OPINIÃO
Apocalipse
na Síria: Alepo, ponto de viragem na guerra?
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 05/02/2016 - PÚBLICO
Milhares
de pessoas em fuga estão a deslocar-se para a fronteira da Turquia,
com esta encerrada. As imagens da destruição apocalíptica de Homs
poderão repetir-se em Alepo.
1. Apocalipse
(apokálypsis). Segundo a Bíblia foi escrito em Patmos, uma das
ilhas gregas do Dodecaneso, no mar Egeu, próximas da Turquia. A
tradição cristã atribui a sua autoria a São João Evangelista.
Historicamente foi local de exílio, de refúgio de perseguidos.
Hoje, pela sua localizaçãoo geográfica, é um dos locais de
chegada dos refugiados da guerra da Síria. Apocalipse, termo de
origem grega que significa revelação. O texto bíblico contém
imagens simbólicas, grandiosas e aterradoras, em forma de visões,
com tremendos confrontos entre o Bem e o Mal antes da vitória do
reino de Deus. Numa interpretação literal foi comumente
identificado com acontecimentos catastróficos que anunciariam o fim
dos tempos. A cultura ocidental está impregnada desse impressivo
episódio bíblico. A pintura de Bosch, de finais do século XV,
retratando S. João a escrever o livro do Apocalipse em Patmos, ou o
filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, nos anos 1970, com a
guerra do Vietname como cenário de fundo, estão entre as mais
brilhantes realizações que inspirou. Marcou gerações e gerações.
Na Bíblia, a batalha do fim dos tempos / Armagedão, situa-se na
planície e colina de Meggido, actualmente em Israel. Podemos
especular se João escrevesse hoje o Apocalipse não o situaria mais
a Norte, na vizinha Síria. Se, em vez de Meggido, não seriam Homs
(ver “A cidade síria de Homs parece um filme apocalítico” in
Público 4/02/2016), ou Alepo, os locais do Apocalipse.
2. As operações
militares e a violência intensificaram-se na Síria. As vagas de
refugiados também — quarenta mil a setenta mil, consoante as
fontes. Ironicamente, o tempo deveria ser de tréguas, de negociações
políticas, de acordos de paz. Afinal, tinham-se iniciado
conversações em Genebra, na Suíça, sob a égide das Nações
Unidas. Infelizmente, aproximaram-se mais de uma farsa. Provavelmente
ninguém acreditou nelas. Nem o governo de Bashar al-Assad, que
pretende rotular a generalidade dos grupos da oposição como
terroristas e melhorar a sua posição militar no terreno. Nem os
representantes da oposição, que, na realidade, apenas o são de
forma parcial e fragmentada. Trata-se de uma amálgama incoerente de
grupos, os quais vão desde os que almejam uma Síria secular,
democrática e pluralista (poucos), até aos que têm por objectivo
instaurar, de alguma forma, um Estado islâmico (muitos). Actores
importantes como os curdos foram excluídos. Enquanto a oposição
reclamava medidas humanitárias, no terreno, as tropas de Assad,
avançaram até aos arredores de Alepo, cortando a principal linha de
abastecimento dos rebeldes. Na prática, isolaram a cidade do apoio
humano e material vindo da Turquia, dada a sua proximidade da
fronteira. Com o domínio russo do ar, os exércitos de Bashar
al-Assad e seus aliados preparam um cerco total a Alepo, para uma
posterior investida militar, ou forçar a rendição da cidade. A
batalha de Alepo em curso pode ser um ponto de viragem da guerra na
Síria, a favor de Assad, que poucos pensariam ser possível ainda
não há muito tempo atrás. A enorme violência não se deve só ao
autoritarismo opressor do seu regime, nem às lutas fratricidas
contra os grupos que o combatem (e se combatem entre si). Os
interesses das potências regionais envolvidas no conflito agudizam
dramaticamente o conflito.
3. Turquia e Arábia
Saudita, por um lado, e Rússia e Irão por outro, são potências
incontornáveis na guerra e na paz — para já têm sido
essencialmente na guerra. A situação é perigosa. Há um crescente
envolvimento político e / ou militar e até de prestígio
internacional que colocaram na guerra da Síria. A Turquia, tal como
a Arábia Saudita, apostou numa guerra por procuração. Só assim se
compreende a benevolência, mostrada durante muito tempo, para com
grupos islamistas-jihadistas, como o Daesh e a Frente Al-Nusra,
próxima da Al-Qaeda. Ambiciona que a futura Síria seja uma espécie
de protectorado. Pretende resolver a questão do Hatay de iure,
território anexado em 1938, nunca reconhecida pela Síria. A
estratégia parecia resultar. A entrada da Rússia na guerra, no
Verão de 2015, alterou os dados, frustrando os objectivos turcos. O
incidente do abate do avião russo, ocorrido em Novembro de 2015,
evidenciou os riscos da confrontação resvalar para um embate entre
grandes potências (incluindo, naturalmente, os EUA e seus aliados da
NATO). Exceptuadas as questões fronteiriças, a Arábia Saudita tem
uma abordagem bastante similar à da Turquia. O zelo missionário
religioso e os imensos recursos do petróleo convenceram os sauditas
de serem o farol do Islão. Pretendem uma Síria sunita, sob a sua
influência. Fornecem a ideologia e o dinheiro para combater Assad.
