Os
chocalhos já são Património da Humanidade numa "candidatura
modelo"
FRANCISCO ALVES RITO
(em Windhoek) 01/12/2015 -/ PÚBLICO
Candidatura
liderada pelo Alentejo foi aprovada pela UNESCO sem nenhuma objecção.
O fabrico de chocalhos precisa de protecção urgente.
A arte chocalheira
já é Património Cultural Imaterial com Necessidade de Salvaguarda
Urgente, título atribuído pela UNESCO – Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Candidatura foi
aprovada em poucos minutos, sem qualquer objecção.
A decisão foi
anunciada às 14h20 (hora de Lisboa) desta terça-feira pelo Comité
Intergovernamental para a Salvaguarda do Património, que está
reunido em Windhoek, capital da Namíbia, para enorme júbilo da
delegação portuguesa presente na sala da conferência, chefiada por
António Ceia da Silva, presidente do Turismo do Alentejo, e
integrada pela embaixadora de Portugal, Helena Paiva. Os chocalhos,
que se ouviram na sala para festejar, criam "uma paisagem sonora
característica", disse a UNESCO.
A candidatura do
fabrico de chocalhos, instrumentos usados para localizar e dirigir os
rebanhos, foi liderada pela Entidade Regional de Turismo do Alentejo
e Ribatejo (ERT), em parceria com a Câmara Municipal de Viana do
Alentejo e a Junta de Freguesia de Alcáçovas.
Com “alegria e
emoção”, foi assim que o presidente da ERT recebeu a
classificação do fabrico de chocalhos como Património Imaterial. A
decisão da UNESCO, tomada em apenas cinco minutos, foi festejada de
imediato pelos membros da delegação portuguesa. "É mais uma
grande vitória para o Alentejo, para as nossas tradições, para
aquilo que mais é valorizado na nossa identidade”, disse António
Ceia da Silva logo após a aprovação da cadidatura portuguesa,
considerada pelo comité de avaliação da UNESCO como “modelo”.
O responsável pelo
Turismo do Alentejo acrescenta tratar-se de uma “vitória para
Portugal", com grandes repercussões para a região enquanto
destino turístico. “Hoje temos um perfil de turista diferente, que
procura cada vez mais os valores diferenciadores em cada território,
e nós temos trabalhado para isso. Conseguimos o ano passado o
reconhecimento do Cante Alentejano pela UNESCO e conseguimos hoje o
Fabrico de Chocalhos”, disse.
Ceia da Silva
acrescentou que, agora, “há um conjunto de obrigacões, nós somos
responsáveis pelo plano de salvaguarda” da arte chocalheira.
A decisão da UNESCO
deixou satisfeitos também os autarcas alentejanos que integraram a
comitiva portuguesa na capital da Namíbia. O presidente da Câmara
de Viana do Alentejo recebeu o anúncio da aprovação da candidatura
com “emoção e alívio pelo fim da ansiedade”. Bernardino
Bengalinha Pinto disse ao PÚBLICO estar “muito contente pelo
resultado, sem objecções, por ser uma candidatura exemplar” e
esperar que o selo da UNESCO “contribua para o desenvolvimento do
concelho de Viana do Alentejo”. O autarca enviou também “uma
palavra especial para os chocalheiros, porque, sem eles, isto não
acontecia”.
Já a presidente da
Junta de Freguesia de Alcáçovas salientou que a aprovação da
candidatura foi “o culminar de um trabalho” mas também o início
de um novo ciclo. “Hoje foi o primeiro dia do resto das nossas
vidas, é o começo. Agora temos que pegar nesta grande riqueza que
os nossos antepassados nos deixaram e dinamizarmos o que aqui ficou”,
disse Sara Pajote. A autarca alentejana garantiu ainda que não quer
que esta actividade “volte a chegar ao ponto que chegou, de ter
necessidade de uma salvaguarda urgente”. E acrescentou: “Agora é
dinamizar, tentar que [aqueles mestres chocalheiros que lá estão]
impulsionem outros a continuar esta arte.”
O director do Museu
Nacional de Etnologia (MNE), Paulo Ferreira da Costa, congratulou-se
com a classificação agora feita pela UNESCO. “Trata-se de uma
decisão importantíssima", disse o responsável ao PÚBLICO,
pouco tempo após a decisão anunciada na Namíbia.
Tendo assumido a
direcção do MNE no passado mês de Março, Paulo Ferreira da Costa
disse não ter conhecimento de que a instituição tenha sido ou não
solicitada a intervir no processo da candidatura. “Mas o que é
fundamental é a garantia, que a classificação agora dá, de que
este património se manterá no futuro”, notou o director,
estabelecendo um paralelismo com os outros bens classificados pela
UNESCO e considerando que este “é um excelente instrumento para
chamar a atenção pública para a necessidade de salvaguardar esse
bem patrimonial”.
É a primeira vez
que Portugal inscreve um bem cultural na lista do Património
Cultural Imaterial com Necessidade de Salvaguarda Urgente.
Sobre a intenção
dos responsáveis pela candidatura alentejana, nomeadamente Ceia da
Silva, da ERT, de apostar na oferta turística e no artesanato como
forma de salvaguardar esta arte que já não desempenha as funções
utilitárias de outrora, Paulo Ferreira da Costa acha que essa não
deverá ser “a única solução”. “Uma tradição deve ter um
papel social, económico e também simbólico na sociedade que a
produz”, diz, lembrando que a própria UNESCO tem vindo a alertar
para que "o turismo, muitas vezes, pode ser prejudicial à
perpetuidade de certos bens e culturas”.
