Para muitos jovens, comprar casa é “impossível”.
“Acabamos a adiar a nossa vida”
Há quem ande com a “casa às costas”, visite mais de uma
dúzia de moradas por semana e quem já tenha desistido da ideia. Os jovens estão
a enfrentar mais dificuldades em comprar casa — e isto trará novos riscos
sociais. “Não é possível para a nossa geração construir um futuro nestas
condições.”
Andreia Friaças
10 de Junho de
2022, 20:04
Uma “verdadeira
montanha de Sísifo”. É assim que Nélson Vassalo, de 35 anos, começa por
descrever o longo e espinhoso caminho de quem tenta comprar casa em Portugal. O
cenário é mais do que conhecido: as casas estão mais caras (o preço aumentou
50% nos últimos cinco anos), os salários não crescem ao mesmo ritmo e há cada
vez mais obstáculos no acesso aos créditos.
Para Nélson, a
habitação sempre foi uma batalha. Já mudou de casa 35 vezes — grande parte das
mudanças foi durante a infância, quando a instabilidade familiar o obrigava,
juntamente com a mãe, a saltar de casa em casa. Também foram várias as moradas
que teve depois de 2009, quando, tal como tantos outros jovens, viu na
emigração uma forma de contornar as dificuldades em arranjar emprego. Mas a
“pior fase”, assegura, tem sido os últimos cinco anos, quando decidiu regressar
a Lisboa. “Eu e a minha namorada andamos sempre com a casa às costas. Os
contratos são curtos e, quando acabam, os senhorios querem duplicar a renda.
Somos empurrados na cidade para fugir aos sítios que vão ganhando interesse
especulativo”, explica Nélson, que trabalha como designer e web developer. “No
último contrato de arrendamento, só pensávamos: por quanto tempo vamos
continuar a fugir às vontades dos senhorios?”
Exaustos com esta
situação, há meses que o casal está empenhado em conseguir comprar uma casa em
Lisboa. O primeiro passo é amealhar dinheiro para a entrada da casa, que
corresponde a 10% do valor total. Como os T2 que encontram estão à volta dos
250 mil euros, teriam de ter entre a 30 a 40 mil euros de entrada — valor que é
flutuante, pois acrescem as despesas do processo de compra, que podem chegar
aos cinco mil euros. “Poupar este valor é impossível com as condições em que se
vive”, observa Nélson.
“No último contrato de arrendamento, só pensávamos: por
quanto tempo vamos continuar a fugir das vontades dos senhorios?”
Da mesma maneira
que Sísifo, personagem da mitologia grega, estava condenado a empurrar uma
pedra até ao cimo de um monte, sabendo que ela iria sempre rolar de novo para o
sítio inicial, também Nélson sente que comprar uma casa é uma “equação
impossível”. Sempre que “levanta a pedra” e se aproxima deste objectivo, surge
um novo obstáculo que faz tudo cair por terra. “Depois da crise de 2008 pensei
que as coisas fossem melhorar. Mas veio a pandemia, a precarização do mercado
de trabalho, o aumento das rendas, a inflação dos preços, as dificuldades em
arranjar crédito”, exemplifica Nélson. “Não é possível para a nossa geração
construir um futuro nestas condições.”
O direito à
habitação
Depois de 1974,
quando o direito à habitação integrou a Constituição Portuguesa, lia-se, na
resolução de Conselho de Ministros de 24 de Fevereiro de 1976, que se deveria
defender não só o direito à habitação, mas também garantir “o acesso à compra
de habitação própria por todas as famílias, independentemente do nível de
rendimento”.
Desde 1980, foram
várias as políticas de incentivo à compra de habitação, inclusive para os
jovens. Além das contas poupança-habitação (que estavam isentas de impostos),
existia o regime de crédito bonificado para os jovens, que flexibilizava as
condições de acesso ao crédito e permitia que a família garantisse a
responsabilidade última pelo pagamento. Entre 1991 e 1998, o crédito bonificado
jovem foi ainda mais facilitado, sem limite dos valores dos imóveis, que
poderiam ser financiados na sua totalidade e com uma menor taxa de esforço.
Estes apoios
permitiram que, ao longo dos anos, a maior parte das famílias tivesse habitação
própria — em 2011, cerca de 73% das famílias tinham conseguido comprar a sua
própria casa. Mas, actualmente, o cenário é diferente. O estudo de Novembro de
2019 da Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado Habitação Própria em Portugal,
mostra que entre os jovens abaixo dos 30 anos que são titulares de alojamento,
apenas 24% são donos de habitação própria — nos outros casos são arrendatários
ou têm habitações cedidas. Mas este número, referente a 2017, apenas considera
os jovens que já saíram da casa dos pais.
