De forma discreta, Arroios está a transformar-se no bairro
dos “cafés literários” e das livrarias independentes
Sofia Cristino
Texto
30 Abril, 2019
Longe da confusão do centro histórico de Lisboa, mas ainda
assim suficientemente próximo do coração da cidade, o bairro assume-se cada vez
mais como um pólo de atracção para todos os que gostam de livros. Numa zona em
acelerada mudança, a poucas centenas de metros uns dos outros, e com horários
distintos, concentram-se agora livrarias e “cafés literários”. Embora
diferentes entre si, as lojas convidam a que por ali se faça um roteiro tendo a
leitura em papel como azimute. Os donos dos estabelecimentos dizem querer fugir
ao que consideram ser “um atendimento distante” dos circuitos mais
movimentados, aproximando-se dos clientes e reinventando-se. Por isso,
encontram-se ali cafés-livrarias onde só toca jazz e country, com sofás para
ler durante todo o dia, caixas de livros gratuitos para levar para casa e
gastronomia de vários continentes para provar. Há livrarias que, à tarde, são
oficinas para crianças e outras que, à noite, se transformam em cafés onde
acontecem viagens literárias.
O café literário Espuma dos Dias é o primeiro a abrir
portas, na Estefânia, quando o bairro ainda está a despertar. Na Rua José
Estevão não se vê ninguém, mas já se sente o cheiro a café e a banda britânica
Divine Comedy rompe o silêncio matinal. Ao entrar, é difícil não reparar num
piano de parede antigo, decorado com várias edições do livro Espuma dos Dias –
que dá nome ao café -, do escritor Boris Vian, publicado em 1947. Alguns
clientes ofereceram edições desta obra em diferentes línguas, como uma
japonesa, uma das mais originais – “infelizmente roubada recentemente”, conta a
dona do café-livraria.
O espaço, aberto há dois anos por Patrícia Assis, 37 anos, e
o companheiro, Nuno Andrade, 46, “é um café com livros e não uma livraria com
café”, explica Patrícia. “Mesmo para quem tem rendimentos médios, o prazer da
leitura sai caro. Os alfarrabistas têm conseguido promover o acesso à leitura,
praticando preços mais baixos, mas ainda é preciso educar o público”,
considera. Apesar de nem todos mostrarem interesse pelos títulos, “e aparecerem
mais pelo café”, muitos procuram a Espuma dos Dias por ser um sítio mais calmo,
sem a confusão característica da maioria dos cafés do centro histórico da
cidade. “As pessoas gostam por ser diferente. Não temos um atendimento distante,
como acontece em circuitos mais movimentados, como a zona da Baixa. Aqui,
gostamos que as pessoas se sintam como se estivessem em casa. Sabemos que se
sentem dessa forma porque a maioria dos nossos clientes são habituais, moram na
zona, e dão-nos esse feedback”, conta, enquanto um cliente se despede e deixa
as moedas em cima do balcão para pagar o pequeno-almoço.
Quando abriram, em 2017, tinham uma pequena selecção de
livros da alfarrabista Letra Livre. Recentemente, essa parceria acabou e passaram
a vender livros da Leituria. Os títulos – que vão desde clássicos como
Shakespeare, Fitzgerald, Alexandre O’Neill, Eça de Queiroz a literatura
infantil de editoras já extintas ou autores menos conhecidos – são em segunda
mão e os preços variam entre um e dez euros. “São livros que, normalmente, não
se encontram nos circuitos comerciais. Os clássicos encontram-se, mas nós temos
edições mais antigas. Privilegiamos sobretudo a diversidade, nunca quisemos ser
elitistas”, explica. As obras estão na cave, algumas dispostas em estantes e
numa mesa, ou nos sacos, ainda por arrumar.
