sábado, 11 de junho de 2022

Para muitos jovens, comprar casa é “impossível”. “Acabamos a adiar a nossa vida”

 


Para muitos jovens, comprar casa é “impossível”. “Acabamos a adiar a nossa vida”

 

Há quem ande com a “casa às costas”, visite mais de uma dúzia de moradas por semana e quem já tenha desistido da ideia. Os jovens estão a enfrentar mais dificuldades em comprar casa — e isto trará novos riscos sociais. “Não é possível para a nossa geração construir um futuro nestas condições.”

 


Andreia Friaças

10 de Junho de 2022, 20:04

https://www.publico.pt/2022/06/10/p3/reportagem/jovens-comprar-casa-impossivel-acabamos-adiar-vida-2008199

 

Uma “verdadeira montanha de Sísifo”. É assim que Nélson Vassalo, de 35 anos, começa por descrever o longo e espinhoso caminho de quem tenta comprar casa em Portugal. O cenário é mais do que conhecido: as casas estão mais caras (o preço aumentou 50% nos últimos cinco anos), os salários não crescem ao mesmo ritmo e há cada vez mais obstáculos no acesso aos créditos.

 

Para Nélson, a habitação sempre foi uma batalha. Já mudou de casa 35 vezes — grande parte das mudanças foi durante a infância, quando a instabilidade familiar o obrigava, juntamente com a mãe, a saltar de casa em casa. Também foram várias as moradas que teve depois de 2009, quando, tal como tantos outros jovens, viu na emigração uma forma de contornar as dificuldades em arranjar emprego. Mas a “pior fase”, assegura, tem sido os últimos cinco anos, quando decidiu regressar a Lisboa. “Eu e a minha namorada andamos sempre com a casa às costas. Os contratos são curtos e, quando acabam, os senhorios querem duplicar a renda. Somos empurrados na cidade para fugir aos sítios que vão ganhando interesse especulativo”, explica Nélson, que trabalha como designer e web developer. “No último contrato de arrendamento, só pensávamos: por quanto tempo vamos continuar a fugir às vontades dos senhorios?”

 

Exaustos com esta situação, há meses que o casal está empenhado em conseguir comprar uma casa em Lisboa. O primeiro passo é amealhar dinheiro para a entrada da casa, que corresponde a 10% do valor total. Como os T2 que encontram estão à volta dos 250 mil euros, teriam de ter entre a 30 a 40 mil euros de entrada — valor que é flutuante, pois acrescem as despesas do processo de compra, que podem chegar aos cinco mil euros. “Poupar este valor é impossível com as condições em que se vive”, observa Nélson.

 

“No último contrato de arrendamento, só pensávamos: por quanto tempo vamos continuar a fugir das vontades dos senhorios?”

 

Da mesma maneira que Sísifo, personagem da mitologia grega, estava condenado a empurrar uma pedra até ao cimo de um monte, sabendo que ela iria sempre rolar de novo para o sítio inicial, também Nélson sente que comprar uma casa é uma “equação impossível”. Sempre que “levanta a pedra” e se aproxima deste objectivo, surge um novo obstáculo que faz tudo cair por terra. “Depois da crise de 2008 pensei que as coisas fossem melhorar. Mas veio a pandemia, a precarização do mercado de trabalho, o aumento das rendas, a inflação dos preços, as dificuldades em arranjar crédito”, exemplifica Nélson. “Não é possível para a nossa geração construir um futuro nestas condições.”

 

O direito à habitação

Depois de 1974, quando o direito à habitação integrou a Constituição Portuguesa, lia-se, na resolução de Conselho de Ministros de 24 de Fevereiro de 1976, que se deveria defender não só o direito à habitação, mas também garantir “o acesso à compra de habitação própria por todas as famílias, independentemente do nível de rendimento”.

 

 

 

 

Desde 1980, foram várias as políticas de incentivo à compra de habitação, inclusive para os jovens. Além das contas poupança-habitação (que estavam isentas de impostos), existia o regime de crédito bonificado para os jovens, que flexibilizava as condições de acesso ao crédito e permitia que a família garantisse a responsabilidade última pelo pagamento. Entre 1991 e 1998, o crédito bonificado jovem foi ainda mais facilitado, sem limite dos valores dos imóveis, que poderiam ser financiados na sua totalidade e com uma menor taxa de esforço.