“Na prática, no
universo dos jovens, a percentagem será muito mais baixa, uma vez que existe
uma percentagem de jovens bastante elevada a viver em casa dos pais”, explica
Elvira Pereira, investigadora e co-autora do estudo. De facto, em 2020, segundo
a mesma investigação, cerca de 69,8% dos jovens entre os 18 e 34 anos
permanecia na casa dos pais — em 2004, por exemplo, a percentagem era de 55%.
Francisco Peres
já não faz parte destas estatísticas. Saiu de casa dos pais, no Porto, quando
atingiu a maioridade e desde então, passados 15 anos, continua a viver em casas
arrendadas. Agora, com 33 anos, partilha um pequeno T1 com a namorada,
Cristina, em Lisboa. “Cabe um gato e um sofá. Não há espaço para mais”,
graceja. Em Setembro, casaram-se e amealharam um bom pé-de-meia que está
guardado para a entrada de uma casa. “Na passagem de ano pensei: vai ser a
grande resolução deste ano”, recorda Francisco, que trabalha em marketing.
Há meses que
Francisco e Cristina estão à procura de casa e há semanas em que visitam “mais
de uma dúzia”. Já avançaram com três propostas de compra, mas todas foram
recusadas. As razões são várias: da primeira vez, fizeram uma proposta
demasiado abaixo do que era pedido pelo proprietário e, na segunda tentativa,
foram apanhados pela teia do próprio mercado. “Um agente imobiliário tinha
angariado a casa e nós estávamos interessados. Começou a criar uma guerra de
licitações entre nós e outro casal. Disse-nos que o proprietário tinha aceitado
a nossa proposta e depois, do nada, talvez para não partilhar comissão com a
nossa agente imobiliária, decidiu à última hora vender ao outro casal”, diz
Francisco.
Já na terceira
tentativa conseguiram que a proposta fosse aceite pelo proprietário, mas, para
o banco conceder um crédito à habitação, é exigido que uma avaliadora
independente faça uma avaliação da casa — neste caso, só este passo custou 250
euros. “A avaliadora disse que a casa valia menos 100 mil euros do que o valor
pedido. As casas estão muito inflacionadas, principalmente as que têm varanda,
jardins, ou qualquer espaço exterior, que ficou sobrevalorizado durante a
pandemia”, explica. Por causa disso, o banco (que empresta cerca de 80% do
valor avaliado) oferecia menos 100 mil euros do que o casal precisava para comprar
a casa. “É impossível comprar nestas condições”, diz Francisco. “Nós recebemos
bem, temos uma situação privilegiada e mesmo assim não conseguimos.”
De Lisboa para o
Alvor
Feitas as contas,
Portugal é o terceiro país da União Europeia com mais jovens a morar na casa
dos pais, diz o estudo da Gulbenkian — apenas é ultrapassado por Itália e
Grécia. A instabilidade laboral, o peso crescente das despesas com a habitação,
a quebra de riqueza das famílias mais jovens e as dificuldades no acesso ao
crédito à habitação são alguns aspectos que justificam o acesso cada vez mais
tardio à compra de casa.
No caso de
Cláudia Campos, de 28 anos, sair de casa dos pais e ter o seu próprio espaço
sempre foi um sonho de adolescência. “Sempre quis ser independente muito cedo e
isso para mim significava ter a minha casa, o meu espaço. É um sonho que sempre
tive enquanto mulher independente”, conta a jovem. Desde os 19 anos que
trabalha, mas só em 2021 conseguiu ter o primeiro contrato efectivo, num lar de
idosos. Com maior estabilidade laboral, decidiu procurar casa sozinha em Alvor,
no Algarve, onde vive há vários anos. E no seu caso esta procura torna-se cada
vez mais urgente. “Estou grávida e o bebé nasce em Outubro. Gostava de estar
numa situação estável nessa altura.”
“É muito difícil. Se eu soubesse que o processo era
longo, era difícil, mas que ia dar certo… mas é tudo incerto.”