Quem não quiser comprar pode sentar-se num sofá modesto, de
três lugares, e ficar ali a ler, durante toda a tarde ou, à saída, levar um
livro gratuito. A ideia foi de Vítor Rodrigues, 49 anos, dono da Leituria,
localizada a menos de 200 metros na mesma rua. “Lembrei-me de dar livros,
porque também nos oferecem, e esta é uma forma de sermos recíprocos nessa
generosidade. Além disso, há uma série de livros que, não tendo valor
comercial, têm muito valor cultural e literário. Não faz sentido que estejam a
desperdiçar-se num armazém”, explica. A Leitura está ali desde o passado mês de
Março, altura em que abandonou o espaço onde esteve entre 2015 e 2018, junto ao
Largo Dona Estefânia.
Ao entrar, percebe-se
que o novo inquilino acabou de chegar. Há sacos amontoados com dezenas de
romances, policiais e outros géneros literários por abrir. No estreito
rés-do-chão é difícil não tropeçar numa torre de livros empilhados, grande
parte deles assim arrumados por falta de espaço. As dimensões reduzidas
apelaram à criatividade do livreiro, a qual se observa em pequenos pormenores
como livros suspensos no tecto. Os preços podem variar entre cinco e 200 euros
porque, apesar de “95% serem usados”, há livros novos e mais valiosos. “Não
vendo livros por um euro, para isso prefiro oferecê-los”, diz. Na nova morada
da Leituria também funciona um espaço de trabalho partilhado, o Misturado. Não
há um “padrão de clientes”, aparecem de todas as idades e géneros, mas todos
têm “um certo grau de exigência cultural”. “Não vêm à procura do que está no
‘top de vendas’ ou de best-sellers. Somos um negócio de bairro e temos
funcionado sempre nesta lógica. Queremos privilegiar o livro usado e as
pequenas editoras”, explica.
Há duas décadas ligado a esta área, Vítor reconhece as
dificuldades do negócio, mas acredita que este “está em mutação”. “Há vinte
anos, uma livraria independente podia ser um negócio próspero. Hoje, os
arrendamentos subiram muito de preço, os espaços são muito escassos e há uma
gigantesca desigualdade das condições do mercado. Essa disparidade traduz-se
num domínio enorme de grandes grupos editoriais e hipermercados, que vêem o
livro como uma mercadoria, e aplicam aos livros as mesmas regras que aplicam a
batatas”, critica.
Duas ruas abaixo, na Rua de Arroios, a Tigre de Papel abriu,
há três anos, com o mesmo objectivo. Livros, maioritariamente, de ciências
sociais, política e economia, sociologia, filosofia e história, mas também
infantis, de arte e ilustração enchem dezenas de estantes em cortiça. Muitos
títulos são usados – como aqueles que dão as boas-vindas à entrada da loja, com
preços entre um e cinco euros-, mas grande parte são novos. “Vendemos,
essencialmente, livros de editoras mais pequenas, edições de autor e livros
mais difíceis de encontrar”, explica Fernando Ramalho, 44 anos, funcionário do
espaço. Complementarmente, para combater as adversidades do mercado editorial,
vendem ainda manuais escolares, jogos infantis e alguns artigos de papelaria e
já editaram quatro obras. A última foi uma novela gráfica de Júlia Barata, uma
jovem autora que decidiu representar a sua gravidez em desenhos. “Só não
editamos mais porque dá muito trabalho e somos poucos”, explica.
Naquele arruamento,
onde estão instaladas várias oficinas e cafés, há menos movimentação que na Rua
José Estevão, mas Fernando acredita que esta realidade está a mudar. “No
início, havia muitas pessoas que achavam difícil a livraria funcionar aqui, mas
nós acreditámos que era um sítio onde estavam a aparecer coisas novas e a
acontecer uma certa mudança. O fenómeno do turismo já se sente e vê-se um
movimento de pessoas que não são daqui”, explica. Durante o ano, há ainda uma
programação diversificada, que vai desde o lançamento de livros, iniciativas na
área da música e performance, projecção de filmes a actividades para crianças.