 

Estes apoios permitiram que, ao longo dos anos, a maior parte das famílias tivesse habitação própria — em 2011, cerca de 73% das famílias tinham conseguido comprar a sua própria casa. Mas, actualmente, o cenário é diferente. O estudo de Novembro de 2019 da Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado Habitação Própria em Portugal, mostra que entre os jovens abaixo dos 30 anos que são titulares de alojamento, apenas 24% são donos de habitação própria — nos outros casos são arrendatários ou têm habitações cedidas. Mas este número, referente a 2017, apenas considera os jovens que já saíram da casa dos pais.

 

“Na prática, no universo dos jovens, a percentagem será muito mais baixa, uma vez que existe uma percentagem de jovens bastante elevada a viver em casa dos pais”, explica Elvira Pereira, investigadora e co-autora do estudo. De facto, em 2020, segundo a mesma investigação, cerca de 69,8% dos jovens entre os 18 e 34 anos permanecia na casa dos pais — em 2004, por exemplo, a percentagem era de 55%.

 

Francisco Peres já não faz parte destas estatísticas. Saiu de casa dos pais, no Porto, quando atingiu a maioridade e desde então, passados 15 anos, continua a viver em casas arrendadas. Agora, com 33 anos, partilha um pequeno T1 com a namorada, Cristina, em Lisboa. “Cabe um gato e um sofá. Não há espaço para mais”, graceja. Em Setembro, casaram-se e amealharam um bom pé-de-meia que está guardado para a entrada de uma casa. “Na passagem de ano pensei: vai ser a grande resolução deste ano”, recorda Francisco, que trabalha em marketing.

 

Há meses que Francisco e Cristina estão à procura de casa e há semanas em que visitam “mais de uma dúzia”. Já avançaram com três propostas de compra, mas todas foram recusadas. As razões são várias: da primeira vez, fizeram uma proposta demasiado abaixo do que era pedido pelo proprietário e, na segunda tentativa, foram apanhados pela teia do próprio mercado. “Um agente imobiliário tinha angariado a casa e nós estávamos interessados. Começou a criar uma guerra de licitações entre nós e outro casal. Disse-nos que o proprietário tinha aceitado a nossa proposta e depois, do nada, talvez para não partilhar comissão com a nossa agente imobiliária, decidiu à última hora vender ao outro casal”, diz Francisco.

 

Já na terceira tentativa conseguiram que a proposta fosse aceite pelo proprietário, mas, para o banco conceder um crédito à habitação, é exigido que uma avaliadora independente faça uma avaliação da casa — neste caso, só este passo custou 250 euros. “A avaliadora disse que a casa valia menos 100 mil euros do que o valor pedido. As casas estão muito inflacionadas, principalmente as que têm varanda, jardins, ou qualquer espaço exterior, que ficou sobrevalorizado durante a pandemia”, explica. Por causa disso, o banco (que empresta cerca de 80% do valor avaliado) oferecia menos 100 mil euros do que o casal precisava para comprar a casa. “É impossível comprar nestas condições”, diz Francisco. “Nós recebemos bem, temos uma situação privilegiada e mesmo assim não conseguimos.”

 

De Lisboa para o Alvor

Feitas as contas, Portugal é o terceiro país da União Europeia com mais jovens a morar na casa dos pais, diz o estudo da Gulbenkian — apenas é ultrapassado por Itália e Grécia. A instabilidade laboral, o peso crescente das despesas com a habitação, a quebra de riqueza das famílias mais jovens e as dificuldades no acesso ao crédito à habitação são alguns aspectos que justificam o acesso cada vez mais tardio à compra de casa.

 

No caso de Cláudia Campos, de 28 anos, sair de casa dos pais e ter o seu próprio espaço sempre foi um sonho de adolescência. “Sempre quis ser independente muito cedo e isso para mim significava ter a minha casa, o meu espaço. É um sonho que sempre tive enquanto mulher independente”, conta a jovem. Desde os 19 anos que trabalha, mas só em 2021 conseguiu ter o primeiro contrato efectivo, num lar de idosos. Com maior estabilidade laboral, decidiu procurar casa sozinha em Alvor, no Algarve, onde vive há vários anos. E no seu caso esta procura torna-se cada vez mais urgente. “Estou grávida e o bebé nasce em Outubro. Gostava de estar numa situação estável nessa altura.”

 

“É muito difícil. Se eu soubesse que o processo era longo, era difícil, mas que ia dar certo… mas é tudo incerto.”

