O mundo escondido da fraude alimentar: Sabe mesmo o que
come?
Bacalhau que é paloco e vaca que é porco. Mel com açúcar.
Queijo de cabra feito com leite de ovelha. Peixe com aditivos que retêm a água,
tornando-o mais pesado. Estes são alguns (mas nem de perto os únicos) dos
logros mais comuns nos alimentos. Estima-se que um em cada dez produtos seja
afetado pela fraude alimentar – que gera lucros ao nível do tráfico de droga
LUÍS RIBEIRO
Jornalista
SOCIEDADE 28.04.2018 às 8h00
Com a ajuda de um bisturi, a técnica do Laboratório de
Microbiologia e Biologia Molecular da ASAE (Autoridade para a Segurança Alimentar
e Económica) desfaz um ravioli com “37% de carne de porco” e tira uns pedaços
minúsculos do recheio para um frasquinho. 300 miligramas é o suficiente para
extrair o ADN, explica. Segue-se um longo processo: o produto começa por ser
misturado com reagentes químicos, depois é aquecido e vibrado durante duas
horas, e centrifugado durante mais duas ou três horas. No final, já com as
proteínas e as membranas da célula destruídas e separadas, o ADN fica, por
assim dizer, à vista.
O laboratório tem kits para detetar o ADN de oito tipos de
carne: vaca, porco, galinha, cabra, ovelha, cavalo, peru e pato (ao contrário
de entidades semelhantes na União Europeia, a ASAE não tem um sequenciador
genético de nova geração, que custa €400 000, mas tem a capacidade de procurar
muito mais espécies, e de um modo mais eficiente). No caso deste ravioli, e
sendo o propósito do teste despistar uma fraude alimentar, não faz sentido
desperdiçar tempo e dinheiro (cada kit custa perto de €600) a procurar carnes
mais caras – a lógica dita que, quando muito, o produto terá carnes mais
baratas, como frango ou cavalo. Nenhum produtor, por mais generoso que seja,
oferece lombo de vaca ou pato ao preço de porco.
Em teoria, o laboratório conseguirá saber em oito horas qual
a espécie ou espécies que se encontram no recheio do ravioli. Fica deslindada a
dúvida se comemos gato por lebre (não literalmente, já que o laboratório não
tem kits de deteção de lebre nem de gato). Não se descobrirá, no entanto, se o
ravioli tem efetivamente 37% de carne, como anunciado na embalagem. O mesmo
vale para os preparados de carne picada: o principal objetivo da ASAE é saber
se está a ser usada outra carne que não a declarada, pelo que é preterida a
confirmação daqueles 80% ou 82,5% de carne que o rótulo apregoa (o restante,
quase um quinto do seu peso, é pão ralado, farinhas e conservantes, e é por
isso que a lei obriga a que o rótulo indique “preparado de carne picada” e não
simplesmente “carne picada”).Quanto às “alheiras de caça”? Coelho e perdiz não
estão na lista de espécies analisadas pelo laboratório. Para lá disso, ainda
que em princípio haja diferenças no teor de gordura entre animais criados em
cativeiro e em liberdade, é praticamente impossível provar, através de análises,
que determinado bicho é de produção, não de caça.
Compreende-se que o laboratório se concentre na busca pela
espécie (faz cerca de 12 destas análises por mês) e não tanto na confirmação da
quantidade ou na origem do animal – afinal, a necessidade desta valência, que
existe desde outubro de 2014, surgiu com a crise da carne de cavalo, no início
de 2013, quando uma investigação iniciada na Irlanda e alargada ao resto da
Europa revelou a presença generalizada de cavalo em hambúrgueres, lasanhas e
outros produtos supostamente de vaca que, na altura, por quilo, era 50% mais
cara do que a carne de cavalo. Portugal não escapou, com a ASAE a apreender 79
toneladas de alimentos suspeitos.
A investigação confluiu em dois homens: o britânico
Andronicos Sideras e o dinamarquês Ulrik Nielsen, condenados a quatro anos e
meio e a três anos e meio de prisão, respetivamente. Penas pesadas,
justificadas não pelos lucros do logro, calculados em €200 mil, mas sim pelos
prejuízos causados, que terão atingido muitas centenas de milhões de euros. �Só a maior cadeia de
supermercados britânica, a Tesco, perdeu mais de 350 milhões de euros de valor
em bolsa na sequência do escândalo.