Uma rua acima, entre
as ruas José Estevão e Arroios, há outra livraria, bem diferente das que
acabaram de abrir ou estão há menos anos nesta parte da cidade. Há mais de
quatro décadas na Rua Passos Manuel, a Assírio e Alvim, hoje, tem muito menos
gente a entrar, mas continua a ser uma referência no meio editorial. Aqui não
há música de fundo ou cadeirões que convidem à leitura, nem livros no chão.
Quem entra na Assírio e Alvim – comprada, em 2012, pela Porto Editora – sabe
exactamente o que quer, procura títulos e autores muito específicos ou livros
esgotados, discretamente, sem se fazer notar. Aparecem reformados à procura de
um livro em falta para completarem uma colecção, mas também professores e
estudantes de mestrado e doutoramento ou turistas, grande parte brasileiros,
que aproveitam para comprar livros que não conseguem encontrar no país de onde
são naturais.
Os títulos mais procurados são livros de fundo de catálogo e
“algumas colecções da Assírio e Alvim que a Porto Editora não tem interesse em
dar continuidade”, explica Helena Roldão, 41 anos, ali funcionária há mais de
uma década. Além de alguns dos grandes nomes da literatura nacional, é possível
encontrar ensaios de filosofia e catálogos de exposições. Ao final do largo
corredor da entrada, há ainda livros manuseados, com descontos muito
apetecíveis. “São livros com mazelas, que foram devolvidos de outras livrarias,
que estão queimados do sol, ou estragaram-se no transporte”, explica.
Nos últimos cinco anos, há cada vez mais turistas a entrar,
mas também novos moradores, conta ainda. “Há pessoas que deixaram de viver no
centro por causa do aumento das rendas, e começaram a subir a cidade. De
repente, esta rua modificou-se muito e, aos poucos, está a ganhar outra vez
vida”, explica Helena, que assistiu ao esmorecimento daquela zona. Há mais
estrangeiros residentes a entrarem e perguntarem por livros noutros idiomas,
maioritariamente em inglês. “Era raro acontecer e agora acontece cada vez mais.
Temos algumas edições em duas línguas, poesia sobretudo, mas pouco. Muitas
vezes encaminho-os para outra livraria, a Bookshop Bivar”, conta. Refere-se a
uma pequena loja de livros usados, todos editados em inglês, também localizada
na freguesia de Arroios.
Em pleno bairro dos
Anjos, uma das zonas mais multiculturais da cidade, mas também com mais
crianças, Joana Silva, 31 anos, a pensar nos mais novos, lembrou-se de abrir,
juntamente com António Alves, no final de 2016, a It´s a Book. Há uma enorme
oferta de livros infantis de vários países – França, Itália, Inglaterra e
Espanha – e em diferentes idiomas. “A ideia não é tanto chegar aos públicos que
falam noutras línguas, mas ter aquilo que de melhor se faz no universo do livro
infantil. Quem vem cá quer um livro específico e não está preocupado com a
língua”, explica. E não foi ao acaso que escolheu a freguesia de Arroios para
instalar a livraria-oficina. “Moro cá e gosto muito do bairro, sempre achei que
era muito ligado ao mundo criativo e é uma das freguesias com mais crianças de
Lisboa. Pareceu-me o sítio perfeito para inaugurar o projecto”, conta. E,
admite, apesar das expectativas iniciais já serem boas, ficou surpreendida com
a receptividade dos moradores. “Muita gente disse-nos que fazia falta um espaço
dedicado ao universo das crianças e pessoas ligadas ao meio artístico ficaram
muito felizes com o projecto”, recorda.
