quarta-feira, 9 de março de 2022

O que levou os juízes a condenar Ricardo Salgado? Sobretudo a prova documental

 



OPERAÇÃO MARQUÊS

O que levou os juízes a condenar Ricardo Salgado? Sobretudo a prova documental

 

Tribunal dá como provado que “foi diagnosticada a doença de Alzheimer” ao antigo banqueiro, mas não tira qualquer consequência disso. Defesa deve pedir nulidade do acórdão por esse motivo.

 

Mariana Oliveira

8 de Março de 2022, 23:30

https://www.publico.pt/2022/03/08/sociedade/noticia/levou-juizes-condenar-ricardo-salgado-sobretudo-prova-documental-1998118?ref=hp&cx=stories_featured_a-destaques-496643

 

Os três juízes que condenaram esta segunda-feira o antigo banqueiro Ricardo Salgado a uma pena de seis anos de prisão efectiva por três crimes de abuso de confiança qualificada explicam em pouco mais de dez páginas como formaram a sua convicção, sublinhando a importância das provas documentais e considerando sem credibilidade as explicações dadas pela defesa do antigo líder do Banco Espírito Santo para a transferência de um total de 10,7 milhões de euros com origem no seu grupo familiar para contas de duas sociedades offshore controladas pelo banqueiro.

 

Nas 93 páginas do acórdão, os juízes dão como provado que “foi diagnosticada a doença de Alzheimer” a Salgado, mas não tiram qualquer consequência disso. Apenas referem de forma genérica a “idade do arguido e o seu estado de saúde” como um dos factores que determinaram a medida da pena, que, neste caso, podia oscilar entre os quatro e os 12 anos de prisão. Apesar de terem considerado o grau de culpa de Salgado “perto do limite máximo da moldura”, os juízes relevam “a inserção familiar e social”, a “ausência de passado criminal” e a “idade do arguido e o seu estado de saúde”. Negativamente pesou o comportamento de Salgado “que manifestamente não assume o desvalor e as consequências da sua conduta”. Ponderada “a gravidade do ilícito global” e “o período de tempo que perdurou” determinam os seis anos de prisão, bastante menos do que pediram os procuradores.

 

O facto de os juízes não terem tirado qualquer consequência do diagnóstico de Alzheimer de Salgado deverá levar a defesa, que já anunciou que vai recorrer da decisão, a pedir a nulidade do acórdão por falta de pronúncia sobre uma questão essencial. A questão da incompetência do tribunal para decidir este caso será outra das questões abordadas, já que existe pendente um recurso que só irá subir ao Tribunal da Relação de Lisboa com a impugnação do acórdão.

 

Juízes consideram “absolutamente destituídos de credibilidade” os pagamentos de 15 milhões por serviços que apenas surgem “espelhados em notícias de jornais e em informações obtidas pelo arguido”.

 

“Haverá que referir que predominantemente foram os meios de prova documentais que apoiaram a formação da convicção do tribunal colectivo”, escrevem os juízes Francisco Henriques, Rui Coelho e Sílvia Costa. E acrescentam: “A documentação pontualmente indicada relativamente a cada ponto de facto faz a demonstração inequívoca das movimentações financeiras, a qual ficou mais clara com o depoimento da testemunha Paulo Jorge Carvalho Silva [inspector tributário que fez parte da equipa de investigação], a qual” demonstrou “grande experiência no conhecimento do funcionamento das sociedades offshore”.

 

Curioso é que os juízes destacam várias vezes o depoimento de testemunhas que foram arroladas pela própria defesa, como Jean Luc Shneider, que ocupou diferentes cargos no GES, e José Neto, advogado que trabalhou para o banqueiro no Brasil.

 

Em causa estava, segundo a tese do Ministério Público, a apropriação feita por Salgado de 10,7 milhões de euros com origem no grupo que administrava. O colectivo considerou provado que a primeira tranche de 2,75 milhões de euros chegou em Novembro de 2010 à conta na Suíça de uma offshore criada no Panamá e controlada por Salgado, depois da ES Entreprises, conhecida como o saco azul do GES, ter transferido um total de 15 milhões de euros para o empresário luso-angolano Hélder Bataglia. Este, por sua vez, reencaminhou uma parte do montante para Salgado. Os juízes não acreditaram que se trataria do reembolso de um empréstimo que o banqueiro teria feito àquele empresário luso-angolano, como alegou a defesa. Aliás, os juízes consideram que os 15 milhões foram transferidos “sem que tenha sido demonstrada a prestação de qualquer serviço por Hélder Bataglia”, que alegadamente teria assinado um contrato com a Enterprises para ajudar a empresa, que não surgia no organograma do grupo nem nas suas contas consolidadas, a “investir nas áreas do petróleo, minério e imobiliário em várias regiões do Congo Brazzavile e da República de Angola”.