Na realidade, porém, estas condenações são a exceção. Apesar
dos enormes ganhos potenciais e dos prejuízos associados à fraude alimentar –
que tem um custo global estimado em €44,7 mil milhões e afetará um em cada dez
produtos, e que levou a Comissão Europeia a anunciar, esta semana, a criação de
um Centro do Conhecimento, para lutar contra estas práticas fraudulentas –, as
penas são quase sempre leves. Sobretudo em Portugal, que gere esta matéria com
um decreto-lei considerado anacrónico, de 1984. “A moldura penal é bastante
baixa”, admite o inspetor-geral da ASAE, Pedro Portugal Gaspar, que pede uma revisão
da legislação
PALOCO PASSA POR BACALHAU �EM
RESTAURANTES
Um relatório do Parlamento Europeu sobre fraude alimentar,
publicado em 2013, identifica, por ordem, os dez produtos com maior risco de
falsificação na Europa – azeite, peixe, alimentos biológicos, leite, cereais,
mel e xarope de ácer, café e chá, especiarias, vinho e certos sumos de fruta.
Alguns destes alimentos estão igualmente entre as fraudes
mais comuns em território nacional, segundo a ASAE: a venda de peixes e carnes
diferentes dos declarados ou com aditivos proibidos (para aumentar o peso do
alimento), queijos de cabra produzidos com leite de vaca ou ovelha, azeites
adulterados com outros óleos vegetais, vinhos caros falsificados e aguardentes
vínicas com mistura de destilados mais baratos, como maçã e cana-de-açúcar.
Sendo um dos maiores consumidores mundiais de peixe per
capita, Portugal é particularmente afetado pela possibilidade de fraudes nesta
área. E, a julgar por investigações noutros países, temos razões para estar
preocupados. Nos EUA, a Oceana (a maior organização não governamental dedicada
à proteção dos oceanos) concluiu, após análises a amostras recolhidas em
restaurantes e supermercados, que 59% dos peixes testados não eram os
anunciados. No caso da albacora, uma espécie próxima do atum, 84% das colheitas
revelaram ser escolar, um peixe que em quantidades razoáveis provoca
perturbações gastrointestinais. Noutro estudo, a associação ecologista analisou
o ADN de 82 amostras de salmão e descobriu que, entre os que se diziam “selvagem”,
um em cada três era, na verdade, de aquicultura.
Manuel Tarré, presidente da Associação da Indústria
Alimentar pelo Frio (ALIF), duvida de que este tipo de embuste seja frequente
na indústria portuguesa de peixe, devido aos certificados de rastreabilidade
obrigatórios na União Europeia. Mas isso não quer dizer que podemos confiar que
comemos sempre o que nos dizem. “Acontece nos restaurantes e refeitórios, sim,
e as pessoas não chegam a aperceber-se de que consomem uma coisa a achar que é
outra. A maioria não consegue distinguir um peixe de outro. Não é como a carne.
Vaca é obviamente vaca, porco vê-se que é porco…”
A ASAE não tem montado no laboratório um sistema de
verificação de espécies para o pescado, como tem para a carne. Não são analisados,
por exemplo, os bacalhaus desfiados ou as tiras de polvo à venda nos
supermercados para despistar paloco ou pota, visualmente semelhantes, mas com
um valor comercial muito mais baixo. Há, contudo, ações de fiscalização em
restaurantes através do cruzamento de guias e faturas, que redundam na abertura
de processos – se um estabelecimento compra paloco e serve bacalhau à Brás,
para onde foi o paloco e de onde vem o bacalhau? O mesmo acontece na indústria
transformadora: também pela via administrativa, já têm sido apanhadas pelas
autoridades empresas que produzem pastéis de “bacalhau” com paloco.
ALIMENTOS CONGELADOS �COM
40% DE ÁGUA
Há mais práticas desonestas e ilegais relativamente comuns.
Uma delas é injetar no peixe (quase sempre cefalópodes) aditivos expansores,
que retêm a água e fazem aumentar o peso de modo ilegítimo. “Uma pessoa compra
um polvo com um quilo ou dois, chega a casa, coze-o e fica com 350 gramas”,
explica Manuel Tarré, também fundador da Gelpeixe, uma das maiores empresas
nacionais de alimentos ultracongelados. “A maior parte destas práticas é feita
fora de Portugal, mas é um facto que algumas empresas portuguesas podem estar a
fazê-lo.”
Finalmente, há a questão da água de vidragem – o peso da
camada de gelo que envolve os produtos congelados, que obrigatoriamente tem de
ser descontado (é por isso natural que uma embalagem de meio quilo de peixe
pese 550 gramas; depois de retirado da embalagem e escorrido, o peixe deverá
ter 500 gramas). “Mas há quem não faça isso, e depois o produto é 20%, 30% ou
40% de água não compensada no peso final. E, nestes casos, não é coisa feita
necessariamente por empresas estrangeiras”, acusa o presidente da associação
dos congelados.
