Em Portugal a regra é a realidade
ultrapassar a ficção
Por Eduardo
Oliveira Silva
publicado em 5 Ago
2014 in
(jornal) i online
Se correr mal o resgate do BES, pagam os contribuintes ou os clientes dos
bancos
Passámos os
últimos dez anos a ouvir proclamar que a nossa banca era sólida e quisemos
acreditar nisso colectivamente de forma acéfala. Actuámos instintivamente como
aqueles gafanhotos que se dirigem todos para um ponto depois de nascerem,
formando a seguir uma nuvem que devora todas as plantações por onde passa, até
que se dispersa.
A realidade,
porém, mandava dizer que o sistema bancário português não era sólido: BPN e BPP
foram dois expoentes criminais de uma realidade constituída por casos graves
como o do Banif e o do BCP, a que se juntaram as dificuldades pontuais do BPI.
No meio desta
confusão havia uma entidade rutilante chamada BES que muitos viam como a jóia
da coroa bancária portuguesa, até que perdeu o brilho.
Ninguém com
responsabilidades olhou para as notícias, os indícios sucessivos de problemas
e, a certa altura, para o que era óbvio: Ricardo Salgado não era idóneo para
estar à frente de um banco. Se for preciso apontar uma data para essa
demonstração cabal, aqui vai ela: 17 de Janeiro 2013. Nesse dia o i noticiou
que o banqueiro tinha rectificado o seu IRS em 8,5 milhões de euros, alegando
depois esquecimento. Podia-se ter tomado uma atitude, antes ou depois, em
relação a Salgado a pretexto de muitos casos, mas esse era mais que suficiente
e foi mais que comentado. Foi até explicitamente documentado. Nada se fez, a
pretexto de que a rectificação eliminava o ilícito. Ora o que serve para um
cidadão normal pode não servir para um banqueiro.
Deixando o
banqueiro e indo ao banco, há que voltar à questão de saber como foi possível
que nenhum mecanismo tivesse actuado, evitando a sucessão de acções que
acabaram num desvario que levou o BES ao charco.
O banco tinha uma
série de entidades que o fiscalizavam, como lembrou o jornalista Nicolau
Santos. Desde logo, uma auditoria externa (KPMG). Depois uma comissão de
auditoria composta por três administradores não executivos. Havia ainda uma
área de compliance, que conferia a ética dos procedimentos, além de um
departamento de risco global do crédito, que se subdividia em comissões de
acompanhamento dos grandes créditos concedidos. Por fim tinha um departamento
de auditoria e inspecção. Isto só internamente.
Além disso, há o
Banco de Portugal, a CMVM, o governo e o seu inexistente Ministério das
Finanças, a Autoridade Tributária, o BCE, a troika, a justiça e os seus
diversos braços, os órgãos de polícia especializados em crimes económicos, além
da Associação de Bancos, que até tem presidente, que se mostrou surpreendido
com o que se passou.
Nenhuma destas
instância foi suficiente e quem melhor cumpriu foram novamente os media, que,
uns mais cedo outros mais tarde, fizeram um escrutínio cerrado da situação.
O facto, porém, é
que ninguém evitou a derrocada do BES, o tal banco que nada tinha a ver com o
Grupo Espírito Santo e que estava devidamente capitalizado. Por mais voltas que
demos agora, a realidade é que tiveram de ser envolvidos fundos que estavam à
guarda do Estado para resolver o problema de imediato. E não vale a pena
esconder que, se as coisas voltarem a não correr bem, serão os contribuintes
quase inevitavelmente a pagar mais esta factura, ao contrário do que se diz. Mas,
se fosse mesmo a banca a ter de cobrir os prejuízos, a diferença não seria
muita porque quase toda a gente tem conta bancária. E aí coitados dos clientes,
sobre os quais tudo se repercute, como demonstram as absurdas comissões que
lhes são cobradas.
