REPORTAGEM
Ainda à espera de um futuro, jovens timorenses em Lisboa
lutam por ficar em Portugal
Timorenses chegam a Lisboa na ilusão de encontrarem
trabalho, mas a falta de alojamento e as burocracias para a obtenção de
documentos estão a dificultar-lhes a vida.
por Ana da Cunha
e Inês Leote
11.01.2023
“Em Timor-Leste
eu estava a estudar para ser engenheiro civil!“
“E eu para ser
engenheiro eletrónico!”
“Vocês já têm
documentos?”
“Sim, sim, NIF e
NISS!“
“Então têm de me
mandar os vossos documentos. Quero que mandem para o meu telemóvel“.
Os olhos de
Tomerlius, ou Lius, como é conhecido o jovem timorense de 24 anos, iluminam-se
perante a perspetiva de emprego em Lisboa. E também os de Fabianus, o seu amigo
de 30. Ambos estudaram Engenharia na faculdade, em Díli. Lius andava em
Engenharia Civil, Fabianus em Engenharia Eletrónica. Hoje estão em Lisboa, à
procura de um futuro que o país deles lhes nega. “Andámos juntos na faculdade”,
explica Fabianus.
João Bosco tem 24
anos e é licenciado, mas em Saúde Pública. Também trocou Timor-Leste por
Lisboa: “O trabalho é pouco, é preciso sair”. E saiu, deixando para trás o pai
e a mãe, com quem fala todos os dias: “É uma tristeza…”, desabafa.
Lisboa anoitece
às portas de uma pensão nas proximidades do Martim Moniz. Com a noite, chega o
“pai Tiago”, como é conhecido Tiago Cardoso, um consultor de recursos humanos,
também ele de origem timorense, que aqui vem prestar auxílio aos timorenses que
chegaram a Lisboa nos últimos tempos… e foram muitos.
“Timor é um país
recente, está na fase de enriquecer os tubarões e esquece-se de criar postos de
trabalho”, acusa Tiago.
Fabianus e Lius
estudavam engenharia em Timor. Foto: Inês Leote
O salário médio
em Timor ronda os 160 euros. E por isso quando jovens estudantes como Fabianus
e Lius ouviram discursos como o de Marcelo Rebelo de Sousa na Universidade de
Dili, numa visita de Estado em maio de 2022, Portugal tornou-se terra de
oportunidades.
“Façam por ter
melhores contactos, e irem mais a Portugal. Se for preciso uma ajudinha, não
vão todos ao mesmo tempo, se não o Ministro das Finanças protesta
imediatamente, mas vão assim por fatias… vão indo por fatias”, disse Marcelo.
Claro que o apelo
do Presidente da República – involuntário – não explica por completo os 6 735
timorenses que terão entrado em Portugal em 2022, segundo dados apurados pela
Antena 1 junto do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), mas contribuiu
para criar a ilusão desse futuro que Lius, Fabianus e João procuram.
A Lisboa, os
timorenses começaram a chegar em março e a fixar-se em três pontos: Martim
Moniz, Igreja de Santo António e a Estação Fluvial do Terreiro do Paço.
Mas o sonho, para
muitos, seria ainda mais longínquo: a Irlanda do Norte, considerada o “El
Dorado”. “A comunidade timorense em Inglaterra foi aumentando, com as redes
sociais a propagar vidas fictícias de luxo”, explica Tiago Cardoso.
O sonho que lhes
venderam
Todos os
timorenses nascidos até à independência podem pedir passaporte português – um
documento que lhes permite circular e trabalhar na União Europeia. As agências
aproveitaram-se e os timorenses endividaram-se para aqui chegar: pagaram a
viagem com recurso a empréstimos a 100%, e com juros muito elevados, dizem.
Venderam-lhes o
sonho.
Aterraram em
Portugal, alguns foram encontrando trabalhos agrícolas sobretudo nas zonas de
Beja e de Serpa, rumando para Lisboa quando o trabalho acabava. Outros
conseguiram chegar a Inglaterra, como foi o caso do marido de Argentina Manuela
Pinto.
Argentina tem
apenas 24 anos, mas o seu passaporte já tem um “X” bem marcado: saiu de
Timor-Leste à procura do marido que emigrou para Bristol. Ela, não passou a
fronteira. Veio para Lisboa, onde agora procura emprego.
O imbróglio para
se conseguir o NIF
Os cidadãos
timorenses podem entrar em Portugal sem visto e aqui permanecer durante 90
dias. Para trabalharem em Portugal, estes imigrantes precisam do número de
Identificação Fiscal (NIF) e de preferência do número da Segurança Social
(NISS).
Será então
possível, com um contrato ou promessa de contrato de trabalho, pedir-se a
manifestação de interesse (processo de requerimento de autorização de
residência).
Tiago pergunta a
Lius e Fabianus: “Como é que vocês conseguiram os documentos?”. A resposta não
devia ser a esperada, mas é: “Fomos a um escritório na Amadora, pagámos 123
euros”.