Nos últimos
meses, Cláudia consulta os sites de compra e venda de casa todos os dias. Já
falou com vários bancos, mas a maior parte recusa sempre o empréstimo. “Por
estar a procurar sozinha, não ter capitais próprios e ter um salário baixo”,
justifica Cláudia. Nesta longa procura chegou a receber luz verde de um banco,
que estaria disponível para lhe emprestar 100 mil euros. “Encontrar uma casa
aqui com esse valor é impossível. Dava para uma casa em ruínas, e ainda teria
de pedir mais um empréstimo para fazer obras.”
De facto, os
últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados este ano,
dão conta de um aumento generalizado dos preços das casas por todo o país, mas
o maior aumento regista-se no Alentejo central, onde os valores cresceram mais
de 17%, e no Algarve, com um aumento de 13,9%. Ao mesmo tempo, as famílias
portuguesas não conseguem concorrer com os compradores estrangeiros, que, em
alguns casos, são capazes de pagar um valor quase 75% mais elevado do que os
cidadãos nacionais pelas casas em Portugal.
Com este aumento
de preços, Cláudia já ponderou sair de Alvor e tentar outras regiões do
Algarve, como Lagoa. “O que sinto é que quanto mais tempo deixo passar, mais
dificuldade vou ter. Os preços estão sempre a aumentar e quanto mais tarde
comprar, menos anos terei para pagar ao banco e a prestação vai ser mais alta”,
admite. “É muito difícil. Se eu soubesse que o processo era longo, era difícil,
mas que ia dar certo… mas é tudo incerto.”
“Acabamos a adiar
a nossa vida”
Apesar de a
compra de casa ocorrer cada vez mais tarde, o Banco de Portugal recomendou aos
bancos novos limites sobre o prazo dos créditos à habitação. Desde Abril, só
quem tem menos de 30 anos pode beneficiar do prazo de empréstimo máximo até 40
anos. Para quem tem entre 30 e 35 anos, o limite da duração do empréstimo passa
a ser 37 anos e para quem tem mais de 35 anos o prazo reduz-se para 35 anos de
crédito.
O objectivo é
garantir que até aos 70 anos a dívida está totalmente paga — actualmente a
média das idades para o fim do pagamento situa-se nos 75 anos. Em termos
práticos, a redução do prazo dos empréstimos faz aumentar o valor das
prestações pagas ao banco, aumentando a taxa de esforço.
Quando Rui
Travassos ouviu falar destas novas recomendações, soube que “era mesmo altura
de desistir”. “Eu tenho 35 anos e a minha esposa tem 38. Se até agora foi
difícil conseguir uma casa, a partir de agora seria quase impossível”, diz Rui.
Desde 2010,
quando começou a trabalhar como programador, que Rui queria poupar dinheiro
para comprar uma casa. Os anos foram passando, as casas em Aveiro, onde viveu
vários anos, foram ficando cada vez mais caras e este objectivo cada vez mais
longe. “Acabamos a adiar a nossa vida, adiar ter filhos, porque pensávamos que
não seria a altura certa até comprarmos casa”, diz Rui.
A certa altura,
sentiram que tinham de fazer uma escolha: se tivessem filhos, mais dificilmente
juntariam dinheiro para a casa; e, para juntar dinheiro para a casa, teriam de
continuar a adiar a decisão de ter filhos. “Não devíamos ter de fazer este tipo
de escolhas”, diz Rui, que agora é pai de três crianças: Francisco, Maria Luísa
e Maria Teresa. “Acabámos por desistir da casa, mas esta espera fez-nos adiar
ter filhos em três, quatro anos. Esse atraso pesa-nos, na nossa idade e na
nossa dinâmica”, afirma.
Agora, a
expectativa é continuarem a viver em casas arrendadas. “Já nos habituámos à
ideia”, diz Rui. A missão passou a ser outra: encontrar uma casa adequada à família.
“Isso também é mesmo muito difícil. Somos cinco e vivemos num T2. Mudar para
uma casa maior é um salto muito grande a nível de renda.”
Casa arrendada: é
mesmo uma escolha?
Como explica
Romana Xerez, professora e co-autora do estudo Habitação Própria em Portugal, a
maior parte dos jovens continua a querer comprar casa. Em 2019, um inquérito
feito em Portugal com jovens entre os 18 e 34 anos concluiu que apenas 12%
escolhiam viver em casas arrendadas. “O que os estudos têm mostrado é que estes
jovens são empurrados para o arrendamento não pela sua vontade, mas pelas
actuais condições económicas, sociais e até políticas”, conclui Romana Xerez,
do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Para Marco
Oliveira, de 30 anos, comprar casa nunca foi um sonho. Lembra-se das histórias
que os pais repetiam sobre a moradia que conseguiram construir em Vale de
Maceiras, no Alto Alentejo, com pouco dinheiro e com a ajuda de amigos. “Mas
esse sonho já não é para mim”, diz Marco, que se mudou em 2009 para Lisboa para
estudar Ciências da Cultura na Faculdade de Letras.