Licenciada em
Pintura, e com uma grande paixão pelas artes visuais, Joana garante que o que
distingue a It´s a Book de outra livraria infantil é “a criteriosa selecção dos
livros”. “Tento escolher os melhores para diferentes idades, desde os primeiros
meses. As pessoas apaixonam-se primeiro pelo livro, só depois vem o resto”,
esclarece. À loja instalada na Rua do Forno do Tijolo rumam pessoas de todas as
idades, desde alunos de ilustração e design, a estudantes da Escola Artística
António Arroio, e até há quem venha de propósito da Coreia do Sul. “Temos uma
grande variedade de clientes. Entram aqui pais e avós, mas também há quem nos
siga nas redes sociais e venha de propósito da Coreia conhecer o nosso espaço,
porque há lá muitos autores de ilustração infantil”, conta. Algumas vezes por
mês, numa mesa de madeira, quase com o comprimento da loja, acontecem ainda
oficinas para crianças e adultos.
Para terminar o
roteiro literário, é preciso voltar à Estefânia. Acabada de chegar, a livraria
Ler Por Aí, no número dez da Rua Jacinto Marto, também é um café e um
restaurante – pelo menos uma vez por mês, quando se realizam jantares
literários. Aqui, percorre-se o país, atravessam-se continentes e oceanos, numa
viagem que se estende quase pela noite dentro, uma vez que só encerra à
meia-noite. Podem-se experimentar vinhos e iguarias de várias partes do país e
do mundo, quase todos associados a sítios por onde passaram as personagens das
histórias que compõe as estantes. A condição para os livros ganharem um lugar
nas prateleiras é estarem relacionados com lugares, explica Margarida Branco,
49 anos, proprietária do espaço. “Esta livraria não é de viagens, é de lugares.
As viagens são sequências desses lugares. As viagens têm muito a ver com o que
queremos fazer, mas não é apenas isso. Os Maias são um livro para ler em
qualquer sítio, não é de viagens”, explica. À noite, continua a ser um espaço
sossegado, “só muda mesmo a luz, de solar para artificial”, conta, entre risos.
Quem entra pensa que está num café, ao ver uma montra de
bolos e cervejas, logo na entrada, mas, de cá de cima, vê-se a zona da livraria
e um corredor, que vai dar a uma cave, onde decorrem alguns eventos. As mesas,
forradas a cartas náuticas, ao final do dia enchem-se de “petiscos e bebidas
diferentes do habitual”, de várias partes do país e do mundo, desde o sul da
Europa ao Chile. A ementa chama-se “carta de possibilidades” porque muda com
frequência e “nunca é igual”. Na passada sexta-feira (26 de Abril), aconteceu
um jantar literário sobre o livro A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. “A
viagem começou em Lisboa, deu a volta a África, desceu para Goa e terminou no
Japão. Há uma entrada portuguesa, um prato principal indiano e uma sobremesa
japonesa”, conta. A ideia é “dar a conhecer os lugares que os livros falam”.
Durante o mês, há outras iniciativas, como o karaoke de leitura. “Em vez de
letras de música, projectam-se textos e as pessoas participam lendo”, explica.
O sítio na net da Ler Por Aí já existe desde 2006, mas só desde final do
passado mês de Março é que encontrou um espaço físico, onde Margarida espera
ficar “durante muitos anos” para partilhar a história dos lugares que as
centenas de livros expostos guardam.
Moradas e horários:
Espuma dos Dias
Rua José Estevão, 2A e B
Horário: Terça a sexta-feira: 08:30 – 20:00, Sábado: 09:00 –
20:00, Domingo: 10:00 – 20:00
Leituria
Rua José Estevão, 45 A
Segunda, Terça-feira, Quinta-feira e Sexta-feira 14h-19h
Tigre de papel
Rua de Arroios, 25
Segunda a sexta-feira: 13h00-20h00
Assírio e Alvim
Rua Passos Manuel 67B
Segunda a sexta-feira: 10h00-13h00, 14h00- 19h00
It´s a book
Rua do Forno do Tijolo, 30 A
Terça a sábado: 12h30-19h30
Ler por aí
Rua Jacinto Marto, 10B
Segunda a sexta-feira: 16h-24h; Sábado, Domingo e feriados:
11h às 24h
Bookshop Bivar
Rua de Ponta Delgada, 34A
Terça a sábado: 11h00-18h00