Edifício Prémio
Valmor à venda em hasta pública, contra o último desejo do arquitecto que o
doou
07.12.2019 às
19h54
A Universidade de
Lisboa quer alienar em hasta pública a Casa Ventura Terra, na Rua Alexandre
Herculano, um edifício classificado e doado há cem anos pelo arquiteto, num
testamento em que diz: “muito desejo que não seja vendido”. Herdeiros vão
impugnar em tribunal
CRISTINA MARGATO
A30 de Abril de
1919, o arquiteto Miguel Ventura Terra escreveu o seu testamento e foi claro no
destino e utilidade que a sua casa deveria ter depois da sua morte. O edifício,
situado na Rua Alexandre Herculano, em Lisboa, passaria a ser propriedade das
Escolas de Belas de Arte de Lisboa e Porto, e o rendimento deste deveria ser
destinado a bolsas de estudo: “para evitar (...) quanto possível que rapazes ou
mesmo meninas pobres, não sigam por falta de recursos pecuniários uma carreira
artística para a qual se reconheça vocação.”
Miguel Ventura
Terra estipulara ainda que as “pensões”, como lhe chamava, tivessem os nomes
dos pais, ambos já desaparecidos, João Bento Terra e Maria Victoria Terra, “que
tendo vivido na maior pobreza conseguiram à força dos maiores sacrifícios"
que o filho seguisse "a carreira que tanto desejava”.
A casa, situada
numa das zonas mais nobres de Lisboa, tem tido uma vida atribulada, apesar de
ter recebido o segundo Prémio Valmor e de estar classificado desde 1982 como
Imóvel de Interesse Público. É o próprio reitor da Universidade de Lisboa,
António Cruz Serra, que diz ao Expresso que “a sua história dava um romance”,
embora não queira entrar em pormenores.
Durante muitos
anos, e como se escreveu, em 2013, os inquilinos, nomeadamente com contratos
efectuados na década de 1970 (e que ainda vigoram até hoje), não sabiam muito
bem a quem pagavam as rendas. A casa passou então, nessa altura, a integrar o
património privado da Universidade do Porto, da Universidade de Lisboa e da
Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, por despacho conjunto
dos Ministros da Educação e Ciência e de Estado e das Finanças.
O processo de
alienação em hasta pública, agora aberto pela Universidade de Lisboa, estima em
3,7 milhões de euros o valor de mercado do prédio em causa, com quatro pisos e
uma área bruta de construção de 2.089,4398 m2, quando a uma distância não muito
grande, na Avenida da Liberdade, há apartamentos de 300 metros quadrados à
venda por 6 milhões.
António Cruz
Serra, reitor da Universidade de Lisboa, e aquele que assina um anúncio
publicado no Expresso de 30 de novembro de 2019, relativo à alienação, acredita
“que não há nenhum constrangimento legal à venda dele”. Esclarece ainda que “o
objecto do legado é ajudar estudantes necessitados de Arquitectura e Belas
Artes, de Lisboa e do Porto, e aquilo que a Universidade de Lisboa (detentora
de 50 por cento) fará, com a receita da venda, é construir camas em residências
de estudantes”, cumprindo assim o fim que o arquitecto Ventura Terra destinara.
A intenção, continua, “é chamar à residência de estudantes que vier a ser
construída Residência Ventura Terra.”
O reitor também
afirma que até agora não foi confrontado com algum impedimento legal à
alienação em hasta pública do edifício. A avaliar pelos contratos que são
anexados ao caderno de encargos, o rendimento é muito residual. Segundo Cruz
Serra, “não existem condições deste ser aproveitado da forma que era intenção
do arquitecto Ventura Terra.” O responsável coloca ainda de lado outra hipótese
que possa rentabilizar a casa de forma mais eficiente.
HERDEIROS VÃO
IMPUGNAR VENDA
Alda Sarri Terra,
sobrinha-bisneta, disse ao Expresso que a família pretende evitar esta venda,
porque acredita que não cumpre o desejo expresso em testamento pelo tio-avô:
“Vamos impugnar.” A familiar realça que há muito que os seus proprietários se
desviaram do destino que fora dado à casa pelo seu antepassado: “Não souberam
trabalhar o que tinham à disposição para tirar rendimento. Quando uma habitação
ficou livre usaram-na como armazém… É um prédio que vale ouro, no centro de
Lisboa. Se não têm unhas para tratar do assunto, deveriam arranjar soluções
para valorizá-lo. Não é chegar, e vender em hasta pública.”
Paulo Ferrero,
fundador do Fórum Cidadania, esteve ligado às comemorações dos 150 anos do
nascimento de Miguel Ventura Terra, há três anos, pelo que conhece
detalhadamente o edifício e garante que, em 2013, quando o visitou, no último
andar estava guardado, de forma pouco segura, para o próprio edifício, já
bastante degradado, o espólio de Lagoa Henriques. O reitor não confirma a
informação.
Ferrero adianta
que quando o Governo de Passos Coelho decidiu, em 2013, passar a propriedade
para as Universidades de Lisboa e Porto, “achou-se muito bem, porque, até
àquele momento, as pessoas que lá habitavam não sabiam a quem pagavam as
rendas. Era uma complicação. Ao fim de 70 anos, esclareceu-se quem era o
senhorio. Com a junção da Universidade Técnica com a de Lisboa, tornou-se de
novo uma salganhada. Aconteceu algo semelhante com o Palácio Centeno, que agora
vai ser um hotel.”
Construído, em
1903, segundo projecto do próprio proprietário, o edifício tem quatro pisos,e
foi considerado de uma grande modernidade. O facto de ter sido classificado,
inicialmente, como Imóvel de Interesse Municipal, e depois objecto de
reclassificação para Imóvel de Interesse Público, não impediu que ficasse
desprotegido. Sofreu danos com a construção de um prédio, ao seu lado.
Miguel Ventura
Terra nasceu em 1866, em Caminha, e este testamento foi de facto o seu último
desejo, já que a data em que o assina corresponde à da sua morte.
Em Lisboa, o
arquitecto deixou um enorme legado, de que é exemplo a Maternidade Alfredo da
Costa, o Teatro Politeama, os liceus Camões, Maria Amália Vaz de Carvalho e
Pedro Nunes, ou a Sinagoga.
No norte do país,
assinou os projetos do Banco de Portugal, do Hospital de Esposende, o Santuário
de Santa Luzia, em Viana do Castelo
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