É aqui que
começam, contam, as falcatruas.
Para pedir o
NISS, os cidadãos estrangeiros podem ir a um balcão de atendimento, e até já é
possível fazê-lo online. O problema é o NIF.
Embora se tenha
publicado um Ofício Circulado com a informação de que a presença de um
representante fiscal (qualquer pessoa, singular ou coletiva, com residência em
território nacional) não é obrigatória para a atribuição do NIF a cidadãos
estrangeiros, muitas repartições das finanças continuam a exigi-lo, como a
Mensagem verificou ao ligar para a Autoridade Tributária.
Além disso, por
vezes são exigidos documentos como certificados de residência com validade de
seis meses, que nem todos têm, até porque muitos já estiveram meses na rua.
Mariana Carneiro,
ativista dos direitos humanos da SOS Racismo, tem-se voluntariado para ser
representante fiscal de muitos destes imigrantes. Ela, “a mana Mariana”, resume
em poucas palavras:
“Tu sem NIF não
existes”. O NIF é o primeiro passo para tudo o resto: “É uma pescadinha de rabo
na boca, não tens NIF, não podes trabalhar, não trabalhas, não tens dinheiro,
não podes sair da rua”.
E os timorenses
garantem que há quem, à custa da burocracia, se aproveite da situação para
lucrar com a atribuição do NIF e do NISS. “É uma hipocrisia dizer que um
representante fiscal é uma proteção fiscal”, diz Mariana. “As pessoas são
atiradas para as máfias e para os advogados gananciosos”.
“A atribuição do
NIF e do NISS tem de ser feita pelas próprias pessoas e gratuitamente. As
pessoas têm de ser capacitadas e têm de ter tradução em tétum”, acrescenta.
A Ordem dos
Advogados (OA) anunciou que ia prestar auxílio jurídico aos timorenses, mas
pouco parece ter sido feito em Lisboa. A Câmara Municipal explica que, quando
os timorenses são identificados, são encaminhados para as entidades competentes
para regularizarem a sua situação, com tradução disponível em articulação com a
Embaixada.
Porém, Mariana
denuncia: “Até hoje não há ninguém a tratar dos NIFs”.
Lius e Fabianus
queixam-se de terem sido vítimas destes esquemas. E há quem se queixe de ter
sido sujeito a contratos de trabalho que não eram cumpridos – muitas vezes
estes contratos surgem apenas para se conseguir a manifestação de interesse que
permite a regularização do estrangeiro.
Januário desce as
escadas da pensão descalço. Usa uma camisola vermelha e calções: parece não ter
frio, nem mesmo em janeiro. Conta a sua história: ao chegar a Portugal, a
Pegões, um cidadão indiano ofereceu-lhe casa e trabalho numa estufa de
morangos, a ele e a três amigos. Foi o patrão que lhes tratou dos documentos,
mas nunca cumpriu com os pagamentos acordados.
Januário veio de
Pegões, onde foi explorado por um homem indiano. Foto: Inês Leote
“O indiano tinha
um contrato a trabalhar ao mês e pagava à hora. Quando lhe apeteceu,
dispensou-me, mas não pagou nada. E correu comigo lá de casa”.
Ele e os amigos
acabaram por vir para Lisboa. Dois deles voaram recentemente para Inglaterra.
“E conseguiram lá chegar?” Januário acena com a cabeça. “E tu? Vais cá ficar?”.
“Sim, quero ficar”, diz ele. “Procuro trabalho, qualquer coisa”, diz, a
batalhar com o português.
À procura de uma
cama para dormir
Lius e Fabianus
fazem parte de um grupo de timorenses que ainda consegue pagar os dez euros por
noite numa pensão. Mas, claro, sem trabalho, o dinheiro esgota-se.
Há pouco tempo,
havia um grupo de timorenses que pernoitava junto à Estação Fluvial do Terreiro
do Paço – junto do restaurante do Cais da Marinha que está prestes a abrir.
Chamavam-lhe “a praia”, onde esperavam que as tendas onde dormiam virassem
teto.
Na semana
passada, uma semana antes da inauguração do Restaurante da Doca da Marinha (um
investimento novo na cidade) entre a Estação Fluvial e o Terminal de Cruzeiros,
a CML pediu à comissão informal que tem ajudado os timorenses, e da qual fazem parte
Mariana e Tiago, para que encaminhassem 80 dos imigrantes que estavam na rua
para o Centro de Alojamento em Sete Rios.
Por estes dias é
preciso procurar para se encontrar vestígios daqueles que durante meses ali
acamparam: ainda resta uma peça metálica que pertenceu a um velho corta-unhas,
um cartão SIM, um desses papéis azuis onde ainda é possível ler-se a sigla AT
(Autoridade Tributária), escovas de dentes gastas…
Tudo o resto
desapareceu.
Isto ocasionou
uma reação em cadeia: para se alojar esta população, outros migrantes tiveram
de ser realojados em Fátima e Alcoutim. Passaram a ser 101 pessoas em Sete
Rios. “Está sobrelotado. Foi criado para ser uma resposta de 72h, mas há
pessoas lá há dois meses”, diz Mariana.
