domingo, 1 de dezembro de 2019

Quem anda a investir no imobiliário de Lisboa e Porto? / Como reabilitar as cidades sem as esvaziar?




HABITAÇÃO
Quem anda a investir no imobiliário de Lisboa e Porto?

Estudo patrocinado pela Comissão Europeia procura perceber como a financeirização da habitação está a mudar o perfil de oito cidades europeias. Lisboa e Porto estão entre as cidades estudadas.

Luísa Pinto 1 de Dezembro de 2019, 6:30

A Comissão Europeia está a patrocinar a realização de um primeiro relatório científico que aborda a questão da financeirização da habitação em várias cidades europeias. O estudo pretende perceber qual a extensão da presença de grandes investidores globais nas cidades europeias nos últimos anos, tendo como objectivo identificar que tipo de investidores está presente em cada cidade (nomeadamente, se são nacionais, estrangeiros, privados ou institucionais), e cruzá-los com as medidas políticas que foram ou irão ser implementadas e discutidas em cada caso. Portugal é o único país que tem duas cidades entre as oito que estão a ser estudadas.

Para Ricardo Barranco, investigador do Joint Research Centre da Comissão Europeia, que funciona em Ispra (Itália), os resultados poderão ser muito relevantes na definição de novas políticas.

 “Durante o projecto apercebemo-nos que o aumento dos custos com habitação é um fenómeno abrangente, com várias determinantes e que a sua eventual resolução não é uma tarefa simples ou comum a todas as cidades”, alertou o investigador, em resposta a questões formuladas pelo PÚBLICO. Por isso, “uma maior e contínua recolha de dados para monitorizar estes fenómenos e eventuais mudanças é fundamental”. “Existe cada vez mais e melhor informação, mas há ainda muita dificuldade no que concerne à identificação e caracterização dos investidores de maior dimensão”, advoga Ricardo Barranco.

Em causa estão, por exemplo, grandes fundos de investimento internacionais, que se mexem e se desenvolvem sobretudo nas esferas financeiras e especulativas, e cuja actuação acaba por ter impactos reais de microescala, ao nível de cada fogo/imóvel.

O facto das políticas de austeridade terem imposto a redução gradual do crédito malparado, e a imposição de limpar dos balanços dos bancos os chamados “non performing loans”, permitiu que os fundos imobiliários passassem a ser senhorios de milhares de inquilinos. E isto tanto foi verdade na Grécia e em Espanha, como em Portugal. Em Lisboa e no Porto tivemos, por exemplo, o impacto da venda do portfólio da Fidelidade ao fundo Apollo, e que é controlado a partir das ilhas Caimão.

O tema da financeirização da habitação já foi abordada em termos académicos em Portugal pelo Observatório de Crises e Oportunidades, da Universidade de Coimbra. A economista Ana Cordeiro Santos coordenou uma obra colectiva onde referiu que “a questão da habitação de hoje remete para a economia política de um sector cada vez mais dominado pelo capital financeiro global, mas com impactos em territórios precisos, produzindo crescentes desigualdades socioterritoriais”.

O estudo que está a ser elaborado pelo Joint Research Centre envolve oito cidades europeias, incluindo seis capitais: Amesterdão, Atenas, Barcelona, Berlim, Paris, Lisboa, Porto e Vílnius. A escolha destas cidades foi determinada pela rede de contactos construída pelo grupo de investigadores (que começou em Outubro de 2018 a trabalhar neste tema, num workshop que arrancou por iniciativa da cidade de Amesterdão), e que inclui câmaras municipais, universidades, centros de investigação, consultores e peritos imobiliários.

“Portugal é o único país representado por duas cidades, porque quando contactámos o Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade do Porto percebemos rapidamente que disponham de dados interessantes para ambas as cidades”, explica Ricardo Barranco.

A existência de dados disponíveis, a sua fiabilidade e comparabilidade, foram por isso fundamentais para o avanço do projecto. “As chamadas ‘fontes de informação não convencionais’” são cada vez mais relevantes. Dados vindos da Internet, onde estão presentes agências imobiliárias, plataformas turísticas e de alojamento local são actualmente fundamentais. Os institutos nacionais de estatística e o próprio Eurostat começam as dar os primeiros passos na sua recolha e utilização. No futuro poderão fazer parte do leque de estatísticas oficiais”, acrescenta o investigador.

Ricardo Barranco conta que o seu centro de estudos desenvolveu o conceito de city lab com o departamento de investigação e estatística de Amesterdão, trabalhando metodologias que poderão agora ser adaptadas e aplicadas a outras cidades, e que incluíram o enquadramento histórico sempre que possível: “Este permite ter uma melhor percepção de cada identidade, como se desenvolveram ao longo dos anos e algumas das políticas implementadas. Amesterdão é, por exemplo, caracterizada por um forte planeamento onde o solo pertence à cidade e é alugado por longas décadas. Atenas por sua vez cresceu de um modo menos estruturado, onde alguns dos seus habitantes construíram de modo autónomo parte do seu edificado”, exemplifica.

Problema igual, causas diferentes
O investigador explica que apesar de estarem a recolher e trabalhar dados disponíveis de uma dimensão temporal bastante alargada em alguns indicadores, estão concentrados em trabalhar nos últimos dez anos, por perceberem que foi neste período que se registou o fenómeno do aumento significativo dos preços das habitações. E nesse período já encontraram várias razões a sustentar essa tendência.