 

Nos últimos meses, Cláudia consulta os sites de compra e venda de casa todos os dias. Já falou com vários bancos, mas a maior parte recusa sempre o empréstimo. “Por estar a procurar sozinha, não ter capitais próprios e ter um salário baixo”, justifica Cláudia. Nesta longa procura chegou a receber luz verde de um banco, que estaria disponível para lhe emprestar 100 mil euros. “Encontrar uma casa aqui com esse valor é impossível. Dava para uma casa em ruínas, e ainda teria de pedir mais um empréstimo para fazer obras.”

 

De facto, os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados este ano, dão conta de um aumento generalizado dos preços das casas por todo o país, mas o maior aumento regista-se no Alentejo central, onde os valores cresceram mais de 17%, e no Algarve, com um aumento de 13,9%. Ao mesmo tempo, as famílias portuguesas não conseguem concorrer com os compradores estrangeiros, que, em alguns casos, são capazes de pagar um valor quase 75% mais elevado do que os cidadãos nacionais pelas casas em Portugal.

 

Com este aumento de preços, Cláudia já ponderou sair de Alvor e tentar outras regiões do Algarve, como Lagoa. “O que sinto é que quanto mais tempo deixo passar, mais dificuldade vou ter. Os preços estão sempre a aumentar e quanto mais tarde comprar, menos anos terei para pagar ao banco e a prestação vai ser mais alta”, admite. “É muito difícil. Se eu soubesse que o processo era longo, era difícil, mas que ia dar certo… mas é tudo incerto.”

 

“Acabamos a adiar a nossa vida”

Apesar de a compra de casa ocorrer cada vez mais tarde, o Banco de Portugal recomendou aos bancos novos limites sobre o prazo dos créditos à habitação. Desde Abril, só quem tem menos de 30 anos pode beneficiar do prazo de empréstimo máximo até 40 anos. Para quem tem entre 30 e 35 anos, o limite da duração do empréstimo passa a ser 37 anos e para quem tem mais de 35 anos o prazo reduz-se para 35 anos de crédito.

 

O objectivo é garantir que até aos 70 anos a dívida está totalmente paga — actualmente a média das idades para o fim do pagamento situa-se nos 75 anos. Em termos práticos, a redução do prazo dos empréstimos faz aumentar o valor das prestações pagas ao banco, aumentando a taxa de esforço.

 

Quando Rui Travassos ouviu falar destas novas recomendações, soube que “era mesmo altura de desistir”. “Eu tenho 35 anos e a minha esposa tem 38. Se até agora foi difícil conseguir uma casa, a partir de agora seria quase impossível”, diz Rui.

 

Desde 2010, quando começou a trabalhar como programador, que Rui queria poupar dinheiro para comprar uma casa. Os anos foram passando, as casas em Aveiro, onde viveu vários anos, foram ficando cada vez mais caras e este objectivo cada vez mais longe. “Acabamos a adiar a nossa vida, adiar ter filhos, porque pensávamos que não seria a altura certa até comprarmos casa”, diz Rui.

 

A certa altura, sentiram que tinham de fazer uma escolha: se tivessem filhos, mais dificilmente juntariam dinheiro para a casa; e, para juntar dinheiro para a casa, teriam de continuar a adiar a decisão de ter filhos. “Não devíamos ter de fazer este tipo de escolhas”, diz Rui, que agora é pai de três crianças: Francisco, Maria Luísa e Maria Teresa. “Acabámos por desistir da casa, mas esta espera fez-nos adiar ter filhos em três, quatro anos. Esse atraso pesa-nos, na nossa idade e na nossa dinâmica”, afirma.

 

Agora, a expectativa é continuarem a viver em casas arrendadas. “Já nos habituámos à ideia”, diz Rui. A missão passou a ser outra: encontrar uma casa adequada à família. “Isso também é mesmo muito difícil. Somos cinco e vivemos num T2. Mudar para uma casa maior é um salto muito grande a nível de renda.”

 

Casa arrendada: é mesmo uma escolha?

Como explica Romana Xerez, professora e co-autora do estudo Habitação Própria em Portugal, a maior parte dos jovens continua a querer comprar casa. Em 2019, um inquérito feito em Portugal com jovens entre os 18 e 34 anos concluiu que apenas 12% escolhiam viver em casas arrendadas. “O que os estudos têm mostrado é que estes jovens são empurrados para o arrendamento não pela sua vontade, mas pelas actuais condições económicas, sociais e até políticas”, conclui Romana Xerez, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).