Desde então, tem
saltado entre casas arrendadas e já partilhou morada com a irmã, colegas da
faculdade e com a namorada. Agora, vive sozinho e, com o aumento dos preços em
Lisboa, mudou-se para o concelho do Seixal — onde, nos últimos cinco anos, as
rendas também subiram cerca de 12%, uma tendência comum aos vários concelhos da
periferia de Lisboa.
Com a “loucura”
do mercado imobiliário, Marco gostava de ter mais estabilidade e comprar o seu
próprio espaço, mas sempre que mergulha nos sites de compra e venda de casas
tem um “choque de realidade”. “Sem ajuda dos pais é completamente impossível”,
diz Marco. “Mas não sofro com isso. Não fico desconfortável, se continuar em
situação de arrendamento”, considera. “Tenho um trabalho estável, consigo pagar
a renda e ter a minha vida. A casa nunca foi um objectivo para me sentir
realizado. Não é um objectivo como era para a geração dos meus pais.”
“Tenho um trabalho estável, consigo pagar a renda e ter a
minha vida. A casa nunca foi um objectivo para me sentir realizado. Não é um
objectivo como era para a geração dos meus pais.”
Novos riscos
sociais
Além de Marco,
também Rui Travassos sente que esta geração está a enfrentar mais dificuldades,
quando reflecte naquela que foi a situação dos seus pais: “A expectativa que
tínhamos, dada pela geração dos nossos pais, de conseguir uma casa ou mesmo um
carro facilmente acabou. Esse modelo de vida acabou.”
Como explica a
investigadora Romana Xerez, estas mudanças actuais no mercado de compra de casa
irão “conduzir a novos riscos sociais”. “Os jovens enfrentam actualmente uma
situação muito diferente das gerações anteriores que irá ter consequências no
futuro, com um agravamento das desigualdades”, esclarece. “Em particular, a
aquisição de casa própria contribui para a poupança e para a acumulação de
riqueza ao longo da vida, e assim maior segurança económica dos indivíduos e
menor desigualdade na distribuição da riqueza”, corrobora a investigadora
Elvira Pereira, do ISCSP.
Por outro lado, a
habitação própria tem sido fundamental para analisar a situação das
desigualdades sociais. Como refere o estudo Habitação Própria em Portugal, a
família é uma das principais fontes de apoio financeiro para que os jovens
consigam comprar casa, podendo até existir a transferência “da riqueza
habitacional dentro das relações familiares”.
“Mas nem toda a
gente pode contar com o apoio dos pais”, admite Nélson Vassalo. “Eu sou a
primeira geração licenciada da minha família e ganho mais do que a minha mãe”,
exemplifica. No caso do jovem, natural do Barreiro, a mãe também vive numa casa
arrendada e, no último ano, a renda aumentou 40% a meio do contrato. Daqui a
dois anos, quando se reformar, deixará de ter dinheiro suficiente para a pagar.
Dada a actual
crise no sector imobiliário, a habitação tornou-se uma área prioritária para o
Estado. “O Estado social existe e foi criado para mitigar os riscos sociais.
Esta nova intervenção do Estado social deverá ser adequada aos novos riscos
sociais”, diz a investigadora Romana Xerez. “Em Portugal, os jovens não têm
acesso à habitação pública, não existem programas adequados. É necessário um
novo contrato social entre gerações, que dure mais do que uma mera legislatura
ou governo.”
Também Nélson
considera que os apoios à habitação são “insuficientes para tanta procura”.
“Sinto que somos invisíveis na sociedade. Há um direito de habitação que não
está a chegar à nossa geração”, acrescenta. No seu caso, se continuar a
trabalhar horas extras e a reduzir os gastos, conseguirá juntar dinheiro para a
entrada daqui a dois anos. Mas, com a instabilidade que tem moldado os últimos
tempos, “não é possível ter certeza de nada”. “Se os preços continuarem a
aumentar, se existir outra crise, outras alterações ao crédito, volto a não
conseguir juntar dinheiro”, diz Nélson. “Voltamos a ser a pedra de
Sísifo.”


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