O
eclipse de Marx e a viragem do proletariado à extrema-direita
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 09/12/2015 - PÚBLICO
Os
partidos políticos de governo, hoje ideologicamente neoliberais ou
multiculturalistas, fracassaram na resposta às preocupações do
proletariado e das populações oriundas de outras culturas.
1. Parece
implausível. O proletariado não suporta ideologias e partidos de
extrema-direita. São a antítese da consciência de classe, no
sentido marxista do termo, dos problemas de quem vive de um parco ou
miserável salário. Mas a história das ideias políticas contém
muitas surpresas. Mussolini foi director do Avanti!, o jornal do
Partido Socialista e marxista italiano, entre 1912-1914. Após a I
Guerra Mundial, metamorfoseou-se como fundador e líder do Partido
Nacional Fascista. O pensamento de Nietzsche teve grandes admiradores
em Mussolini e no círculo dirigente nazi. A partir dos anos 1960,
passou a ser apreciado pela esquerda intelectual e política
francesa. Carl Schmitt, “o jurista da corte do Terceiro Reich”,
foi objecto de apropriação por parte da esquerda radical,
especialmente a italiana, nos anos 1970, na sua contestação à
democracia liberal-parlamentar. A moderna ideia de nação — a qual
surgiu ligada à esquerda política, com a Revolução Francesa de
1789 — foi, a pouco e pouco, deslocando-se. Há uma apropriação
pela direita, ou extrema-direita, desta. Hoje, a esquerda sente-se
incomodada com a referência à nação e as manifestações de
nacionalismo. Prefere ideias europeístas, multiculturais ou
universalistas, especialmente os direitos humanos. As metamorfoses de
ideias políticas são surpreendentes, mas não invulgares. Podemos
estar a assistir a um processo político similar com as ideologias
que suportavam a classe trabalhadora / proletariado. Os seus
problemas económicos e sociais, os seus valores culturais, estão a
ser apropriados pela extrema-direita e direita populista. A esquerda
contemporânea, especialmente a de governo, sente-se desconfortável
com o proletariado. Este é — sempre foi, mesmo quando votava em
massa nos partidos trabalhistas ou comunistas —, cultural e
moralmente conservador. Nas prioridades da agenda política de
esquerda estão causas como as minorias, a igualdade de género, a
liberdade de orientação sexual e o ambiente. Abandonou, continua a
afastar-se do que era, não há muito tempo atrás, o seu principal
eleitorado.
2. Tudo indica que o
atentado terrorista de 13/N e a crise dos refugiados impulsionaram
eleitoralmente a Frente Nacional (FN). Na primeira volta das eleições
regionais francesas, efectuada a 6/12/2015, obteve cerca de 28% dos
sufrágios a nível nacional. Foi a força política mais votada em
seis das treze regiões francesas. A taxa de abstenção foi elevada:
próxima dos 50%. Uma questão vem à mente: quem são as camadas da
população que votam na FN? Não há ainda estudos sobre esta
eleição, mas há estudos sobre actos eleitorais anteriores os quais
permitem aferir esse perfil. Vale a pena olhar para os mesmos e ver a
realidade que espelham. Em 2014, nas últimas eleições para o
Parlamento Europeu, 43% dos operários terão votado na FN de Marine
Le Pen. Apenas 8% o fizeram na Frente de Esquerda de Jean-Luc
Mélenchon, a coligação onde se enquadra o partido comunista
francês. (Ver Le Monde “Le FN obtient ses meilleurs scores chez
les jeunes et les ouvriers”, 25/05/2014). Que pensar do voto desses
operários — o núcleo histórico e simbólico do proletariado —,
num partido de extrema-direita, ou direita populista? Uma possível
(e controversa) interpretação é dada por Christophe Guilluy, autor
do livro “La France périphérique: Comment on a sacrifié les
classes populaires” / A França Periférica: como foram
sacrificadas as classes populares (Flammarion, 2014). Guilluy traça
um perfil desse votante e das suas motivações. Segundo sustenta, é
redutor ver esse voto apenas sob o prisma do racismo, xenofobia ou
islamofobia. Entre o eleitorado da FN existem esses problemas e devem
ser confrontados. Sugere, no entanto, uma explicação mais complexa.
Problemas económicos e sociais profundos — sobretudo nas regiões
Norte e Leste — e culturais indentitários —, especialmente nas
regiões do Sul. Os votantes encontram-se nos “territórios
periféricos da França, com baluartes que são sempre o Norte, o
Leste, o Mediterrâneo. Quando olhamos melhor para as regiões e
departamentos vemos que a lógica é exactamente a mesma em todas as
situações”. Tipicamente nas “zonas económicas menos activas,
que criam menos empregos. Estes são os territórios mais distantes
das grandes metrópoles, das grandes cidades dinâmicas”.
Christophe Guilluy conclui que “há uma verdadeira lógica,
sociológica e política” nesse voto, o qual, em grande parte, é
um voto de trabalhadores / operários e de protesto: “não é por
acaso que a votação na FN se tornou um voto de classe, aliás com
uma sociologia de esquerda…" (Ver entrevista na revista Slate,
‘Le vote FN est devenu un vote de classe’, 26/03/2015). Nas
eleições regionais de 6/12/2015, Marine Le Pen teve mais de 40% dos
sufrágios na região industrial do Norte-Pas-de-Calais-Picardia.
