“A falta de
acesso à habitação e os seus preços elevados é algo transversal a várias
cidades europeias. É um fenómeno multidimensional em que apesar de o turismo e
o alojamento local serem os lados mais visíveis, não são as únicas razões. Em
alguns casos a pouca construção de novos fogos e portanto de mais oferta, o
fluxo de trabalhadores qualificados e melhor remunerados, as taxas de juro
bancárias baixas que fazem com que o mercado imobiliário seja um investimento
mais rentável, ou os fluxos de capital de grandes investidores, são outros dos
factores que têm feito o preço aumentar”, argumenta.
Ricardo Barranco,
que esteve recentemente em Lisboa, no âmbito da Conferência Internacional
Housing for All, que decorreu no Goethe Institut-Portugal, alerta para a
mudança de paradigma que leva a que a concorrência pela atracção de
trabalhadores e investimentos nacionais e internacionais se dê agora entre
cidades e não só entre países.
“A crise financeira veio inverter ou
estabilizar a subida dos preços na Europa. O que se nota é que as cidades
economicamente mais fortes como Paris e Amesterdão, conseguiram recuperar mais
rapidamente a este choque, enquanto as localizadas em países mais afectados
pela crise, como Lisboa, Porto, Barcelona e Atenas, tiveram uma recuperação do
aumento mais tardio”, explica.
E para
complexificar a análise, demonstra que mesmo dentro dos países ou das próprias
cidades este agravamento dos preços da habitação não se desenvolveu do mesmo
modo. “Paris tem tido um aumento mais de uma vez e meia superior ao resto das
cidades francesas, mas desde 2012 a subida relativa dos preços em Lyon superou
a capital francesa. Em Itália onde os preços por metro quadrado têm diminuído,
Milão é uma das excepções”, exemplifica.
O estudo ainda
não tem data de conclusão à vista, e, sabe-se desde já, que ele não terminará
com a apresentação de conclusões ou recomendações, até porque, apesar de o
problema ser semelhante, as características e as causas parecem variar muito.
“Em Berlim, o
mercado de arrendamento tem a maior fatia do mercado imobiliário, enquanto
Vílnius é sobretudo caracterizada por habitação própria. Lisboa e Porto têm uma
situação intermédia com um equilíbrio entre as habitações próprias e aquelas
para arrendamento”, exemplifica Ricardo Barranco.
Os investigadores
vão evitar fazer recomendações de carácter regulamentar ou de planeamento
urbano, também por terem a consciência de que “nem todas as medidas são
replicáveis e o que funciona num caso poderá não funcionar noutro”.
“As cidades estão
a desenvolver estratégias e a implementar muita regulamentação. Barcelona tem
uma estratégia muito bem definida para o alojamento local, a câmara municipal
de Berlim investe no aumento do seu próprio património imobiliário e Amesterdão
tenta aumentar a acessibilidade à habitação através da regulamentação das novas
construções (requer que 40% sejam dedicadas a habitação social, 20% classe
média e 20% ao segmento mais alto). Achámos que era sobretudo importante
descrever cada caso e relatar as medidas presentes e as que estão a ser
implementadas. O impacte destas medidas só poderá ser medido anos mais tarde”,
alerta, sublinhando que mais importante é a partilha dos sucessos e insucessos
das iniciativas que já se conhecem.
EDITORIAL
Como reabilitar
as cidades sem as esvaziar?
A Comissão
Europeia encomendou um estudo sobre a “financeirização” da habitação em várias
cidades da União Europeia, para perceber melhor este mercado imobiliário que se
globaliza e, espera-se, ajudar a definir novas políticas.
1 de Dezembro de
2019, 6:30
Foram muitos os
anos passados a lamentar a desertificação e ruína dos nossos centros urbanos,
sem que nenhuma política de reabilitação tenha tido resultados substanciais. Ao
contrário do que acontecia nas principais cidades europeias, locais centrais
como a Praça da Figueira ou a Rua de 31 de Janeiro, no Porto, eram exemplos de
abandono. Os centros urbanos de Lisboa e do Porto eram uma espécie de donut, vazio
por dentro, mas com uma coroa periférica a crescer desordenada nas margens.
Agora passamos da preocupação com o vazio e a ruína dos nossos centros para as
preocupantes consequências deste processo imobiliário de reabilitação urbana.
Corremos o grande
risco de prolongar esse vazio habitacional nos centros das nossas cidades
(agora reabilitados, embora, muitas vezes, com uma preocupação de fachada), por
duas simples razões: a recuperação está entregue em grande medida a fundos de
investimento que não respondem à procura de habitação, mas sim à pressão da
hotelaria e similares; e este processo arrasta para fora do centro quem ainda
lá vive. A expulsão de inquilinos como efeito directo do mercado de
reabilitação não é uma especificidade do Sul da Europa ou até Europa. Austin,
capital do Texas, nos EUA, debate-se há muito com esse processo de
“gentrificação”, que motivou a campanha Keep Austin Weird, de preservação da
identidade de uma cidade a transfigurar-se devido a uma segmentação social.
Barcelona é outro
exemplo. A cidade reforçou os direitos dos inquilinos, prestou-lhes assistência
legal, os promotores viram-se obrigados a realojar inquilinos e a respeitar os
seus direitos para obter licenças de construção, houve casos em que a câmara
adquiriu o prédio em causa, evitando expulsões, estabeleceu-se que 30% dos
metros quadrados reabilitados deveriam ser reservados a habitação com rendas
protegidas. Barcelona, que definiu regras específicas para o alojamento local,
não é a única cidade a proteger-se. Berlim tem investido no património
imobiliário público e Amesterdão quer aumentar o acesso à habitação através
da regulamentação das novas construções, destinando 40% delas a habitação
social, 20% à classe média e 20% ao segmento mais alto.
A Comissão
Europeia encomendou um estudo sobre a “financeirização” da habitação em várias
cidades da União Europeia, para perceber melhor este mercado imobiliário que se
globaliza e, espera-se, ajudar a definir novas políticas. Entre a ruína e a
especulação há, certamente, um meio-termo. É possível reabilitar sem
esvaziar.
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