EDITORIAL
Manifesto em defesa do jornalismo
O juízo das nossas escolhas editoriais não cede a
manifestos intimidatórios: obedece apenas à lei, ao bem comum, à nossa
consciência e às necessidades e apoio dos nossos leitores.
Manuel Carvalho
23 de Setembro de
2021, 20:00
https://www.publico.pt/2021/09/23/politica/editorial/manifesto-defesa-jornalismo-1978561
Circula por aí um
manifesto pela liberdade de expressão que avançou sob a égide de princípios
iluminados e recolheu certamente o apoio de muitos cidadãos de boa-fé. Mas,
como tantas vezes acontece, sob a capa de bons princípios podem esconder-se
estratégias sórdidas e objectivos grotescos. No caso, o que na verdade se
pretende não é combater a censura: é derrubar a mediação do jornalismo. O que o
manifesto quer não é a liberdade de expressão: é conseguir que jornais como o
PÚBLICO se transformem num vazadouro semelhante às redes sociais onde grassa a
superstição, o negacionismo, as teorias da conspiração ou as indignações do dia
temperadas com o habitual insulto. O manifesto inspira-se em Rosa Luxemburgo e
o PÚBLICO responde com Dolores Ibárruri, “La Pasionária”, outra luminária do
radicalismo iliberal: “No pasarán!”
Como começo, vale
a pena perguntar por que razão o PÚBLICO é o alvo desta sanha intimidatória
feita em nome da liberdade de expressão. Não será por contar no seu painel de
colunistas regulares com pessoas de todas as orientações políticas e
ideológicas. Não será por ter publicado artigos de Raquel Varela a defender que
os confinamentos nos levaram ao “limiar do totalitarismo”. Nem por ter acolhido
textos de Paulo de Morais, outro subscritor, a descrever o país como um pântano
de corrupção sem nunca ter divulgado um só caso em concreto. Não, o pretexto
formal foi a publicação e posterior despublicação de um artigo do médico Pedro
Girão.
Peguemos, então,
nesse caso. Certo: a publicação foi um erro, ocorrido em tempo de férias e
despublicado por ferir as normas do nosso Livro de Estilo. Pedimos desculpa por
esse erro e discutimos as nossas razões com os leitores e com o autor num texto
de crítica e resposta franco e aberto. Pedro Girão voltou, entretanto, a
escrever no jornal, mantendo as suas críticas ao “pensamento único”, as suas
reflexões sobre o carácter transitório das verdades da ciência e as suas ideias
(erradas, na nossa opinião, mas legítimas) sobre a gestão da pandemia.
Ainda assim, o
manifesto insiste em acusar o PÚBLICO de censura, pelo que convém pôr as coisas
no devido lugar. Primeiro, recordando que o PÚBLICO não é um jornal de parede
nem um albergue onde cabem todas as opiniões. Os seus leitores sabem bem qual é
a sua natureza, o seu propósito e os seus valores. Sabem que nos regemos por um
estatuto editorial e por um Livro de Estilo que, em matéria de opinião, obriga,
por exemplo, “ao respeito pela linguagem não insultuosa e não panfletária” ou
exige que “a opinião deverá ser sempre devidamente fundamentada”. Sabem que
somos o único jornal do país com um provedor do Leitor e um Conselho de
Leitores (desactivado desde o início da pandemia, é certo). Internamente, temos
o privilégio de manter um Conselho de Redacção vigilante e crítico. E, em
decorrência da Lei de Imprensa, sabem também que o PÚBLICO tem um director para
“orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação”.
Confundir
“censura” com mediação e com a aplicação de critérios editoriais só não é sinal
de ignorância porque está fora de causa a craveira intelectual dos mentores do
manifesto. Sobra então o seu propósito essencial: a vontade de se ingerirem na
liberdade editorial do jornal e o desejo incontido de abolirem as regras que
garantem a sua identidade e credibilidade. Os manifestantes querem que o
PÚBLICO, hoje, e outros jornais, amanhã, aceitem e publiquem sem reservas todos
os seus devaneios, verdades retorcidas ou mundivisões eivadas de ressentimento
aprimoradas pela desinformação. Querem, afinal, deslegitimar o jornalismo
fundado na deontologia, na lei e na responsabilidade perante a sociedade para o
transformar numa cloaca onde, em nome da liberdade de expressão, a superstição,
a mentira ou os fantasmas da conspiração se instituam.
Usar um manifesto
como um ataque ad hominem com o propósito de forçar o PÚBLICO a publicar o que
não cabe na sua orientação editorial é, por isso, uma tentativa de esvaziar os
direitos dos jornalistas de decidir o que é ou não notícia ou separar a opinião
relevante da opinião manipuladora.
Neste vale-tudo,
Raquel Varela tem até o descaramento de dizer que a assinatura do manifesto deu
origem a uma “perseguição” da parte do PÚBLICO a partir dos erros do seu
currículo. Uma mentira facilmente desmascarada pela sua conta no Facebook, na
qual, a 27 de Julho, há dois meses, quando soube da nossa investigação,
prometeu levar o jornalista a tribunal se avançasse com o seu dever
profissional. Se há quem tenha argumentos para dizer que esta campanha é uma
“perseguição”, é, portanto, o PÚBLICO. Não vamos por aí, embora saibamos que há
sempre um preço a pagar pelo dever de fazer jornalismo. Nada, portanto, a
esconder: escrutinar um concurso com dinheiros públicos no qual a historiadora
apresentou um currículo favorecido por vários erros é jornalismo e nada mais do
que jornalismo. Se a notícia surgiu agora, é porque só agora o Instituto de
História Contemporânea, que lhe retirou o apoio, validou a nossa informação.
Isto dito,
repita-se uma recomendação aos mentores do manifesto (e só a esses, para evitar
ferir a boa-fé de muitos que o subscreveram em nome de altos princípios): não
nos intimidam. A lógica irresponsável das redes sociais onde gostam de se
banquetear não vai subverter o nosso jornalismo, os nossos valores nem os
nossos deveres para com a sociedade. No PÚBLICO, quem determina o que se
publica ou não publica são os seus jornalistas, os seus editores e os seus
directores. O juízo das nossas escolhas editoriais não cede a manifestos
intimidatórios: obedece apenas à lei, ao bem comum, à nossa consciência e às
necessidades e apoio dos nossos leitores.
tp.ocilbup@ohlavrac.leunam


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