Caixa de Pandora
São José Almeida
/ 2-8-2014 / PÚBLICO
Ao formalizarem
as candidaturas às eleições primárias para escolha do candidato a
primeiro-ministro em nome do PS nas legislativas de 2015, António José Seguro e
António Costa abriram uma caixa de Pandora na política portuguesa. E a caixa de
Pandora que agora foi aberta tem implicações na política e na sociedade
portuguesas, a três níveis.
Representam a
introdução, sem preparação prévia e sem regras pré-acordadas, de uma inovação
no funcionamento do sistema político-partidário. É uma inovação recente, feita
à custa do enxerto de uma americanização que nada tem a ver com a tradição dos
sistemas europeus. Abrem espaço ao regresso da actividade políticopartidária a
uma terra de ninguém no que se refere aos financiamentos.
Na qualidade de
presidente da comissão eleitoral responsável pelas primárias, Jorge Coelho tem
dado indícios de preocupação de que esta experiência no PS descambe em
descontrolo, não só do ponto de vista da agressividade do debate, mas também no
que se refere à criação de possibilidades de fiscalização oficial dos gastos e
dos financiamentos da campanha. E esta semana foi fulcral neste domínio, ao
serem entregues pelos candidatos os seus orçamentos de campanha, que previam
ambos a recolha de donativos privados.
Assim, numa
campanha em que o PS disponibiliza 300 mil euros divididos pelos candidatos,
estes, além dos respectivos 150 mil euros que recebem do partido, ainda
tencionam recolher donativos — Costa no valor de 13 mil euros e Seguro no valor
de 15 mil euros. É certo que o problema se torna mais gritante com a soma quase
ridícula que os candidatos fizeram questão de incluir de donativos privados. Mas
qualquer que fosse a soma incluída, a questão é a de saber quais as
consequências de recorrer a donativos privados nesta campanha.
Isto porque se
estes donativos não puderem ser inscritos como donativos aos partidos - e para
o serem têm que caber dentro das regras que existem e que não previam a
existência de primárias - serão considerados donativos aos candidatos a título
pessoal e, nessa condição, não são fiscalizáveis pela Entidade das Contas que
funciona no âmbito do Tribunal Constitucional. E se isso acontecer, o facto é
que o PS estará a abrir a porta ao regresso da vida partidária a um clima de
suspeição de que possa haver relações promíscuas entre os políticos e
interesses privados.
Esta questão
entronca no que é o cerne da regularização da vida dos partidos dentro dos
cânones éticos da vida em democracia. É conhecida a máxima de que “à mulher de
César não basta ser séria, tem de parecer séria”, e é também do domínio público
o esforço que tem sido feito para que a actividade política surja como
transparente aos olhos dos cidadãos e para que os políticos não sejam vistos
como gente potencialmente pouco séria, que se serve da entrega à causa pública
para satisfazer interesses privados, a começar pela sua conta bancária.
É até curioso o
facto de este alegado esforço de transparência na vida pública estar a ser um
lema de campanha interna do actual secretário-geral, António José Seguro,
político que, aliás, conhece bem os problemas que se colocam ao controlo e
fiscalização dos financiamentos partidários, já que foi ele quem se encarregou
deste dossier no passado em nome do PS, nomeadamente nos processos legislativos
em que o regime de fiscalização das contas dos partidos e das contas das
campanhas eleitorais foi sendo aperfeiçoado.
António José
Seguro, ao lançar o processo das primárias, assim como o seu desafiante António
Costa, ao aceitar disputar através deste recurso a liderança do PS, sabiam que
estavam a entrar num caminho de inovação de procedimentos na organização da vida
partidária cujas consequências não são previsíveis. E sabiam-no não só pelo que
é a possibilidade de o Estado garantir a fiscalização do sistema, mas também
pelas contradições que esta forma de escolha de candidatos a primeiro-ministro
contém em relação à lógica do sistema político português, o qual não inclui
sequer a eleição de um primeiro-ministro — por mais personalizadas que as
lideranças políticas e a governação tenham sido nas últimas duas décadas, como
salientou Marina Costa Lobo, no PÚBLICO, na quinta-feira.
Não se pretende
aqui estar contra a manifesta necessidade de melhorar o sistema de
funcionamento dos partidos e da vida política em geral, mas convém que haja o
bom senso de não abrir a porta à desregulação da vida institucional e pública,
a qual, em democracia, tem como pilar estruturante os partidos políticos.
Sem comentários:
Enviar um comentário