02.09.2021
às 08h30
Mafalda
Anjos
Jornalista
e ex-diretora da VISÃO
O
“escorpião” traidor. Eis Marcelo Rebelo de Sousa nas memórias de Balsemão
Facadas
imperdoáveis, traições, imbecilidades, exibições. Tudo isto, ipsis verbis,
conta Balsemão nas suas memórias, que chegam hoje às bancas, acerca de Marcelo
Rebelo de Sousa
Francisco
Pinto Balsemão, chairman do Grupo Impresa, tem, aos 84 anos acabados de fazer,
uma vida extraordinariamente cheia: fez parte da ala liberal antes do 25 de
Abril, fundou o Expresso e a Sic, foi Primeiro-Ministro, privou com grandes
nomes nacionais e internacionais e figura entre os grandes senadores da Nação.
Não é, pois, de estranhar que as suas memórias políticas de 1000 páginas, que
saem hoje para as livrarias (Memórias, Porto Editora), venham recheadas de
relatos de momentos onde surgem muitos dos protagonistas da nossa História
recente.
É o caso
do atual Presidente da República, com quem Balsemão tem uma relação antiga e
tumultuosa, e sobre o qual fala amiúde nesta sua espécie de auto-biografia.
Como em todas as auto-biografias, o autor conta apenas a sua versão de alguns
dos acontecimentos, na sua perspetiva particular, umas vezes dando versões
benevolentes e outras lançando farpas, ainda que sempre elegantes.
Sobre
Marcelo Rebelo de Sousa fala primeiro entre parênteses quando diz que a sua mãe
lhe chegou a dar vários raspanetes: “Ela vibrava, tomava sempre o meu partido,
ai de quem me fizesse mal ou ela entendesse que me queria fazer mal (Marcelo
Rebelo de Sousa que o diga que ainda recebeu algumas descomposturas dela)”. Ou
quando fala nas suas “exibições natatórias” na baía de Cascais.
Sublinha
a sua inteligência e astúcia, e noutras passagens mais inocentes, relata
aspetos caricatos, como o facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter “a mania de
surpreender as pessoas fazendo-lhes, inesperadamente, cócegas”. Em 1975,
chegaram os dois a apostar que o faria a Mário Soares. “Marcelo Rebelo de Sousa
aproxima-se dele, pelas costas, faz-lhe cócegas, dá uma gargalhada e diz algo
ininteligível. Soares domina o espanto, e talvez o desagrado, e acaba por
sorrir. Marcelo pisca-me o olho, marcando que ganhara a aposta…”
É preciso
chegar à página 230, inusitadamente a uma passagem onde enumera as várias
secções do Expresso, para Francisco Pinto Balsemão abordar, pelo meio de uma
análise do jornal, a um dos momentos que marcou a rutura entre os dois: o
celebre frase “lelé da cuca” com que o jornalista Marcelo presenteou o então
diretor Balsemão na coluna “Gente”, a 5 de agosto de 1978.
“Também
aqui, embora a ‘Gente’ não fosse assinada, Marcelo Rebelo de Sousa marcou a sua
presença, com a vantagem de poder negar ser ele o autor, quando as coisas não
lhe corriam de feição (e era eu, como Diretor, que tinha de enfrentar e aturar
os protestos dos visados). Claro que Marcelo, fazendo jus aos que defendem que
ele, como o escorpião da lenda, não resiste a matar a rã, acabou por exagerar,
até cometer a imbecilidade de enxertar, num das ‘soltas’ da ‘Gente’, uma
referência, totalmente a despropósito, a mim, escrevendo que eu era ‘lelé da
cuca’ !”, relata Francisco Pinto Balsemão.
A fábula
do escorpião conta a história de um bicho que pede a uma rã para o passar para
a outra margem do rio, e acaba por ferrá-la com o seu veneno a meio da
travessia, mesmo sabendo que se vão afogar os dois, porque é simplesmente da
sua natureza.
“Isso foi
um primeiro sintoma grave de que eu não podia confiar nele. Segundo um dos seus
biógrafos, Vítor Matos: a “frase perseguirá Marcelo toda a vida, como exemplo
de loucura irresponsável”, escreve Balsemão. (Marcelo haveria mais tarde de
justificar o acontecimento assim: “Eu tinha a suspeita de que a revisão estava
a trabalhar mal e fiz isso para os experimentar. Infelizmente, verifiquei que
era verdade.”)
Noutra
passagem fala da atitude “perfeitamente inconsciente e pouco inteligente,
armado em enfant terrible” quando, em 1973, Marcelo Rebelo de Sousa decide
desrespeitar dois ou três cortes dos censores. O castigo foi fatal: tiveram de
passar a enviar provas de página inteira do Expresso para a revisão do lápis
azul.
Volta à
fábula do escorpião quando, a páginas tantas, se refere da entrada de Marcelo
Rebelo de Sousa para o seu Governo. “Algumas pessoas amigas que consultei
avisaram-me e tentaram evitar que o convidasse. ‘Estás a meter o veneno em
casa’ – dizia um. ‘Estás a aproximar-te do escorpião da fábula, e tu serás a
rã’ – dizia outro”.
Mas a
opção era pior ainda, relata Balsemão. “Ou permanecia no Expresso a tentar
atormentar-me e complicar-me a vida, ou aproveitava o momento para pôr-se a jeito e vir para o governo, que era, no
fundo, aquilo que ambicionava”, explica.
Ainda que “consciente do perigo de ter Marcelo dentro do Governo, pelas
inconfidências que iria cometer e eventuais intrigas que iria criar”, acabou
por “não resistir à tentação” de o convidar para Secretário de Estado da
Presidência do Conselho e depois, mais tarde, numa remodelação em junho de
1982, para Ministro dos Assuntos Parlamentares.
Correu
mal. A 9 de dezembro, a três dias das eleições autárquicas, “depois de uma
titubeante introdução”, acaba por pedir a imediata demissão com “explicações
vagas e pouco convincentes: cansaço e necessidade de se dedicar à carreira
académica”. Foi, como escreve Balsemão, “o maior balde de água fria” que
recebeu desde que em 1980 foi indigitado Primeiro-Ministro e “um golpe baixo”.
“Para não dizer, a maior traição, o que seria talvez o mais apropriado”,
reforça.
As
reações à notícia do pedido de demissão, que acabou por vir a público, foram,
como seria de esperar, altamente críticas: “A desagregação da AD é tão grande
que o Governo começa a cair antes de saber os resultados eleitorais”, escreveu
à época Jaime Gama, porta-voz do PS. Adiante refere-se ao acontecimento como
“uma facada imperdoável” que minou as suas “relações pessoais e profissionais”,
que “nunca mais foram as mesmas”, mas que Marcelo “deu a típica meia volta e
ficou até ao fim (aliás, como Parlamento dissolvido, o Ministro dos Assuntos
Parlamentares tinha pouco que fazer…)”.
O resto é
história. Marcelo Rebelo de Sousa consagrar-se-ia, além de reputado professor
universitário, comentador político, mas sem nunca passar pela Sic ou pelo
Expresso; seria eleito presidente do PSD entre 1996 e 1999, e é, desde 2016,
Presidente da República. Os dois têm hoje, nas palavras de Balsemão, uma
“relação cordial”. E têm de privar nas reuniões do Conselho de Estado e em
cerimónias públicas como as que acontecem hoje, quando Francisco Pinto Balsemão
será homenageado, em São Bento, numa sessão pelos 40 anos do VII Governo
Constitucional, o segundo da Aliança Democrática. Mas a memória do “escorpião”
continua, como se pode ler neste livro, bem vívida para Balsemão.

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