sábado, 7 de dezembro de 2019

Edifício Prémio Valmor à venda em hasta pública, contra o último desejo do arquitecto que o doou



Edifício Prémio Valmor à venda em hasta pública, contra o último desejo do arquitecto que o doou
07.12.2019 às 19h54

A Universidade de Lisboa quer alienar em hasta pública a Casa Ventura Terra, na Rua Alexandre Herculano, um edifício classificado e doado há cem anos pelo arquiteto, num testamento em que diz: “muito desejo que não seja vendido”. Herdeiros vão impugnar em tribunal
CRISTINA MARGATO

A30 de Abril de 1919, o arquiteto Miguel Ventura Terra escreveu o seu testamento e foi claro no destino e utilidade que a sua casa deveria ter depois da sua morte. O edifício, situado na Rua Alexandre Herculano, em Lisboa, passaria a ser propriedade das Escolas de Belas de Arte de Lisboa e Porto, e o rendimento deste deveria ser destinado a bolsas de estudo: “para evitar (...) quanto possível que rapazes ou mesmo meninas pobres, não sigam por falta de recursos pecuniários uma carreira artística para a qual se reconheça vocação.”

Miguel Ventura Terra estipulara ainda que as “pensões”, como lhe chamava, tivessem os nomes dos pais, ambos já desaparecidos, João Bento Terra e Maria Victoria Terra, “que tendo vivido na maior pobreza conseguiram à força dos maiores sacrifícios" que o filho seguisse "a carreira que tanto desejava”.

A casa, situada numa das zonas mais nobres de Lisboa, tem tido uma vida atribulada, apesar de ter recebido o segundo Prémio Valmor e de estar classificado desde 1982 como Imóvel de Interesse Público. É o próprio reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra, que diz ao Expresso que “a sua história dava um romance”, embora não queira entrar em pormenores.

Durante muitos anos, e como se escreveu, em 2013, os inquilinos, nomeadamente com contratos efectuados na década de 1970 (e que ainda vigoram até hoje), não sabiam muito bem a quem pagavam as rendas. A casa passou então, nessa altura, a integrar o património privado da Universidade do Porto, da Universidade de Lisboa e da Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, por despacho conjunto dos Ministros da Educação e Ciência e de Estado e das Finanças.

O processo de alienação em hasta pública, agora aberto pela Universidade de Lisboa, estima em 3,7 milhões de euros o valor de mercado do prédio em causa, com quatro pisos e uma área bruta de construção de 2.089,4398 m2, quando a uma distância não muito grande, na Avenida da Liberdade, há apartamentos de 300 metros quadrados à venda por 6 milhões.

António Cruz Serra, reitor da Universidade de Lisboa, e aquele que assina um anúncio publicado no Expresso de 30 de novembro de 2019, relativo à alienação, acredita “que não há nenhum constrangimento legal à venda dele”. Esclarece ainda que “o objecto do legado é ajudar estudantes necessitados de Arquitectura e Belas Artes, de Lisboa e do Porto, e aquilo que a Universidade de Lisboa (detentora de 50 por cento) fará, com a receita da venda, é construir camas em residências de estudantes”, cumprindo assim o fim que o arquitecto Ventura Terra destinara. A intenção, continua, “é chamar à residência de estudantes que vier a ser construída Residência Ventura Terra.”

O reitor também afirma que até agora não foi confrontado com algum impedimento legal à alienação em hasta pública do edifício. A avaliar pelos contratos que são anexados ao caderno de encargos, o rendimento é muito residual. Segundo Cruz Serra, “não existem condições deste ser aproveitado da forma que era intenção do arquitecto Ventura Terra.” O responsável coloca ainda de lado outra hipótese que possa rentabilizar a casa de forma mais eficiente.

HERDEIROS VÃO IMPUGNAR VENDA
Alda Sarri Terra, sobrinha-bisneta, disse ao Expresso que a família pretende evitar esta venda, porque acredita que não cumpre o desejo expresso em testamento pelo tio-avô: “Vamos impugnar.” A familiar realça que há muito que os seus proprietários se desviaram do destino que fora dado à casa pelo seu antepassado: “Não souberam trabalhar o que tinham à disposição para tirar rendimento. Quando uma habitação ficou livre usaram-na como armazém… É um prédio que vale ouro, no centro de Lisboa. Se não têm unhas para tratar do assunto, deveriam arranjar soluções para valorizá-lo. Não é chegar, e vender em hasta pública.”

Paulo Ferrero, fundador do Fórum Cidadania, esteve ligado às comemorações dos 150 anos do nascimento de Miguel Ventura Terra, há três anos, pelo que conhece detalhadamente o edifício e garante que, em 2013, quando o visitou, no último andar estava guardado, de forma pouco segura, para o próprio edifício, já bastante degradado, o espólio de Lagoa Henriques. O reitor não confirma a informação.

Ferrero adianta que quando o Governo de Passos Coelho decidiu, em 2013, passar a propriedade para as Universidades de Lisboa e Porto, “achou-se muito bem, porque, até àquele momento, as pessoas que lá habitavam não sabiam a quem pagavam as rendas. Era uma complicação. Ao fim de 70 anos, esclareceu-se quem era o senhorio. Com a junção da Universidade Técnica com a de Lisboa, tornou-se de novo uma salganhada. Aconteceu algo semelhante com o Palácio Centeno, que agora vai ser um hotel.”

Construído, em 1903, segundo projecto do próprio proprietário, o edifício tem quatro pisos,e foi considerado de uma grande modernidade. O facto de ter sido classificado, inicialmente, como Imóvel de Interesse Municipal, e depois objecto de reclassificação para Imóvel de Interesse Público, não impediu que ficasse desprotegido. Sofreu danos com a construção de um prédio, ao seu lado.

Miguel Ventura Terra nasceu em 1866, em Caminha, e este testamento foi de facto o seu último desejo, já que a data em que o assina corresponde à da sua morte.

Em Lisboa, o arquitecto deixou um enorme legado, de que é exemplo a Maternidade Alfredo da Costa, o Teatro Politeama, os liceus Camões, Maria Amália Vaz de Carvalho e Pedro Nunes, ou a Sinagoga.

No norte do país, assinou os projetos do Banco de Portugal, do Hospital de Esposende, o Santuário de Santa Luzia, em Viana do Castelo

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