OPERAÇÃO MARQUÊS
O que levou os juízes a condenar Ricardo Salgado?
Sobretudo a prova documental
Tribunal dá como provado que “foi diagnosticada a doença
de Alzheimer” ao antigo banqueiro, mas não tira qualquer consequência disso.
Defesa deve pedir nulidade do acórdão por esse motivo.
Mariana Oliveira
8 de Março de
2022, 23:30
Os três juízes
que condenaram esta segunda-feira o antigo banqueiro Ricardo Salgado a uma pena
de seis anos de prisão efectiva por três crimes de abuso de confiança
qualificada explicam em pouco mais de dez páginas como formaram a sua
convicção, sublinhando a importância das provas documentais e considerando sem
credibilidade as explicações dadas pela defesa do antigo líder do Banco
Espírito Santo para a transferência de um total de 10,7 milhões de euros com
origem no seu grupo familiar para contas de duas sociedades offshore controladas
pelo banqueiro.
Nas 93 páginas do
acórdão, os juízes dão como provado que “foi diagnosticada a doença de
Alzheimer” a Salgado, mas não tiram qualquer consequência disso. Apenas referem
de forma genérica a “idade do arguido e o seu estado de saúde” como um dos
factores que determinaram a medida da pena, que, neste caso, podia oscilar
entre os quatro e os 12 anos de prisão. Apesar de terem considerado o grau de
culpa de Salgado “perto do limite máximo da moldura”, os juízes relevam “a
inserção familiar e social”, a “ausência de passado criminal” e a “idade do
arguido e o seu estado de saúde”. Negativamente pesou o comportamento de
Salgado “que manifestamente não assume o desvalor e as consequências da sua
conduta”. Ponderada “a gravidade do ilícito global” e “o período de tempo que
perdurou” determinam os seis anos de prisão, bastante menos do que pediram os
procuradores.
O facto de os
juízes não terem tirado qualquer consequência do diagnóstico de Alzheimer de
Salgado deverá levar a defesa, que já anunciou que vai recorrer da decisão, a
pedir a nulidade do acórdão por falta de pronúncia sobre uma questão essencial.
A questão da incompetência do tribunal para decidir este caso será outra das
questões abordadas, já que existe pendente um recurso que só irá subir ao
Tribunal da Relação de Lisboa com a impugnação do acórdão.
Juízes consideram “absolutamente destituídos de
credibilidade” os pagamentos de 15 milhões por serviços que apenas surgem
“espelhados em notícias de jornais e em informações obtidas pelo arguido”.
“Haverá que
referir que predominantemente foram os meios de prova documentais que apoiaram
a formação da convicção do tribunal colectivo”, escrevem os juízes Francisco
Henriques, Rui Coelho e Sílvia Costa. E acrescentam: “A documentação
pontualmente indicada relativamente a cada ponto de facto faz a demonstração
inequívoca das movimentações financeiras, a qual ficou mais clara com o depoimento
da testemunha Paulo Jorge Carvalho Silva [inspector tributário que fez parte da
equipa de investigação], a qual” demonstrou “grande experiência no conhecimento
do funcionamento das sociedades offshore”.
Curioso é que os
juízes destacam várias vezes o depoimento de testemunhas que foram arroladas
pela própria defesa, como Jean Luc Shneider, que ocupou diferentes cargos no
GES, e José Neto, advogado que trabalhou para o banqueiro no Brasil.
Em causa estava,
segundo a tese do Ministério Público, a apropriação feita por Salgado de 10,7
milhões de euros com origem no grupo que administrava. O colectivo considerou
provado que a primeira tranche de 2,75 milhões de euros chegou em Novembro de
2010 à conta na Suíça de uma offshore criada no Panamá e controlada por
Salgado, depois da ES Entreprises, conhecida como o saco azul do GES, ter
transferido um total de 15 milhões de euros para o empresário luso-angolano
Hélder Bataglia. Este, por sua vez, reencaminhou uma parte do montante para
Salgado. Os juízes não acreditaram que se trataria do reembolso de um
empréstimo que o banqueiro teria feito àquele empresário luso-angolano, como
alegou a defesa. Aliás, os juízes consideram que os 15 milhões foram
transferidos “sem que tenha sido demonstrada a prestação de qualquer serviço
por Hélder Bataglia”, que alegadamente teria assinado um contrato com a
Enterprises para ajudar a empresa, que não surgia no organograma do grupo nem
nas suas contas consolidadas, a “investir nas áreas do petróleo, minério e
imobiliário em várias regiões do Congo Brazzavile e da República de Angola”.