Está também aí o campo de refugiados / migrantes de Calais, junto
à entrada do eurotúnel. Esta votação parece dar plausibilidade à
explicação. Ironicamente, num terreno sociológico que Marx via
como seu.
3. “O movimento
proletário é o movimento autónomo da maioria imensa, no interesse
da maioria imensa.” […] O progresso da indústria, de que a
burguesia é portadora [...] coloca, no lugar do isolamento dos
operários pela concorrência, a sua união revolucionária pela
associação. […] produz, antes do mais, o seu próprio coveiro. O
seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente
inevitáveis.” Estas antevisões do futuro — ver “Manifesto do
Partido Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels de 1848 (trad.
port. Edições “Avante!”, 1997) —, estão desfasadas da
realidade do final do século XX e inícios do século XXI. Conforme
já referido, parte importante do debate político passou da economia
política — como era nos tempos de Marx, e foi até aos anos 1980
—, para as minorias, a igualdade de género, a liberdade de
orientação sexual, o ambiente as migrações e o multiculturalismo.
Isto com grande vantagem para o (neo)liberalismo. O abandono do
terreno pela esquerda deixou-o hegemónico na economia política.
Esta mutação é mal percebida em Portugal. A nossa realidade
sociológica — pelo menos até agora foi assim —, mostra uma das
sociedades culturalmente mais homogéneas da Europa. Com provável
relação com este facto, subsiste um partido comunista com
importante peso eleitoral. Retém, ainda, a grande maioria do voto do
proletariado. Na União Europeia, o mesmo só ocorre em Chipre. Não
por acaso, também aí existe uma grande homogeneidade cultural entre
os cipriotas gregos. Entre nós, a designação como “assuntos de
costumes”, ou “causas fracturantes”, sobretudo a primeira,
sugere questões relativamente afastadas do debate político central.
Mas é a nossa política que está desfasada da realidade europeia
dominante. Laurent Jeanneau, na sua análise às razões do voto na
FN, em França (Ver “Pourquoi ils votent FN” in Alternatives
Economiques n.° 332, Fevereiro 2014), mostra esse desfasamento. “Há
vinte anos, a clivagem política ainda se concentrava,
principalmente, sobre os valores socio-económicos: deve-se
redistribuir a riqueza? Aumentar os salários? O Estado deve intervir
na economia? Essas questões marcavam o debate político e os
trabalhadores, na época. Estes votavam massivamente à esquerda,
enquanto os quadros se inclinavam para a direita”. Apesar da crise
financeira e económica ter dado nova relevância às questões de
economia política, a tendência de fundo não se alterou. Os
“valores culturais” são hoje terreno de confrontação política
e da (re)configuração ideológica em curso.
4. Provavelmente
existe uma relação directa entre o multiculturalismo de gueto e a
viragem, de uma parte substancial da classe trabalhadora /
proletariado, à extrema-direita. O multiculturalismo de gueto ocorre
quando a presença, num mesmo território, frequentemente suburbano,
é feita através de um acantonamento de um grupo étnico, cultural
ou religioso, em áreas específicas de grande concentração. Por
sua vez, os contactos com a cultura maioritária da sociedade de
acolhimento, as interacções com esta e a partilha de valores são
mínimos. (Ver “A França e o multiculturalismo de gueto” in
Público). “Pequenos brancos” (petits blancs). A expressão tem
conotações depreciativas. Surgiu ligada à história colonial
francesa e às populações de origem europeia da Ilha de Reunião —
no Índico, próxima de Madagáscar —, com pele clara, mas pobres e
de estatuto social baixo. Hoje, por transposição de ideias, é
aplicada às populações nativas francesas pobres que vivem em
contacto directo com populações oriundas de migrações não
europeias. (Ver o livro de Aymeric Patricot, “Les petits Blancs: Un
voyage dans la France d'en bas” / Pequenos brancos: uma viagem na
França das classes baixas, Plein Jour, 2013). É este proletariado
autóctone que mais contacta, na vivência do dia-a-dia, com o
multiculturalismo de gueto. É aqui que o mal-estar social grassa e é
captado pela extrema extrema-direita em interacção directa com
outro radicalismo: o dos islamistas. Partes significativas da
população do grupo cultural maioritário, habituadas a uma lógica
monocultural, têm sentimentos de vulnerabilidade, receio e
insegurança. Em termos culturais, sentem-se estrangeiros no seu
próprio território. Em termos económicos, são os que estão mais
em contacto — e, sobretudo, envolvidos numa competição —, por
recursos escassos, nos lugares pior pagos do mercado de trabalho e
nas prestações sociais. Vêem o capitalismo neoliberal usar as
populações ligadas ao multiculturalismo de gueto para baixar os
salários com essa mão-de-obra concorrente. Sentem-se esquecidos,
ressentem-se como perdedores da integração europeia e globalização.
Nesta sociedade destrutiva duas forças políticas emergem: o
radicalismo de extrema-direita e o radicalismo islamista. Os partidos
políticos de governo, hoje ideologicamente neoliberais ou
multiculturalistas, fracassaram na resposta às preocupações do
proletariado e das populações oriundas de outras culturas.
Investigador
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