Rendas
inacessíveis de Lisboa e Porto alargam-se ao resto do país
Ainda só há 78
contratos assinados no âmbito do Programa de Arrendamento Acessível. A
diferença entre rendas e rendimentos é cada vez maior e afecta a cada vez mais
territórios.
Luísa Pinto 5 de
Dezembro de 2019, 6:30
Desde que entrou
em vigor, no passado dia 1 de Julho, o Programa de Arrendamento Acessível (PAA) ainda nem chegou aos 100 contratos de
arrendamento em todo o país. Mesmo depois de o Governo ter prontamente admitido
que iria demorar algum tempo para que este programa – que isenta os
proprietários de impostos caso aceitem colocar no mercado os seus imóveis com
rendas 20% abaixo da mediano dos preços praticados –, e de a secretaria de
Estado da Habitação evidenciar que em média é submetido um novo contrato de arrendamento
a cada dois dias, verdade é que até agora só há 78 contratos assinados.
E a inegável
disparidade entre o número de alojamentos disponíveis e o de agregados
familiares que se registaram na plataforma e com interesse em aceder,
mantém-se. O número de agregados registados diminuiu para 5049 e há apenas 249
habitações disponíveis no programa.
Quando em
Setembro deste ano o PÚBLICO divulgou o trabalho realizado por uma equipa de
investigadores da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP)
que, com recurso às regras de acesso ao PAA e aos dados públicos disponíveis,
simulou o seu comportamento para auscultar o mercado de arrendamento e medir o
impacto que sobre ele teriam este e outros programas lançados pelo Governo,
percebeu-se que o PAA era insuficiente para as famílias de Lisboa, Porto e
Algarve. Três meses depois, e depois de actualizados os dados das rendas
medianas do primeiro semestre de 2019 (que foram entretanto publicados pelo
INE) e do IRS de 2017 (que substitui, nas contas feitas pelos investigadores,
os dados de 2016), a situação não melhorou. Pelo contrário.
“Embora esta
actualização tenha permitido aproximar a simulação do funcionamento real do
programa (e atenuar o desfasamento entre rendas e rendimentos), o diagnóstico
prévio persiste: existe uma inacessibilidade severa e em crescimento no actual
funcionamento do mercado, onde a diferença entre rendas e rendimentos é cada
vez maior e afecta a cada vez mais territórios”, conclui Aitor Vareo Oro,
investigador do grupo Morfologias e Dinâmicas do território do Centro de
Estudos em Arquitectura e Urbanismo da FAUP .
Recorde-se que o
exercício em causa parte do cruzamento de dois tipos de dados: primeiro, a
renda que, segundo o PAA, teria um T2 de 95 metros quadrados em cada município
(e freguesia, quando possível) de Portugal continental; segundo, o valor
mediano dos rendimentos brutos dos potenciais inquilinos. O resultado é uma
representação do tecido habitacional do país a partir de duas rampas de cores:
tons frios onde os valores não atingem o valor limite de 35% de taxa de
esforço, tons quentes onde o fazem. Ou seja, quanto mais vermelho escuro for a
mancha, mais difícil é aceder à habitação.
No estudo
publicado em Setembro foram escolhidas as “rendas acessíveis” (para fazer um
retrato do potencial impacto do PAA); desta vez, o baixo nível de adesão ao
programa até à data sugeriu escolher as rendas de mercado calculadas em linha
com os critérios do PAA (para fazer um retrato do mercado de arrendamento).
O esforço de
tentar mapear o desfasamento entre rendas e rendimentos a partir do número de
meses de ordenado que faltariam (ou sobrariam) a um agregado fiscal mediano
para aceder ao já referido T2 tipo, dentro do município de residência, revela
que as manchas de cor quente têm vindo a atingir vários territórios do país.
Tal como apurado
em Setembro, os problemas graves de acesso ao arrendamento permanecem no Porto,
em Lisboa e no Algarve. “As duas grandes cidades do país parecem estar a
repetir dinâmicas de mercado que, já conhecidas em outras cidades europeias,
contaminam as periferias com o aumento do valor fundiário experimentado nos centros
urbanos”, nota Aitor Varea Oreo. Por exemplo, na freguesia de Campanhã seria
preciso mais dez meses de salário para aceder a um imóvel nas condições
impostas pelo programa, no Bonfim seria preciso mais 15 e na Foz mais 19. Em
Lisboa a situação também piorou: na freguesia de Santa Clara faltam 14 meses de
salário, na de Alcântara 22 e na de Santa Maria Maior há 27 salários a menos
nos rendimentos medianos das famílias.
Mas estes
problemas estão a alargar-se a outros territórios que não os centrais - tais
como Évora, Leiria, Pombal, Santarém, Tomar, Figueira da Foz, Guimarães ou
Barcelos onde o PAA ainda viabilizaria, em teoria, o acesso a uma habitação com
taxas de esforço inferiores a 35% do rendimento bruto mensal, mas já com
algumas limitações. E existem já outros territórios como Peniche, Setúbal,
Santa Maria da Feira, Caldas da Rainha e Sines (para além de zonas de procura
de alojamento por estudantes como Aveiro, Coimbra, Braga) onde baixar em 20% o
valor dos arrendamentos - como prevê o programa - já não resolve os problemas
de habitação, que estão a aumentar.