Cerca de 30
destes timorenses foram para o Fundão. Privilegiou-se a permanência no centro
daqueles que ou estão a trabalhar ou estão à espera de um voo de regresso.
Muitos timorenses já circularam por todo o país, sempre à procura de emprego
para pagar as dívidas.
Sem alojamento
nem lugar
Questionada sobre
a possibilidade de abrir mais centros, a Câmara Municipal de Lisboa respondeu
que “a abertura de novos pontos carecerá sempre de articulação com todas as
entidades envolvidas e terá de ter em conta as soluções disponibilizadas pelos
organismos competentes da Administração Central, como o ACM”.
O Centro de
Alojamento de Emergência Social em Sete Rios.
Ao ligar para o
Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM), a resposta é
inequívoca: “Não há alojamento, tem de arranjar emprego”, dizem, quando a
Mensagem liga, como se fosse um refugiado. No final da chamada, aconselham
tentar o número 144, a linha Nacional de Emergência Social.
As primeiras três
chamadas para a linha 144 não são atendidas, provavelmente por estar
sobrecarregada. À quarta, respondem que seria preciso identificar o timorense
em situação de sem-abrigo, e que tentariam ver se havia alojamento disponível
numa pensão.
O que tem
acontecido até agora é que estes imigrantes acabam por “girar pela rua, pelas
pensões…”, explica Mariana Carneiro. Alguns timorenses queixam-se de escassez
de alimentos e de falta de acompanhamento técnico.
Desde que
começaram a chegar a Lisboa, Mariana diz já ter contactado com 537 timorenses:
“Há graves problemas no acolhimento. Falta coordenação entre os serviços, todas
as instituições dizem isso”.
Para Adriano, o
caos fê-lo perder a esperança. Dias antes de ser levado do Cais Fluvial para o
Centro de Alojamento, este jovem de 29 anos contemplava o Tejo e confessava a
sua vontade: voltar. “O meu pai morreu, quero voltar para estar com a minha
mãe”.
Nesse dia, os
timorenses tinham reunido todo o seu dinheiro para comprar almoço. Numa
frigideira, ferviam mexilhões embebidos em molho. Sobrevivia-se à espera de um
futuro. E Adriano contava que o irmão, que viera com ele para Portugal,
conseguira chegar a Inglaterra.
Ao abrigo do
programa ARVoRE da OIM (Organização Internacional das Migrações), Adriano já
pediu voo de regresso para Timor: “Aqui está frio, quero o calor de Timor”.
Assim que chegar ao país dele, não poderá voltar a Portugal nos próximos três
anos.
Lius e Fabianus
têm mais esperança. Falam sobre as suas expectativas, o seu futuro. Lius é o
mais entusiasta dos dois. Já consegue falar português sem grandes atropelos. É
um dos problemas: embora o português seja língua oficial de Timor-Leste, a
maioria não o domina. “Dávamos na escola, mas falávamos todos tétum fora da
sala de aula”, diz Lius.
“Era preciso
pensar num plano de formação e desenvolvimento de competências”, explica Tiago.
Ele fez isso: elaborou um plano e enviou-o para a Embaixada de Timor-Leste, sem
resposta. “Portugal tem falta de eletricistas, de calceteiros, de
mão-de-obra…”.
Nem o ACM, nem a
Embaixada de Timor-Leste responderam às questões da Mensagem sobre planos de
integração. Apesar disso, esta comissão informal tem conseguido alguns
sucessos. “Já consegui colocar cerca de 20 timorenses entre novembro e outubro
no mercado de trabalho”, diz Tiago.
Ela que, aos 37
anos, já atravessou muitas fronteiras: foi despedida de uma fábrica em
Inglaterra por estar grávida, conta, e teve o filho em Timor-Leste, onde o
deixou em segurança. Veio para Lisboa à procura de sustento para a família.
Foi graças a
Tiago que encontrou emprego. O mesmo pode dizer João Bosco, o jovem que traz um
passe amarelo ao pescoço. É o cartão mágico que Tiago e Mariana conseguiram
pagar pedindo ajuda aos amigos.
Com o passe, João
vai até à pastelaria onde trabalha com um contrato de um ano e até ao Centro de
Alojamento de Emergência Social onde, por agora, está a viver. “É o mais
difícil: arranjar casa em Lisboa”, diz ele.
Um dia, João quer
trabalhar na área em que estudou, mas até lá, contenta-se em amassar
croissants. “Gosto do trabalho, gosto de aprender a Língua Portuguesa”, começa
por dizer.
“Eu agradeço pelo
meu pai Tiago e por todas as pessoas portuguesas que me ajudaram”, diz. Com os
olhos postos no céu, Lius repara nos edifícios: “Gosto da construção de
Lisboa”, diz, sorrindo. Quando não se tem nada, tudo pode ser um sinal de
esperança.




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