 

“Não existe nenhum fundamento para o retorno de 2.750.000 euros para a esfera do arguido”, concluem os juízes que consideram “absolutamente destituídos de credibilidade” os pagamentos de 15 milhões de euros por serviços que apenas surgem “espelhados em notícias de jornais e em informações obtidas pelo arguido”.

 

Relativamente à segunda transferência, no valor de quatro milhões de euros realizada em Outubro de 2011, da ES Entreprises para a mesma offshore controlada por Salgado, a alegação da defesa de que se trataria de um empréstimo também não convenceu os juízes, que consideraram a justificação “muito pouco credível”. Por que razão o presidente da comissão executiva do BES, o maior banco privado português, iria contrair um empréstimo junto de uma sociedade do GES com nenhuma actividade conhecida e com fundos de proveniência desconhecida?, interrogam os juízes.

 

Contrato “forjado” depois da transferência

Os magistrados lembram que foi apresentado um documento datado de Outubro de 2011 para justificar o empréstimo, mas notam que numa busca foi apreendida uma mensagem de correio electrónico trocada em Setembro de 2014 entre um subalterno e Jean Luc Shneider com o ficheiro contendo o tal documento datado de 2011, mas sem assinatura e com erros ortográficos, corrigidos nos documentos apresentados pela defesa. “A testemunha Jean Luc Schneider não conseguiu explicar a razão do envio desse documento. Mais, da análise dos metadados do documento (…) resulta que o mesmo foi criado em 01/09/2014 por Anne Claude Deriaz, colaboradora da Enterprises”. E remata-se: “Em suma, o tribunal colectivo formou a convicção que o documento justificativo da celebração do contrato de empréstimo foi forjado em data muito posterior à da realização da transferência, e que o arguido utilizou em proveito próprio o montante em causa”.

 

Os juízes não acreditaram igualmente na justificação dada pela defesa para a terceira tranche de perto de quatro milhões de euros, transferidos em Novembro de 2011 por Henrique Granadeiro, que liderou durante anos a PT, após ter recebido um total de 14 milhões de euros da Enterprises numa conta em nome de uma offshore que controlava. Os quatro milhões acabaram numa conta em nome de uma empresa criada no Panamá que tinha como beneficiária a mulher de Salgado. O colectivo nota “a manifesta contradição” no que a mulher de Salgado fez constar na abertura da conta - que a mesma tinha como objectivo receber o reembolso de um empréstimo concedido pelo marido a um membro do GES, - e a justificação dada pelo procurador​ de Granadeiro quando o dinheiro foi transferido: o valor destinava-se à compra de um imóvel em Portugal.

 

A transferência dos 14 milhões da Enterprises para Granadeiro – que o Ministério Público diz serem luvas de Salgado para pagar o favorecimento dos interesses do GES na PT, mas que o juiz Ivo Rosa mandou arquivar – foi justificado pelo antigo gestor da operadora de telecomunicações ao tribunal com a venda de 30% de uma sociedade agro-pecuária que detém uma herdade no Alentejo e na qual queria construir um campo de golf e reabilitar uma casa senhorial para a transformar num hotel de charme. “Esta explicação seria credível se tal tivesse realmente ocorrido”, sublinham os juízes. Mas, enfatizam, apenas ocorreu a transferência, a “aplicação desse capital não foi realizada”. Estranham igualmente que a primeira transferência do dinheiro tenha sido feita sem que fosse formalizado qualquer acordo (que data de Janeiro de 2012, uns meses mais tarde) e que tenha sido escolhido para adquirente uma empresa sem qualquer actividade. Apesar disso, só em Julho de 2016 é que a sociedade agro-pecuária fez constar da informação empresarial a participação de 30% da Enterprises.

 

“Esta prova indiciária é suficiente para criar a convicção do tribunal colectivo do contrato em causa constituir uma justificação serôdia para as transferências efectuadas”, lê-se na decisão. A justificação para o retorno dos perto de quatro milhões para Salgado, que teria o objectivo de pagar uma casa de Salgado no Brasil que Granadeiro iria adquirir também não convenceu os juízes. A defesa apresentou duas avaliações do imóvel, mas a primeira transferência realizou-se antes de uma delas ser realizada, destaca o acórdão. “Por outro lado, esta transferência foi efectuada sem que tenha existido qualquer contrato promessa, nem tão pouco a escritura de compra e venda e subsequente registo”, sublinha-se. Os juízes notam ainda que o advogado brasileiro que acompanhou a construção da casa e que foi arrolado pela defesa de Salgado disse que nunca lhe foi pedido para formalizar a venda do imóvel, mas apenas, em 2015, a realização de uma escritura de doação da parte de Salgado a favor da mulher.

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