domingo, 3 de agosto de 2014

Uma solução engenhosa e vergonhosa / Novo banco, fraude velha.


OPINIÃO
Uma solução engenhosa e vergonhosa
PEDRO SOUSA CARVALHO 04/08/2014 / PÚBLICO

É caso para dizer o banco Bom, o banco Mau e o Vilão. O Banco de Portugal partiu o Banco Espírito Santo em dois. De um lado ficou um banco com os activos de qualidade e que terá um imaginativo e asséptico nome de ‘Novo banco’. Um huxleyano Admirável Banco Novo. O outro banco será um ‘bad bank’ que vai agregar todos os activos tóxicos do antigo BES, tais como os créditos concedidos às holdings da família Espírito Santo.

É uma solução engenhosa porque protege os clientes e depositantes do banco e porque separa o risco soberano do risco bancário. Mas é uma solução vergonhosa porque aplica o mesmo castigo (perda total de património) à família, aos grandes e aos pequenos accionistas, muitos deles pequenos aforradores, clientes ou trabalhadores do banco.

Vamos por partes. A solução é realmente engenhosa. O Estado empresta 4,4 mil milhões ao Fundo de Resolução bancária (um fundo detido por todos os bancos nacionais), que também entra com 500 milhões de euros. O dinheiro (4,9 mil milhões) vai directamente para o capital do ‘Novo Banco’ que passa a ser propriedade do tal Fundo de Resolução. Os actuais accionistas perdem tudo, ou melhor, quase tudo. Ficam accionistas de um ‘bad bank’, que é quase pior do que não ter nada.

A solução tem várias vantagens: O Estado não nacionaliza o banco, pelo menos como aconteceu com o BPN. Como o dinheiro não é injectado directamente no novo BES, os 4,4 mil milhões de euros que o Estado empresta contam como dívida, mas não como défice nas contas públicas. E a probabilidade de os contribuintes perderem dinheiro é diminuta, pois os restantes bancos do sistema financeiro garantem que o Estado recebe o dinheiro de volta.

Há naturalmente uma transferência de riscos do BES para os restantes bancos do sistema financeiro que agora, através do Fundo de Resolução, terão de tentar vender o ‘Novo BES’ para devolver o dinheiro dos contribuintes. E se não conseguirem vender o novo banco pelo menos por 4,9 mil milhões, terão de ser eles próprios a cobrir as perdas.

Mas ao fazer tábua rasa do património dos mais de 30 mil accionistas do BES, como se se tratasse de um grupo de malfeitores, o Banco de Portugal dá a machada final no mercado de capitais. É mais um caso, como o da PT, da Cimpor ou da Brisa, de atropelo aos direitos dos pequenos accionistas.

Quem aplica o seu dinheiro em acções sabe naturalmente que está a correr riscos. Mas muitos portugueses compraram acções do BES ou não venderam porque confiaram na palavra dos reguladores. E perderam tudo.

Quando no dia 10 de Julho Carlos Costa afiançou que o banco tinha uma almofada de liquidez para precaver qualquer percalço, muitos aforradores confiaram e compraram (ou não venderam) acções do BES. Duas semanas depois veio-se a saber que afinal o buraco no BES era muito maior e que afinal a almofada não chegava para nada. E quem confiou no regulador perde hoje tudo.

E quem comprou acções porque Carlos Costa disse no dia 16 de Julho que havia investidores privados interessados no BES comprou porque confiou na palavra do governador. Confiaram tantos que nesse dia as acções dispararam 20%. Os tais investidores privados nunca apareceram. Hoje as acções não valem nada. Zero.

Carlos Costa não terá culpa de ter sido enganado pela anterior administração do BES ou de ter contratado um auditor que demorou muito tempo a descobrir a real situação do banco. E também, imagino, não terá culpa se havia investidores interessados e que deixaram de estar.

Mas quem não tem mesmo culpa são os pequenos accionistas que investiram no banco (ou não venderam as acções) porque confiaram na palavra do governador. E hoje tem um vergonhoso património de zero. E quando quiserem vender o ‘Novo BES’ no mercado de capitais para encaixar dinheiro para devolver ao Estado peçam àqueles que hoje perderam tudo para voltarem a confiar.

OPINIÃO
Novo banco, fraude velha
RUI TAVARES 04/08/2014 / PÚBLICO

Portugal assistiu ontem a um evento raro. O Banco de Portugal tentou convencer o país, — e o mundo financeiro —, da suficiência de um programa de resolução para o Banco Espírito Santo. Uso a expressão “tentar convencer” sem segundas intenções: sendo a confiança o elemento essencial na relação entre os clientes e o sistema bancário, o trabalho de um banqueiro central é sempre um trabalho de persuasão.

Como tal, só o tempo poderá dizer se o esforço de persuasão de hoje funcionou ou não. Se nos próximos dias os depositantes do antigo Banco Espírito Santo, agora crismado de Novo Banco, não forem alarmados por novos esqueletos no armário, pode ser que o banco central consiga superar a primeira prova deste exercício de alto risco. O resto é bem mais complicado e compete ao governo; cá estaremos para ver se poderá cumprir-se a promessa de o caso BES não contaminar a dívida pública e não prejudicar os contribuintes portugueses. A divisão do BES entre “banco mau” e “banco bom”, com todas as complexidades e incertezas que ela oculta, torna tudo isto muito duvidoso.

O governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, foi forçado a admitir que a gestão do Banco Espírito Santo foi muito pouco católica: nos últimos tempos, e provavelmente bem antes disso, a administração do banco, e do grupo familiar em que ele se inseria, incorreram numa série de fraudes e ocultações. Depreende-se claramente do que disse Carlos Costa que haverá responsabilidades criminais a apurar.

Apesar do nome do “banco bom”, Novo Banco, ser uma ingénua tentativa propagandística para fazer crer às pessoas de que estamos a entrar num tempo de fazer tábua rasa, as fraudes do Banco Espírito Santo não têm nada de novo.

E é aí que houve algo de ainda mais extraordinário naquele momento extraordinário. Carlos Costa confessou a inoperância das entidades reguladores perante o capitalismo financeiro conforme ele funciona hoje. As fraudes do Banco Espírito Santo não têm nada de novo: basicamente, dependem da utilização de jurisdições ocultas, empresas-veículo em paraísos fiscais, e um carrossel de operações entre todas elas. O sistema continua tão opaco quanto sempre. Nada mudou. E o governador do banco central confirmou que só quando o banco estoura é que se consegue levantar a ponta do véu. A podridão do império BES ainda está por descobrir.

Posto desta forma, Carlos Costa não disse mais do que dizem todos os grandes críticos do capitalismo atual. Só o disse de forma menos clara. Os velhos vícios continuam intactos por debaixo dos “novos bancos”.

Há maneira de acabar finalmente com isto. Separar bancos de investimento de bancos tradicionais. Obrigar os bancos europeus a revelarem tudo o que fazem as suas subsidiárias. Legislar, ao nível da União Europeia, no mesmo sentido dos EUA com a sua lei FATCA, que obriga todas entidades fiscais, coletivas ou individuais, a declararem os ativos que detêm fora da sua jurisdição de origem. E, finalmente, criar uma unidade especial de investigação ao crime financeiro e económico, sediada no Banco Central Europeu ou na Europol.


Tudo isto pode ser conseguido, mas não pelos governos que temos hoje.

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