Banca apanhada de surpresa com a
solução para salvar o BES
CRISTINA FERREIRA
04/08/2014 - PÚBLICO
Banqueiros consideram “inaceitável” serem responsabilizados pela dívida “de
alguém [Ricardo Salgado] que fez o que fez e está de férias”. E criticam
supervisores, por não terem actuado atempadamente.
O sector
financeiro só soube durante o fim-de-semana que ia ser chamado a resgatar o
Banco Espírito Santo (BES), apoiado num empréstimo do Estado, o que apanhou de
surpresa a generalidade dos banqueiros portugueses.
Foi no sábado que
os banqueiros portugueses, nomeadamente da CGD, do BCP, do BPI e do Santander,
foram informados pelo Banco de Portugal do caminho adoptado para salvar o
segundo maior banco português, uma solução que envolvia o sistema. E que não era
esperada pela banca, apurou o PÚBLICO, ainda que não constituísse uma
verdadeira surpresa, dado que é uma das vias previstas na lei da
recapitalização.
Havia ainda,
segundo as mesmas fontes, outros sinais de alerta: as acções do BES estavam
numa trajectória imparável de queda e sexta-feira fecharam a 12 cêntimos; o BCE
deu indicações de que teria de ser encontrada uma solução rápida; a agência de
notação canadiana reviu o rating do BES para baixo do grau de investimento (o
que fecha o acesso ao financiamento interbancário e do BCE).
Alguns
responsáveis financeiros consultados pelo PÚBLICO nesta segunda-feira admitiram
que apesar de esta ser uma solução “compreensível” do ponto de vista político,
pois evita que os contribuintes sejam penalizados, é moralmente “inaceitável”:
a banca é chamada a responsabilizar-se pela dívida “de alguém [Ricardo Salgado]
que fez o que fez e está de férias”.
E os supervisores
não actuaram atempadamente e permitiram que o “carro descarrilasse”, pois não
equacionaram o pior dos cenários: a exposição do BES ao universo empresarial
Espírito Santo revelou-se muito maior do que o expectável, pois foi ao banco
que os problemas do GES (com as holdings sob gestão de falências) foram
desaguar. E o GES ruiu em menos de um mês. Não só a equipa de Salgado
desobedeceu às orientações do BdP, já depois de ter sido afastado, aumentando
os financiamentos ao grupo, como foram, entretanto, detectadas novas
irregularidades. Como resultado o BdP teve de realizar emendas sucessivas às
contas o que culminou num prejuízo semestral de 3600 milhões.
Foi neste quadro
de pressão que o BES, transformado em Novo Banco, reabriu nesta segunda-feira.
Dividido em dois: num banco mau (que mantém a marca BES, os seus accionistas,
mas sem licença de actividade e sob a alçada de uma comissão liquidatária) e
num banco novo, alvo de uma injecção de fundos de 4900 milhões. Para os
clientes com créditos bons ou recuperáveis, os depositantes e os trabalhadores
nada mudou, apenas a marca.
É no Novo Banco
que o sistema financeiro vai entrar através do Fundo de Resolução, gerido pelo
Banco de Portugal, mas fundeado pelo sector, na proporção da quota de mercado
de cada instituição. O contributo da banca irá totalizar 500 milhões (incluindo
os 187 milhões que já lá estão), pelo que o Estado fará um adiantamento de 4400
milhões ao Fundo de Resolução. Como colateral, o sector recebe o Novo Banco. E
assim que este for colocado no mercado, até ao Verão de 2016, obterá ou uma
mais-valia, ou ficará a zero ou encaixará um prejuízo.
A ministra das
Finanças deu nesta segunda-feira uma entrevista à SIC, em que esclareceu que os
4400 milhões de euros serão emprestados pelo Estado a 2,8% (mais 15 pontos base
para custos) à taxa média a que o Tesouro se financia junto da troika. A linha
será renovada de três em três meses (até dois anos), com um acréscimo do spread
de cinco pontos-base.