Patrocinaram, em Dezembro de 2015, a reunião de grupos opositores
sírios — incluindo islamitas radicais como o Jaysh al-Islam —,
para monopolizarem a representação da oposição. Recentemente, o
brigadeiro-general Ahmed Asseri, ligado às forças da Arábia
Saudita no Iémen, disse ao canal Al Arabiya que o país estava
disposto e enviar forças terrestres no âmbito de uma coligação
internacional. Teoricamente, o objectivo seria combater o Daesh.
4. Também o Irão
está fortemente envolvido na guerra da Síria. O apoio a Assad é
político, financeiro e militar. Os factos que emergem do terreno não
deixam grandes dividas. Um exemplo é caso do general Hossein
Hamadani, alto comandante dos Guardas da Revolução iranianos. Foi
morto na Síria, em Outubro de 2015, próximo de Alepo. Oficialmente,
estava, apenas, numa missão de aconselhamento na região. O
Hezbollah dos xiitas do Líbano tem similar envolvimento ao do Irão.
Em Maio / Junho de 2013, numa altura crítica para Assad, o seu
empenhamento na batalha de al-Qusayr, próxima da fronteira com o
Líbano, foi decisivo para a vitória militar. Cerca de dois mil dos
seus mais experientes combatentes atravessaram a fronteira,
juntando-se às forças governamentais. A proximidade entre o Irão,
o Hezbollah e o regime de Bashar al-Assad, é, simultaneamente,
política e religiosa. No Médio Oriente, não há, tipicamente,
linhas de separação entre essas duas esferas da vida humana. Os
alauitas, o grupo religioso de Assad, são uma minoria: 12% ou 13% da
população. A sua crença heterodoxa contém elementos da tradição
islâmica similares ao do xiismo. A veneração de Ali é o mais
óbvio. Uma heresia, para os sunitas. A teologia serve de ponte para
a política. Até ao século XX, e à chegada dos franceses, que
administraram o território entre as duas guerras mundiais, eram uma
população pobre, discriminada e perseguida. Ironias da história,
com Hafez al-Assad, a partir dos anos 1970, passaram a ser detentores
do poder e vistos como opressores, pela maioria dos sunitas.
5. A Rússia tem
sido crucial na manutenção de Assad no poder e na preservação de
alguma legitimidade internacional do seu governo. A Síria é um
tradicional aliado russo, desde os tempos da União Soviética.
Primeiro, foi a intervenção política que se mostrou fundamental. A
Rússia bloqueou várias resoluções no Conselho de Segurança da
ONU. Foi decisiva no momento mais crítico, no Verão de 2013. Nessa
altura, os países árabes sunitas e a Turquia, secundados pelos EUA
e alguns países europeus, procuravam imputar essa responsabilidade
ao governo de Assad, obtendo uma resolução do Conselho de
Segurança, para intervir militarmente. A Rússia vetou. Conseguiu,
até, uma reviravolta diplomática assinalável, chegando a acordo
com os EUA para a eliminação das armas químicas. Dois anos depois,
em finais de 2015, novo impulso, agora militar, através de
bombardeamentos aéreos, teoricamente só contra o Daesh. (Na
realidade atacando, também, outros grupos da oposição a Assad).
Como já referido, a principal vítima desta nova assertividade russa
— ou agressividade, consoante as perspectivas —, foram as
ambições da Turquia. A tensão continua entre as duas potências.
No seu episódio mais recente, o governo russo declarou,
publicamente, ter sérias razões para acreditar que a Turquia
prepara uma intervenção militar terrestre na Síria, existindo
sinais de uma mobilização secreta das suas forças armadas. Não é
claro se estamos apenas perante pressão política e desinformação
russa, como sustenta a Turquia.
6. Com toda a
envolvente e interesses que se jogam na Síria, a batalha de Alepo
vai concentrar o máximo das energias destruidoras dos
intervenientes. O prémio, para o vencedor, pode ser a viragem no
rumo da guerra da Síria a seu favor. É bastante claro esse
objectivo para Assad e os seus aliados. Se a cidade for conquistada
passam a controlar, novamente, a grande maioria do território e as
suas cidades mais importantes. Terá indubitável impacto político e
em quaisquer negociações de paz. Mas isso é a última coisa que a
Turquia, a Arábia Saudita e outros Estados sunitas querem também.
Pelas altas apostas feitas no conflito da Síria, o risco de resvalar
para uma confrontação mais generalizada aumenta. Seja qual for o
resultado da operação militar em curso, a população civil síria,
pelo menos no imediato, vai sofrer, ainda mais, os horrores da
guerra. Num comunicado de imprensa do Conselho de Segurança das
Nações Unidas de 17/08/2015, estimava-se em mais de 250.000 o
número de vítimas e em cerca de 12 milhões, os refugiados e
deslocados. O número hoje é certamente superior, pela continuidade
da guerra e da enorme tragédia humanitária que desencadeou.
Milhares de pessoas em fuga estão a deslocar-se para a fronteira da
Turquia, com esta encerrada. As imagens da destruição apocalíptica
de Homs poderão repetir-se em Alepo.
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