Apesar de tudo, continua o representante do setor, “nenhuma
empresa séria, grande, deve correr esse risco” – uma marca consagrada terá
demasiado a perder, caso seja descoberta em práticas fraudulentas. Mas, para
outros, lamenta Manuel Tarré, o crime compensa. “Alguém me dizia que a multa
será sempre inferior ao que já ganhou a fazer este tipo de coisas. Além disso,
há gerentes que desaparecem do mercado devido a isto e, passado algum tempo,
regressam com uma empresa em nome do tio ou do irmão.”
O azeite é outro setor que vive muito do seu bom nome, pelo
que as desonestidades (mistura de outros óleos vegetais, um problema apontado
pela ASAE) são pouco vulgares, afiança a secretária-geral da Casa do Azeite –
Associação do Azeite de Portugal, Mariana Matos. Quando muito, há uma
degradação do azeite virgem extra por ter sido exposto à luz ou a certas
temperaturas, retirando-lhe as características que fazem dele um produto de
excelência. “Pode ser responsabilidade do produtor, claro, mas é apenas uma
questão de negligência.”
Esta segurança, porém, só se aplica ao azeite que podemos
encontrar nas lojas da especialidade e nos supermercados, garante. “Há uma
grande preocupação com o que é vendido nas feiras, nos mercados, à beira da
estrada e a granel, vendidos como tradicionais, mas falsificados com óleos
baratos.”
A reputação do azeite nacional está neste momento a passar
por uma contrariedade, mas de forma involuntária e além-fronteiras. No Brasil,
uma auditoria ao setor revelou que quase todas as marcas envasilhadas naquele país
revelaram a presença de outros óleos, e muitas destas marcas são vendidas como
azeite português. “O produto não sai de cá defraudado”, assegura Mariana Matos.
“São empresas brasileiras que fazem o milagre dos pães: importam dez e daí
produzem mil. As autoridades brasileiras já têm fechado fábricas por causa
disso. Mas é uma realidade que causa danos à imagem do nosso azeite.”
‘‘ANÁLOGOS A QUEIJO’’
O caso do vinho é diferente do do azeite – o que tem
concentrado a atenção das autoridades é, acima de tudo, burlas na venda de
vinhos de excelência. Em dezembro, a ASAE apreendeu 16 garrafas de Barca-Velha
e duas de Pêra-Manca falsificadas, na sua maioria vendidas online, que no
mercado valeriam dez mil euros. “A questão da internet abre desafios novos”, admite
o inspetor-geral da ASAE, Pedro Portugal Gaspar. “Algumas das nossas
intervenções têm detetado estas situações no mercado digital, onde há maior
dificuldade de fiscalização.”Para Ana Isabel Alves, secretária-geral da ACIBEV
– Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal, situações como esta, assim
como a adulteração de aguardentes vínicas com produtos menores, têm mão de “uma
minoria de operadores” com a “tentação de aproveitar a boa imagem de marcas de
sucesso” e de “produtores sem reconhecimento e pessoas que se dedicam ao
contrabando”. �O setor,
acrescenta, tem adotado medidas para impedir a falsificação (garrafas
personalizadas, cápsulas invioláveis, selos com hologramas), mas nenhum
mecanismo de defesa é inviolável. “O controlo no ponto de venda é sempre da
competência das autoridades. Do lado do consumidor, é importante que este se
assegure de que o local onde está a fazer a compra é fiável.”
Os laticínios também não escapam à fraude alimentar. Uma das
situações mais usuais é a presença de leite de vaca em queijos de cabra. Mas
Paulo Leite, diretor-geral da Associação Nacional dos Industriais de
Laticínios, prefere sublinhar a entrada “recorrente” em Portugal de “análogos a
queijo” (normalmente produtos fatiados), falseados pela mistura de gorduras
vegetais, e a existência de bebidas que se intitulam leite sem, legalmente,
poderem fazê-lo, como os “leites” de soja e amêndoa. “Um produto não lácteo não
pode ter essa designação.”
Estes são, aparentemente, os únicos problemas identificados
nos laticínios em Portugal. Mas nos EUA, por exemplo, já foram denunciadas
falsificações completas de queijo. Em 2012, uma investigação da FDA (entidade
federal com jurisdição sobre a alimentação) descobriu que queijos parmesão
ralados de uma grande empresa, a Castle Cheese, continham mozarela, cheddar e
queijo suíço – e nem uma lasca de parmesão. A burla levou à falência da firma e
a sua presidente foi condenada a três anos de pena suspensa, cinco mil dólares
(quatro mil euros) de multa e 200 horas de trabalho comunitário.