“Diria que tem de
haver um equilíbrio muito grande entre a promoção turística e
também as utilizações que possam preservar e dar continuidade à
função social e cultural” de um bem como a arte chocalheira.
Segundo a comissão
científica da candidatura a património da humanidade, coordenada
pelo antropólogo Paulo Lima, trata-se de uma arte iniciada há mais
de dois mil anos - é possível encontrar chocalhos celtiberos do
século I a.C. que são idênticos aos feitos actualmente - mas que
agora está em risco de extinção. O fabrico tem uma dimensão
nacional, mas a candidatura baseou-se num trabalho técnico e
científico à volta da arte chocalheira da freguesia de Alcáçovas,
centro do fabrico de chocalhos no país.
O senhor candidatura
Coordenador
científico da candidatura dos chocalhos, o antropólogo Paulo Lima,
esteve em todas as candidaturas portuguesas a património imaterial
da UNESCO. Integrou a comissão executiva da candidatura do fado e
foi o coordenador científico da do cante alentejano. Foi o pai da
ideia da candidatura da arte chocalheira, mas gosta de partilhar essa
paternidade: “A ideia foi minha, foi da Ana Pagará [actual
directora do Mosteiro de Alcobaça], e juntámos uma pequena equipa
que trabalhou durante algum tempo e que teve depois a generosidade da
Entidade de Turismo do Alentejo para podermos instruir o dossier”,
disse ao PÚBLICO.
Segundo o
antropólogo, a equipa científica, que integra também o professor
Jorge Freitas Branco, “percebeu” que o chocalho é “interessante
não apenas pelo objecto em si, mas pelo que representa, pela
necessidade de preservação urgente”. Freitas Branco contou que a
sua ligação à arte chocalheira se iniciou há uma década quando,
como orientador de um doutourando, sugeriu os chocalhos como tema.
O fabrico de
chocalhos é uma arte milenar que tem no território alentejano a
maior expressão a nível nacional, especialmente em três
municípios, Estremoz, Reguengos de Monsaraz e Viana do Alentejo, e
com destaque para a freguesia de Alcáçovas.
O seu fabrico,
refere o dossier de candidatura, é uma actividade metalúrgica
associada essencialmente à pastorícia: "O chocalho português
é um instrumento de percussão (idiofone) munido de um só batente
interno. Este instrumento funciona da mesma maneira que um sino, e é
habitualmente suspenso no pescoço dos animais com a ajuda de uma
correia em couro. Este objecto está estritamente associado ao
pastorícia, pois é utilizado pelos pastores para localizar e
dirigir os rebanhos. A crença diz que este instrumento tem poderes
protectores e mágico-religiosos. Os chocalhos criam uma paisagem
sonora única e característica, de uma beleza rara, que procura um
sentimento intemporal de bem-estar."
O plano de
salvaguarda
A inscrição do
fabrico de chocalhos na Lista do Património Imaterial com
Necessidade de Salvaguarda Urgente implica um Plano de Salvaguarda,
uma espécie de “caderno de encargos" que visa reverter a
tendência de desaparecimento desta arte, garantindo a transmissão
do saber-fazer e a sustentabilidade futura da actividade. Nesse
capítulo, a candidatura portuguesa propõe um conjunto de medidas
para promover o ensino do ofício, sendo a mais imediata a celebração
de um protocolo, que está em preparação, com o Estabelecimento
Prisional de Beja para que um mestre chocalheiro dê formação aos
reclusos.
Criar um centro de
interpretação da pastorícia e da metalurgia tradicional, em
Alcáçovas, encorajar e criar viabilidade económica para esta
actividade, promover a sua protecção jurídica e incentivar a
investigação académica são os outros pontos principais do plano
de salvaguarda apresentado no dossier português.
Uma candidatura que
o relatório da UNESCO considerou preencher todos os critérios
técnicos (cinco ao todo). Primeiro, porque o fabrico de chocalhos é
uma “tradição” passada entre gerações, proporcionando um
“sentimento de identidade e continuidade histórica” que permite
às comunidades locais perceber essa arte como uma “herança
cultural colectiva”. Depois, trata-se de um elemento em “perigo
iminente” de extinção, pois a produção está hoje limitada a
“menos de dez locais, incluindo Alcáçovas, centro dessa prática
com quatro fabricantes em actividade”. Escreve-se também que o
Plano de Salvaguarda proposto pela candidatura “responde às
ameaças identificadas”, incluindo medidas concebidas em estreita
colaboração com os agentes do sector, as comunidades e instituições
envolvidas, “demonstrando forte potencial para melhorar a
viabilidade do elemento de interesse e o rejuvenescimento no fabrico
de chocalhos”.
O relatório de
avaliação confirma que a instrução do processo da candidatura
portuguesa “pode servir de modelo” pelo envolvimento dos agentes
ligados a esta arte, que concordaram com a nomeação de forma livre,
prévia e informada. Por fim, relativamente ao último critério, é
confirmado que os chocalhos cumprem também o requisito de serem um
elemento catalogado. “Está registado e detalhado num catálogo de
inventário de Viana do Alentejo”, lê-se no documento.
O comité da UNESCO
termina este relatório com um convite a Portugal, como Estado
membro, a ter um “cuidado especial” para garantir a continuidade
dos significados culturais do fabrico de chocalhos, “evitando as
possíveis consequências não intencionais” do plano de
salvaguarda, como, por exemplo, a excessiva exploração turística.
com Sérgio C. Andrade
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