“A falta de acesso à habitação e os seus preços elevados é algo transversal a várias cidades europeias. É um fenómeno multidimensional em que apesar de o turismo e o alojamento local serem os lados mais visíveis, não são as únicas razões. Em alguns casos a pouca construção de novos fogos e portanto de mais oferta, o fluxo de trabalhadores qualificados e melhor remunerados, as taxas de juro bancárias baixas que fazem com que o mercado imobiliário seja um investimento mais rentável, ou os fluxos de capital de grandes investidores, são outros dos factores que têm feito o preço aumentar”, argumenta.

Ricardo Barranco, que esteve recentemente em Lisboa, no âmbito da Conferência Internacional Housing for All, que decorreu no Goethe Institut-Portugal, alerta para a mudança de paradigma que leva a que a concorrência pela atracção de trabalhadores e investimentos nacionais e internacionais se dê agora entre cidades e não só entre países.

 “A crise financeira veio inverter ou estabilizar a subida dos preços na Europa. O que se nota é que as cidades economicamente mais fortes como Paris e Amesterdão, conseguiram recuperar mais rapidamente a este choque, enquanto as localizadas em países mais afectados pela crise, como Lisboa, Porto, Barcelona e Atenas, tiveram uma recuperação do aumento mais tardio”, explica.

E para complexificar a análise, demonstra que mesmo dentro dos países ou das próprias cidades este agravamento dos preços da habitação não se desenvolveu do mesmo modo. “Paris tem tido um aumento mais de uma vez e meia superior ao resto das cidades francesas, mas desde 2012 a subida relativa dos preços em Lyon superou a capital francesa. Em Itália onde os preços por metro quadrado têm diminuído, Milão é uma das excepções”, exemplifica.

O estudo ainda não tem data de conclusão à vista, e, sabe-se desde já, que ele não terminará com a apresentação de conclusões ou recomendações, até porque, apesar de o problema ser semelhante, as características e as causas parecem variar muito.

“Em Berlim, o mercado de arrendamento tem a maior fatia do mercado imobiliário, enquanto Vílnius é sobretudo caracterizada por habitação própria. Lisboa e Porto têm uma situação intermédia com um equilíbrio entre as habitações próprias e aquelas para arrendamento”, exemplifica Ricardo Barranco.

Os investigadores vão evitar fazer recomendações de carácter regulamentar ou de planeamento urbano, também por terem a consciência de que “nem todas as medidas são replicáveis e o que funciona num caso poderá não funcionar noutro”.

“As cidades estão a desenvolver estratégias e a implementar muita regulamentação. Barcelona tem uma estratégia muito bem definida para o alojamento local, a câmara municipal de Berlim investe no aumento do seu próprio património imobiliário e Amesterdão tenta aumentar a acessibilidade à habitação através da regulamentação das novas construções (requer que 40% sejam dedicadas a habitação social, 20% classe média e 20% ao segmento mais alto). Achámos que era sobretudo importante descrever cada caso e relatar as medidas presentes e as que estão a ser implementadas. O impacte destas medidas só poderá ser medido anos mais tarde”, alerta, sublinhando que mais importante é a partilha dos sucessos e insucessos das iniciativas que já se conhecem.



EDITORIAL
Como reabilitar as cidades sem as esvaziar?

A Comissão Europeia encomendou um estudo sobre a “financeirização” da habitação em várias cidades da União Europeia, para perceber melhor este mercado imobiliário que se globaliza e, espera-se, ajudar a definir novas políticas.

1 de Dezembro de 2019, 6:30

Foram muitos os anos passados a lamentar a desertificação e ruína dos nossos centros urbanos, sem que nenhuma política de reabilitação tenha tido resultados substanciais. Ao contrário do que acontecia nas principais cidades europeias, locais centrais como a Praça da Figueira ou a Rua de 31 de Janeiro, no Porto, eram exemplos de abandono. Os centros urbanos de Lisboa e do Porto eram uma espécie de donut, vazio por dentro, mas com uma coroa periférica a crescer desordenada nas margens. Agora passamos da preocupação com o vazio e a ruína dos nossos centros para as preocupantes consequências deste processo imobiliário de reabilitação urbana.

Corremos o grande risco de prolongar esse vazio habitacional nos centros das nossas cidades (agora reabilitados, embora, muitas vezes, com uma preocupação de fachada), por duas simples razões: a recuperação está entregue em grande medida a fundos de investimento que não respondem à procura de habitação, mas sim à pressão da hotelaria e similares; e este processo arrasta para fora do centro quem ainda lá vive. A expulsão de inquilinos como efeito directo do mercado de reabilitação não é uma especificidade do Sul da Europa ou até Europa. Austin, capital do Texas, nos EUA, debate-se há muito com esse processo de “gentrificação”, que motivou a campanha Keep Austin Weird, de preservação da identidade de uma cidade a transfigurar-se devido a uma segmentação social.


Barcelona é outro exemplo. A cidade reforçou os direitos dos inquilinos, prestou-lhes assistência legal, os promotores viram-se obrigados a realojar inquilinos e a respeitar os seus direitos para obter licenças de construção, houve casos em que a câmara adquiriu o prédio em causa, evitando expulsões, estabeleceu-se que 30% dos metros quadrados reabilitados deveriam ser reservados a habitação com rendas protegidas. Barcelona, que definiu regras específicas para o alojamento local, não é a única cidade a proteger-se. Berlim tem investido no património imobiliário público e Amesterdão ­­quer aumentar o acesso à habitação através da regulamentação das novas construções, destinando 40% delas a habitação social, 20% à classe média e 20% ao segmento mais alto.

A Comissão Europeia encomendou um estudo sobre a “financeirização” da habitação em várias cidades da União Europeia, para perceber melhor este mercado imobiliário que se globaliza e, espera-se, ajudar a definir novas políticas. Entre a ruína e a especulação há, certamente, um meio-termo. É possível reabilitar sem esvaziar.

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