O Novo Banco vai ficar livre de "quaisquer
responsabilidades ou contingências decorrentes de dolo, fraude, violações de
disposições regulatórias, penais ou contra-ordenacionais", assim como de
"quaisquer responsabilidades ou contingências do BES relativas a emissões
de acções ou dívida subordinada." Os possíveis pedidos de indemnização e
processos interpostos por fraudes vão visar o banco mau, que fica com as
posições no BES Angola, no banco na Líbia (Aman Bank) e em Miami (Espirito
Santo Bank). Outra imposição do BdP, inédita, é que os depósitos e aplicações
de gestores, familiares ou outras pessoas que tenham sido coniventes com actos
de gestão irregulares ficam na esfera do banco mau, o que impede o acesso dos
detentores a estas verbas.
A comissão
liquidatária do BES - banco mau, liderada por Luiz Máximo dos Santos, vai
receber 10 milhões de euros para recuperar o valor dos activos tóxicos e
suportar os custos com as diligências. Se no final tiver um lucro, tudo indica,
será transferido para o Novo Banco.
Esta foi a
solução in extremis e que não era a esperada pelas autoridades. Na
quarta-feira, o pior cenário continuava sem ser equacionado, o que possibilitou
que o BdP e Vítor Bento, o presidente do Novo Banco, surgissem a defender a
“solução privada” e a confirmarem que receberam manifestações de interesse de
bancos e de fundos. Horas depois seria a vez do ministro da Presidência vir
dizer que “a primeira linha” de salvamento do BES “deve passar necessariamente
primeiro pelo mercado, pelos accionistas privados”. A expectativa era, portanto, que o dossier se
ia resolver por si. Nada de mais irreal, pelo contexto de dúvidas e incertezas
que se gerou à volta do segundo maior banco privado.
E assim este fim-de-semana,
depois de o banco derrapar na bolsa e sob pressão dos levantamentos, Passos
Coelho e Maria Luís Albuquerque avançaram com uma decisão política executada
pelo BdP: intervieram no BES, mas
colocaram a banca a responsabilizar-se pelo resgate.
As autoridades
tinham pela frente várias hipóteses: deixar o banco falir, o que podia gerar
uma corrida aos depósitos, pelo menos no BES; os privados assumiam uma posição
no BES, o que as sucessivas emendas às contas tornaram inviável, até porque o
BdP não tinha uma proposta em cima da mesa; o Estado entrar no capital e depois
vender o banco, o que tinha implicações para os contribuintes e a dívida tinha
de passar pelo défice; ou o recurso à lei da recapitalização, pelo Fundo de
Resolução, o que minimiza os impactos nos cidadãos e o efeito sistémico.
Nesta
segunda-feira, a CMVM veio também informar que o BES vai continuar cotado em
bolsa, ainda que com a negociação suspensa, e que "abriu um processo de
investigação aprofundada da negociação dos títulos, nomeadamente no dia 1 de
Agosto”. O objectivo é “apurar a eventual existência de indícios de violação do
dever de defesa do mercado e/ou de crime de utilização de informação
privilegiada até ao momento em que a CMVM determinou a suspensão da negociação,
o que ocorreu logo após ter tido conhecimento de iminentes desenvolvimentos que
vieram a ser conhecidos durante o fim-de-semana"
Menos de 24 horas
depois do “desaparecimento” do BES, uma marca com 140 anos, Ricardo Salgado
emitiu uma nota onde afirma que se vai remeter ao silêncio à espera da
conclusão “do relatório da auditoria forense realizada às contas do BES, que
está a ser feita pelo Banco de Portugal e pela PwC”. E que só voltará a falar
quando “o tempo e o contexto permitirem uma análise objectiva e serena do que
precipitou a queda abrupta do valor do BES e a consequente intervenção do
Estado”.
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