“Não existe
nenhum fundamento para o retorno de 2.750.000 euros para a esfera do arguido”,
concluem os juízes que consideram “absolutamente destituídos de credibilidade”
os pagamentos de 15 milhões de euros por serviços que apenas surgem “espelhados
em notícias de jornais e em informações obtidas pelo arguido”.
Relativamente à
segunda transferência, no valor de quatro milhões de euros realizada em Outubro
de 2011, da ES Entreprises para a mesma offshore controlada por Salgado, a
alegação da defesa de que se trataria de um empréstimo também não convenceu os
juízes, que consideraram a justificação “muito pouco credível”. Por que razão o
presidente da comissão executiva do BES, o maior banco privado português, iria
contrair um empréstimo junto de uma sociedade do GES com nenhuma actividade
conhecida e com fundos de proveniência desconhecida?, interrogam os juízes.
Contrato “forjado” depois da transferência
Os magistrados
lembram que foi apresentado um documento datado de Outubro de 2011 para
justificar o empréstimo, mas notam que numa busca foi apreendida uma mensagem
de correio electrónico trocada em Setembro de 2014 entre um subalterno e Jean
Luc Shneider com o ficheiro contendo o tal documento datado de 2011, mas sem
assinatura e com erros ortográficos, corrigidos nos documentos apresentados
pela defesa. “A testemunha Jean Luc Schneider não conseguiu explicar a razão do
envio desse documento. Mais, da análise dos metadados do documento (…) resulta
que o mesmo foi criado em 01/09/2014 por Anne Claude Deriaz, colaboradora da
Enterprises”. E remata-se: “Em suma, o tribunal colectivo formou a convicção
que o documento justificativo da celebração do contrato de empréstimo foi
forjado em data muito posterior à da realização da transferência, e que o
arguido utilizou em proveito próprio o montante em causa”.
Os juízes não
acreditaram igualmente na justificação dada pela defesa para a terceira tranche
de perto de quatro milhões de euros, transferidos em Novembro de 2011 por
Henrique Granadeiro, que liderou durante anos a PT, após ter recebido um total
de 14 milhões de euros da Enterprises numa conta em nome de uma offshore que
controlava. Os quatro milhões acabaram numa conta em nome de uma empresa criada
no Panamá que tinha como beneficiária a mulher de Salgado. O colectivo nota “a
manifesta contradição” no que a mulher de Salgado fez constar na abertura da
conta - que a mesma tinha como objectivo receber o reembolso de um empréstimo
concedido pelo marido a um membro do GES, - e a justificação dada pelo
procurador de Granadeiro quando o dinheiro foi transferido: o valor
destinava-se à compra de um imóvel em Portugal.
A transferência
dos 14 milhões da Enterprises para Granadeiro – que o Ministério Público diz
serem luvas de Salgado para pagar o favorecimento dos interesses do GES na PT,
mas que o juiz Ivo Rosa mandou arquivar – foi justificado pelo antigo gestor da
operadora de telecomunicações ao tribunal com a venda de 30% de uma sociedade
agro-pecuária que detém uma herdade no Alentejo e na qual queria construir um
campo de golf e reabilitar uma casa senhorial para a transformar num hotel de
charme. “Esta explicação seria credível se tal tivesse realmente ocorrido”,
sublinham os juízes. Mas, enfatizam, apenas ocorreu a transferência, a
“aplicação desse capital não foi realizada”. Estranham igualmente que a
primeira transferência do dinheiro tenha sido feita sem que fosse formalizado
qualquer acordo (que data de Janeiro de 2012, uns meses mais tarde) e que tenha
sido escolhido para adquirente uma empresa sem qualquer actividade. Apesar
disso, só em Julho de 2016 é que a sociedade agro-pecuária fez constar da
informação empresarial a participação de 30% da Enterprises.
“Esta prova
indiciária é suficiente para criar a convicção do tribunal colectivo do
contrato em causa constituir uma justificação serôdia para as transferências
efectuadas”, lê-se na decisão. A justificação para o retorno dos perto de
quatro milhões para Salgado, que teria o objectivo de pagar uma casa de Salgado
no Brasil que Granadeiro iria adquirir também não convenceu os juízes. A defesa
apresentou duas avaliações do imóvel, mas a primeira transferência realizou-se
antes de uma delas ser realizada, destaca o acórdão. “Por outro lado, esta
transferência foi efectuada sem que tenha existido qualquer contrato promessa,
nem tão pouco a escritura de compra e venda e subsequente registo”,
sublinha-se. Os juízes notam ainda que o advogado brasileiro que acompanhou a
construção da casa e que foi arrolado pela defesa de Salgado disse que nunca
lhe foi pedido para formalizar a venda do imóvel, mas apenas, em 2015, a
realização de uma escritura de doação da parte de Salgado a favor da mulher.
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