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ANÁLISE
Marcelo, o Presidente-comentador em crise de audiências
Marina Costa Lobo afirma que a presidência de Marcelo
“não tem qualquer objectivo político maior” e “descura o papel de contrapoder”
ao Governo.
Ana Sá Lopes
11 de Dezembro de
2022, 6:00
Dois episódios
marcaram um volte-face na condescendência com que a maioria dos comentadores
sempre tratou Marcelo Rebelo de Sousa – a desvalorização do número de vítimas
conhecidas de abusos sexuais na Igreja e o “enfim, esqueçamos isto” sobre os
direitos humanos no Qatar.
Talvez a mais
impressionante crítica a Marcelo tenha vindo de um dos seus, Miguel Monjardino,
no artigo “O flautista de Hamelin e o futuro de Portugal”, publicado a 2 de
Dezembro no Expresso. Assumindo-se como eleitor de Marcelo tanto na primeira
como na segunda volta, o professor e comentador de política internacional
escreve a mais implacável frase que alguém escreveu sobre o Presidente: “O
comentador Marcelo Rebelo de Sousa constitui, pelo seu recente comportamento,
uma ameaça à credibilidade da instituição da Presidência da República e ao
futuro de Portugal”.
As críticas a
Marcelo, vindas da direita, têm sido constantes. Mas Monjardino pode ser
acusado de tudo menos de falta de moderação. A frase radical, tendo como motivo
principal a expressão de Marcelo sobre os direitos humanos no Qatar (“Enfim,
esqueçamos isto”) é complementada com a afirmação de que “o problema é que em
vez de um Presidente da República elegemos um comentador com urgência pessoal e
compulsão para se pronunciar, instantaneamente, sobre tudo”.
O “cata-vento de opiniões erráticas”
Marcelo está
então a revelar-se o tal “cata-vento de opiniões erráticas”, que Passos Coelho
em 2014 afirmava não querer apoiar? Miguel Relvas, braço-direito de Pedro
Passos Coelho admite que sim, que “infelizmente, a realidade está a demonstrar
a tendência que era falada na moção”.
Recordemos os
factos: ao referir-se à estratégia para as presidenciais de 2016, a moção de
Passos Coelho defendia a tese de que o partido não deveria apoiar um
“protagonista catalisador de qualquer conjunto de contrapoderes ou num
cata-vento de opiniões erráticas em função da mera mediatização gerada em torno
do fenómeno político”, nem “deve buscar a popularidade fácil”. O retrato
encaixava no protocandidato Marcelo Rebelo de Sousa que, depois de ler a moção,
nesse Janeiro de 2014, decide logo retirar a sua “pré-candidatura”.
Na sua rubrica
dominical na TVI comenta (-se) e anuncia: “Claramente, eu acho que ele [Passos
Coelho] quis excluir da moção de estratégia o candidato Marcelo Rebelo de
Sousa. Quis, o que é perfeitamente legítimo. Está nas suas mãos e quis fazê-lo.
A questão está resolvida.” A questão resolvida era que “o candidato Marcelo
Rebelo de Sousa não avançaria porque “se o líder do partido fundamental da área
diz que é indesejável, uma pessoa de bom senso, a menos que queira fazer um
exercício de vingança ou um exercício lúdico, não vai dividir o eleitorado
pondo a vitória mais fácil ao candidato do outro lado”.
As coisas acabam
por se compor. A força de Marcelo no PSD profundo era enorme e vários amigos de
Pedro Passos Coelho convencem-no de que a melhor estratégia era o PSD dar o seu
apoio formal àquele que tinha classificado como “cata-vento de opiniões
erráticas”.
Para a politóloga
Marina Costa Lobo, o artigo de Miguel Monjardino “é importante na medida em que
sinaliza o desconforto da direita moderada com a acção presidencial. Miguel
Monjardino é um apoiante de Marcelo Rebelo de Sousa, mas também um observador
atento da política externa portuguesa e não pode senão ser crítico das
actuações recentes do Presidente”.
Marcelo é eleito
Presidente em Janeiro de 2016 com 52% dos votos, com o PS dividido entre as
candidaturas de Sampaio da Nóvoa e de Maria de Belém Roseira. Em 2021, com o
apoio informal do PS, através de declarações públicas de muitos dos seus
principais dirigentes – mau grado a candidatura da socialista Ana Gomes, que
não teve o apoio da direcção – Marcelo obtém 60,7%.
Das duas vezes,
Miguel Monjardino votou em Marcelo Rebelo de Sousa. Menos de dois anos após a
segunda eleição, mostra-se arrependido no texto do Expresso: “A grande
contribuição de M.R.S. como comentador tem sido a infantilização permanente de
Portugal. Tal como o flautista de Hamelin (…) atrai-nos com uma sucessão diária
de factos e histórias que nos conduzem de forma silenciosa à irrelevância”.