A mancha de
crescimento destes territórios “inacessíveis” é bem visível no mapa nacional,
onde se representa graficamente a partir de que data é que o cruzamento das
rendas medianas e dos rendimentos dos munícipes torna impossível aceder a uma
habitação, mesmo com rendas abaixo da mediano do mercado. Esta análise só foi
possível a partir do segundo semestre de 2017, período a partir do qual o
Instituto Nacional de Estatísticas (INE) passou a divulgar o valor mediano das
rendas para habitação. Essa cor vermelha escura aparecia então nas varias
freguesias de Lisboa, Porto e em muitos concelhos do Algarve. Durante o ano de
2018, começamos a ver esses problemas a chegar a outros concelhos limítrofes
dessas áreas metropolitanas, mas também já a cidades como Aveiro e Setúbal.
No primeiro
semestre de 2019, os problemas já chegaram a Braga e a Coimbra. E, comparando
os dois mapas e analisando a sua evolução, percebe-se que as cidades de Évora,
Beja e Vila Real, que ainda são caracterizadas como tendo território acessível
aos rendimentos medianos nacionais, já são inacessíveis aos munícipes dos
respectivos concelhos. Nas três capitais de distrito, os munícipes recebem
entre zero a três salários a menos para conseguir suportar as taxas de esforço
imposta pelas regras do Programa de Arrendamento Acessível.
OPINIÃO
Habitação: não
queremos ser expulsas de Lisboa
A cidade de
Lisboa está a perder a sua gente. Os que cá moram, alguns desde sempre, não
conseguem resistir à pressão imobiliária e do turismo. Resta-nos uma cidade sem
Lisboetas, sem alma.
4 de Dezembro de
2019, 20:12
Somos Lisboetas
porque é aqui que vivemos há muitos anos e amamos a nossa cidade. Vivemos na
Mouraria e temos o coração alfacinha.
Gostamos da
cidade e das suas gentes e também dos que nos visitam. Mas viver nesta cidade é
cada vez mais difícil. Todas as semanas vemos uma vizinha partir e as suas
casas serem transformadas para turismo. Os preços das casas estão muito altos e
é impossível encontrar uma alternativa que nos permita ficar aqui a viver perto
do local onde trabalhamos e onde os nossos filhos vão à escola. O governo não
arranja soluções para este problema e a câmara municipal apresenta programas
muito reduzidos na capacidade de oferta. A crise está a agravar-se dia para
dia.
Vivemos num
prédio na rua dos Lagares, no número 25, mesmo no centro da Mouraria. Há dois
anos éramos 16 famílias, hoje somos 11. Foi no verão de 2017 que o nosso
senhorio nos quis pôr na rua. Não aceitámos que, depois de tantos anos a viver
naquele prédio, o senhorio nos expulsasse sem existir uma alternativa. Juntámos
os vizinhos, fomos expor o nosso problema na Assembleia e Câmara Municipal de
Lisboa, fomos à televisão e, com a solidariedade de muitos amigos, conseguimos
que a câmara municipal interviesse.
Na altura, a
câmara pressionou o senhorio e conseguiu um acordo que, apesar de aumentar
significativamente as rendas para alguns inquilinos, permitiu prolongar a
permanência das famílias por cinco anos. Foi “apenas um balão de oxigénio”,
como lhe chamou na altura a presidente da Assembleia Municipal, a arquiteta
Helena Roseta. Disse também que era preciso fazer mais. A própria câmara
municipal equacionou a compra do prédio e isso também nos deu alguma esperança.
Agora sabemos que o tempo está a contar e a esgotar-se. O horizonte para nós
está muito escuro e sabemos que dentro de dois anos estaremos na rua.
A nossa esperança
reacendeu-se quando a câmara municipal abriu um concurso para arrendamento de
casas municipais no centro histórico. Uma das condições para acesso a este
concurso era estar em risco de perder a habitação num prazo de 12 meses.
Candidatámo-nos e preencheríamos todas as condições para ser selecionadas se
não fosse o acordo de 2017 que a própria câmara municipal nos pediu para
assinar para ficar no nosso prédio e supostamente termos estabilidade nas
nossas vidas. Porque ainda temos cerca de dois anos de contrato, não fomos
aceites. Fomos penalizadas pelo acordo que nos deram para assinar.
Estamos aflitas
porque sabemos que dentro de pouco tempo teremos de sair das nossas casas.
Estamos por isso numa situação de precariedade habitacional e ainda assim somos
excluídas dos poucos programas que existem para dar alternativas de habitação
às pessoas. É uma injustiça e revela bem a incapacidade da câmara municipal em
proteger os direitos dos Lisboetas.
A cidade de
Lisboa está a perder a sua gente. Os que cá moram, alguns desde sempre, não
conseguem resistir à pressão imobiliária e do turismo. E os que gostariam de
viver na cidade e não têm altos rendimentos também não conseguem pagar os
preços exorbitantes. Resta-nos uma cidade sem Lisboetas, sem alma. Carla
Pinheiro, Rosário Conceição, Alessandra Espossito (moradoras da Mouraria)
As autoras
escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico
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