Os holofotes voltaram a apontar ao queijo americano há dois
anos, quando a agência de notícias Bloomberg News mandou analisar várias
amostras de “100% parmesão” ralado e encontrou níveis de 8% e 9% de pasta de
celulose (produzida a partir de madeira). �A
celulose é comummente utilizada em queijos ralados e fatiados para evitar que
estes se “colem”, mas técnicos da indústria apontam para um máximo aceitável de
4%. As percentagens deste aditivo no queijo, contudo, não costumam estar
discriminadas no rótulo. Nem o produto costuma ser designado com o seu nome
genérico: na Europa, é identificado pelos “E” na casa do 460 (E461 a E469).
QUANDO A SAÚDE FICA EM CAUSA
Apesar de a ideia de comer pasta de madeira parecer
estranha, a celulose é inócua para a saúde. Na sua essência, não passa de
fibra. �O que está em
causa será apenas a compra de queijo com menos... queijo. A saúde também não
está em causa no facto de algumas especiarias serem “cortadas” com areia e
folhas secas, ou quando a dispendiosa baunilha verdadeira é misturada com
vanilina sintética.
Mas a fraude alimentar pode ultrapassar os limites do crime
económico e transformar-se numa crise de saúde pública. Foi o que aconteceu na
China, em 2008: a adição de melamina no leite e em fórmula infantil (a melamina
dá uma “injeção” de proteína, mascarando, por exemplo, o acrescento de água)
levou à morte de, pelo menos, seis bebés e à hospitalização de dezenas de
milhares de crianças. Só por si, a melamina não é tóxica. O problema é ser
muitas vezes usada juntamente com outro aditivo, o ácido cianúrico, mistura que
pode provocar falências renais. Nos EUA, aliás, um ano antes do escândalo,
terão morrido milhares de gatos e cães depois de consumirem comida para animal
adulterada com estes compostos químicos, também com origem na China. As
autoridades chinesas, após começarem por negar a existência de qualquer
problema, prenderam dois alegados responsáveis.
A adulteração de produtos alimentares tem sido apontada, por
alguns especialistas, como uma das razões para o aumento generalizado de
alergias alimentares (atualmente, 4% a 6% das crianças têm uma alergia). E não
há dúvida de que muitas reações alérgicas, por vezes fatais, estão diretamente
relacionadas com a troca encoberta de ingredientes por outros mais baratos. Um
caso que já se tornou clássico é a substituição de amêndoa por amendoim. No
Reino Unido, onde têm morrido pessoas devido a estas fraudes, as autoridades já
detetaram embalagens de amêndoa em pó, muito empregadas em pratos indianos, com
50% de amendoim.
AS OUTRAS VÍTIMAS
Os dados das operações de fiscalização dão a entender que há
um aumento generalizado da fraude alimentar. Em Portugal, de 2016 para 2017,
houve uma subida para mais do dobro dos casos registados pela ASAE (de 405 para
1002), embora a autoridade atribua esse crescimento a um foco maior da
fiscalização neste tipo de burla. Por outras palavras, quanto mais se procura,
mais se encontra.
E a vítima não é só o consumidor. �“A concorrência desleal é um problema. Põe
determinadas empresas em vantagem competitiva”, lamenta Pedro Queiroz,
presidente da Federação das Indústrias Portuguesas Agroalimentares (FIPA).
“Muitas vezes, a fraude propaga-se a outros operadores económicos sem saberem.
O operador pode ser enrolado, como aconteceu com a carne de cavalo. Mas a
sensação que tenho é a de que, em Portugal, se trabalha bem, o que não quer
dizer que a burla não aconteça. Eventualmente produtos importados de países com
menor controlo, fora da União Europeia, podem ser mais propícios a fraude.”
Inegável é que a economia global, ao diversificar e tornar
mais difusas as origens dos alimentos, acaba por ser um aliado desta
criminalidade – o enorme número de elos da cadeia e o facto de o produtor se
encontrar, muitas vezes, longe do distribuidor final ou do consumidor torna o
processo quase anónimo, em que é muito difícil e complexo rastrear o
responsável, e ainda mais puni-lo. Além disso, os criminosos estão em constante
evolução, pesquisando e encontrando novos métodos, cada vez mais indetetáveis.
A questão não é saber se andamos a ser enganados quando
olhamos para o carrinho de compras. É saber em quê.