Miguel Relvas,
que tem sido muito crítico do Presidente da República, considera o artigo de
Miguel Monjardino um texto de “alguém indignado que deve ser levado a sério.
Temos que levar isto a sério, a ver se conseguimos nos próximos dois anos e
meio… Não quero repetir frases do passado”. A frase do passado que Relvas não
quer repetir é uma que Cavaco Silva dirigiu ao então Presidente Mário Soares
nos anos 90 do século passado, bastante melíflua e perversa perante as críticas
de Soares ao Governo: “Temos que ajudar o senhor Presidente a terminar o
mandato com dignidade.”
O jornalista do
Expresso Vítor Matos, autor da biografia de Marcelo Rebelo de Sousa, afirma que
o Presidente “ainda não encontrou o registo certo para lidar com a maioria
absoluta” e recorda que foi o próprio Marcelo, meses antes de ter sido eleito
presidente, que disse no discurso da Voz do Operário que, com um governo de
maioria absoluta, o Presidente “tende a apagar-se”. “Marcelo não se pode
apagar, nunca na vida se apagou. Ainda não encontrou o registo certo”, afirma
Matos.
“Descura o papel de contrapoder”, diz Costa Lobo
Outra coisa é
“Marcelo a ser Marcelo”. Marina Costa Lobo admite que “Marcelo é Marcelo, mas a
sua postura, que sempre foi perigosa, porque excessivamente dependente dos
média, e também populista, no sentido de criar um excesso de personalização da
política, deixou de ter qualquer objectivo político maior”.
A professora de
Ciência Política é muito dura com o que chama o populismo de Marcelo. Notando
que “o quadro político mudou substancialmente” e que o PS maioritário “já não
precisa tanto do Presidente da República para aprovar legislação”, afirma que
“Marcelo reeleito devia tornar-se mais livre na sua relação com o Governo visto
não ter mais desafios eleitorais pela frente”.
Mais, segundo
Marina Costa Lobo: Marcelo “deveria trabalhar, tal como qualquer político
partidário, para consolidar a oposição de direita, aquela que o seu partido, o
PSD, agora com Luís Montenegro tenta consolidar”. A politóloga também é crítica
da relação Presidente-Governo: “Descura um papel que devia desempenhar como
contrapoder de um PS maioritário. Em vez disso, multiplica-se em acções de
populismo mediático que ora são irrelevantes, ora são despropositadas”.
Por um lado,
segundo defende Vítor Matos, o Presidente “tem agora menos filtros do que no
primeiro mandato” mas, por outro, “o contexto actual faz com que estes excessos
de Marcelo sejam mais notados”. Matos dá o exemplo das recentes críticas por o
Presidente comentar jogos de futebol e desafia: “Vão ver os outros campeonatos
em que Portugal participou. Ele comentou sempre os jogos, fez sempre ‘flash
interviews’”.
Os “excessos” de
Marcelo são conhecidos de todos os portugueses que assistiam aos comentários de
domingo à noite, dos seus companheiros políticos, de alguns jornalistas e estão
amplamente documentados na biografia que escreveu Vítor Matos. O
comentador-Presidente sempre lá esteve e, aliás, como diz Matos, “analisa-se e
comenta-se permanentemente a si próprio”. O fato de comentador “está no ADN de
Marcelo, é visceral. Ele não é o cata-vento mediático, ele é o próprio vento
mediático. Estabelece a direcção do vento, fez sempre isso enquanto
comentador”.
Maria Flor
Pedroso, que todas as semanas interagiu com Marcelo no tempo em que o
Presidente comentava na RTP, diz que Marcelo levou as suas várias
características de comentador para Belém “de várias formas”: “Marcelo comentador
tinha a preocupação de chegar a toda a gente e de ser compreendido por todos.
Do homem comum ao doutor. E o seu público era o país inteiro, de todas as
classes sociais e idades. Gostava de chegar a todos e chegava.” Flor Pedroso
acha que, no cargo de Presidente, Marcelo “reforçou as suas características de
comentador”: “Leva quase ao limite a projecção, a antecipação de cenários e
atitudes políticas dos vários protagonistas”.
Curiosamente, o
PS tem vindo a ser um dos maiores defensores de Marcelo nos últimos tempos.
António Costa foi duríssimo contra quem criticou Marcelo Rebelo de Sousa pela
frase em que sugeria que 400 casos de abusos sexuais na Igreja não era muito e
Eurico Brilhante Dias disse, em entrevista recente ao PÚBLICO, que há “uma degradação
do ambiente político na direita liberal que visa atingir não só o Governo mas o
Presidente da República”. Há uma queda nas audiências do Presidente comentador,
só resta saber se ainda há margem para voltar a liderar o prime-time.


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