 

Para Marco Oliveira, de 30 anos, comprar casa nunca foi um sonho. Lembra-se das histórias que os pais repetiam sobre a moradia que conseguiram construir em Vale de Maceiras, no Alto Alentejo, com pouco dinheiro e com a ajuda de amigos. “Mas esse sonho já não é para mim”, diz Marco, que se mudou em 2009 para Lisboa para estudar Ciências da Cultura na Faculdade de Letras.

 

Desde então, tem saltado entre casas arrendadas e já partilhou morada com a irmã, colegas da faculdade e com a namorada. Agora, vive sozinho e, com o aumento dos preços em Lisboa, mudou-se para o concelho do Seixal — onde, nos últimos cinco anos, as rendas também subiram cerca de 12%, uma tendência comum aos vários concelhos da periferia de Lisboa.

 

Com a “loucura” do mercado imobiliário, Marco gostava de ter mais estabilidade e comprar o seu próprio espaço, mas sempre que mergulha nos sites de compra e venda de casas tem um “choque de realidade”. “Sem ajuda dos pais é completamente impossível”, diz Marco. “Mas não sofro com isso. Não fico desconfortável, se continuar em situação de arrendamento”, considera. “Tenho um trabalho estável, consigo pagar a renda e ter a minha vida. A casa nunca foi um objectivo para me sentir realizado. Não é um objectivo como era para a geração dos meus pais.”

 

“Tenho um trabalho estável, consigo pagar a renda e ter a minha vida. A casa nunca foi um objectivo para me sentir realizado. Não é um objectivo como era para a geração dos meus pais.”

 

Novos riscos sociais

Além de Marco, também Rui Travassos sente que esta geração está a enfrentar mais dificuldades, quando reflecte naquela que foi a situação dos seus pais: “A expectativa que tínhamos, dada pela geração dos nossos pais, de conseguir uma casa ou mesmo um carro facilmente acabou. Esse modelo de vida acabou.”

 

Como explica a investigadora Romana Xerez, estas mudanças actuais no mercado de compra de casa irão “conduzir a novos riscos sociais”. “Os jovens enfrentam actualmente uma situação muito diferente das gerações anteriores que irá ter consequências no futuro, com um agravamento das desigualdades”, esclarece. “Em particular, a aquisição de casa própria contribui para a poupança e para a acumulação de riqueza ao longo da vida, e assim maior segurança económica dos indivíduos e menor desigualdade na distribuição da riqueza”, corrobora a investigadora Elvira Pereira, do ISCSP.

 

Por outro lado, a habitação própria tem sido fundamental para analisar a situação das desigualdades sociais. Como refere o estudo Habitação Própria em Portugal, a família é uma das principais fontes de apoio financeiro para que os jovens consigam comprar casa, podendo até existir a transferência “da riqueza habitacional dentro das relações familiares”.

 

“Mas nem toda a gente pode contar com o apoio dos pais”, admite Nélson Vassalo. “Eu sou a primeira geração licenciada da minha família e ganho mais do que a minha mãe”, exemplifica. No caso do jovem, natural do Barreiro, a mãe também vive numa casa arrendada e, no último ano, a renda aumentou 40% a meio do contrato. Daqui a dois anos, quando se reformar, deixará de ter dinheiro suficiente para a pagar.

 

Dada a actual crise no sector imobiliário, a habitação tornou-se uma área prioritária para o Estado. “O Estado social existe e foi criado para mitigar os riscos sociais. Esta nova intervenção do Estado social deverá ser adequada aos novos riscos sociais”, diz a investigadora Romana Xerez. “Em Portugal, os jovens não têm acesso à habitação pública, não existem programas adequados. É necessário um novo contrato social entre gerações, que dure mais do que uma mera legislatura ou governo.”

 

Também Nélson considera que os apoios à habitação são “insuficientes para tanta procura”. “Sinto que somos invisíveis na sociedade. Há um direito de habitação que não está a chegar à nossa geração”, acrescenta. No seu caso, se continuar a trabalhar horas extras e a reduzir os gastos, conseguirá juntar dinheiro para a entrada daqui a dois anos. Mas, com a instabilidade que tem moldado os últimos tempos, “não é possível ter certeza de nada”. “Se os preços continuarem a aumentar, se existir outra crise, outras alterações ao crédito, volto a não conseguir juntar dinheiro”, diz Nélson. “Voltamos a ser a pedra de Sísifo.”

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