OPINIÃO
Debates que são farsas e duas
ilusões perigosas
TERESA DE SOUSA
04/05/2014 – PÚBLICO
Acabaram por destruir muito mais do que seria preciso, ignorando a
realidade da vida das pessoas e da economia.
Vimos a nossa
margem de manobra diminuída drasticamente quando precisámos do resgate, mas
Pedro Passos Coelho esteve sempre sentado à mesa do Conselho Europeu e fomos
nós que escolhemos continuar no euro. Os nossos problemas são outros. O
programa de ajustamento estava errado, como as próprias instituições que o
negociaram chegaram a admitir? Falhou nos efeitos da austeridade na economia?
Falhou espectacularmente na destruição de empregos? Pôde fazê-lo também graças
à cumplicidade do Governo português, que, na altura, acreditava piamente que o
programa da troika lhe dava a grande oportunidade para aplicar o seu próprio
programa. Nessa altura, Pedro Passos Coelho acreditava mesmo que a destruição
de alguns sectores “atrasados” da nossa economia (construção e pequeno retalho)
seria um bem para o país. Esqueceu-se do desemprego. Os jovens “visionários”
que enxameiam os gabinetes acreditavam numa destruição “criativa”, capaz de
regenerar a economia. Os custos humanos não entravam na equação. Partiam da
teoria segundo a qual tínhamos vivido acima das nossas posses, justificando o
merecido castigo para nos regenerarmos, ou seja, subscreviam a estratégia
punitiva de Berlim. Acabaram por destruir muito mais do que seria preciso,
ignorando a realidade da vida das pessoas e da economia.
A ideia de
vivermos acima das nossas posses “pegou” bem. Era fácil acreditar nisso. Bastam
dois ou três exemplos para ilustrar a demagogia contida nessa afirmação. O
elogio do turismo da saúde para os reformados ricos, hoje tão na moda, era
impossível sem uma medicina que, através do Serviço Nacional de Saúde, se
aproxima dos melhores da Europa? A resposta é óbvia. Quando toda a gente invoca
esse número extraordinário da mortalidade infantil que se situa abaixo da média
europeia, é caso para perguntar: qual devia ser então a mortalidade infantil a
que teríamos direito? Cinco por cento, 7,5 por cento? Toda a gente quis comprar
uma casa e utilizar o crédito barato para o consumo privado? Também aqui a
parte da história que não é contada é que os bancos nos enfiavam créditos pela
garganta abaixo. Era esse o “credo” político e económico vigente aqui e lá
fora, que, aliás, deu origem à crise financeira mundial. Novas oportunidades?
Um disparate. A evolução extraordinária da investigação científica? Um luxo de
ricos. Jovem diplomados? Têm muito sítio para emigrar. Cortes nas pensões? Só
nas dos milionários acima dos mil euros. Não sei se Passos Coelho já se
arrependeu do que disse.
2. Tínhamos de
ajustar com alguma dor, é verdade. O problema foi que o Governo não quis
minimizá-la, partindo da sua crença ideológica segundo a qual a competitividade
perdida se recuperava rapidamente com a redução dos salários. Precisamos de
investimento externo, até porque as empresas nacionais pouco conseguiram
reduzir as suas dívidas. Não se imagina que o novo investimento alemão na
AutoEuropa tenha a ver com salários baixos. A outra face do ajustamento – as
reformas estruturais – ainda está à espera de melhores dias. Houve apenas uma
grande reforma, que ainda não satisfaz os nossos credores: a do mercado
laboral. Radical ao ponto de assistirmos a essa cena patética de ver um
ministro (Mota Soares, na ocorrência) a gabar-se de não ter cedido à troika na
redução das indemnizações dos despedimentos “ilegais”. Ilegais? Quanto à
reforma do Estado, dada a Paulo Portas para se entreter com alguma coisa, não
passa de um slogan do Governo e de um “desejo” do Partido Socialista, sem que
um ou outro nos elucidem sobre o que é que isso significa. Aliás, quando a
oposição critica o Governo por não reduzir o défice pelo lado da despesa, corre
o risco de ver o seu desejo realizado. Cortar despesas pode também significar
cortar no SNS, na escola pública, nas garantias sociais. É isso que querem?
3. Este domingo,
o primeiro-ministro revelará ao país um segredo de Polichinelo: a saída do
programa será “limpa”. Bastava ao Governo ter visto o que aconteceu à Irlanda
(e viu, com certeza) para saber o que nos ia acontecer a nós. Hoje já se sabe
que a chanceler vetou qualquer programa cautelar a Dublin, com o apoio dos
países do costume. Mas sabemos mais. Sabemos que Paris e Berlim quiseram
aproveitar a oportunidade para tentar impor à Irlanda uma “harmonização” do
IRC, uma das suas maiores vantagens competitivas. Até onde pode chegar o
cinismo.
Há coisa de um
mês, encontrei o novo primeiro-ministro do Luxemburgo de visita a Lisboa,
depois dos 18 anos de Jean-Claude Juncker, que muito simpaticamente me explicou
o seguinte: imagine que o seu Governo ia ao Parlamento para convencer os
deputados a darem mais dinheiro ao Luxemburgo. Como é que vocês reagiriam?
Mensagem: nenhum país do Norte aceitará levar um “cautelar” aos respectivos
parlamentos. Na Finlândia, no Luxemburgo, na Alemanha ou na Holanda. É essa a
questão que nem o Governo nem o PS explicam aos eleitores. Durante meses
preferiram alimentar um debate assente em premissas falsas. A queda dos juros
da dívida para valores extraordinários (os analistas dos mercados ainda debatem
a causa desta descida, admitindo que pode ter a ver com o facto de o capital
estar a regressar dos países emergentes para a Europa, incluindo o Sul, e para
os EUA, para além das palavras de Draghi sobre a compra de activos), mais um
crescimento tímido ajudaram a transformar esta saída "limpa" ditada
lá fora numa “grande vitória” que o PS terá de engolir.
4. Mas há outra
ilusão perigosa que está a ser criada na campanha eleitoral para as europeias,
segundo a qual o presidente da Comissão será escolhido pela vontade dos povos,
na medida em que os grandes partidos europeus vão apresentar o seu próprio
candidato. Dizer que, se ganhar o Partido Socialista Europeu, o seu candidato a
Bruxelas pode fazer mudar as coisas é alimentar uma ilusão. Não se trata apenas
do facto de a Comissão ter perdido grande parte do seu poder e do seu
prestígio. A Comissão não é um governo, é uma instituição supranacional sui
generis que deve representar o interesse comum europeu. A questão é que as
divisões europeias estão muito longe de serem ideológicas, como todos sabemos e
aprendemos nesta crise. O ministro holandês que preside ao Eurogrupo e que
consegue ser mais papista do que o seu congénere alemão é membro do Partido
Trabalhista. Martin Schulz é um social-democrata alemão que, para além da
retórica simpática, funcionará como social-democrata alemão. Jean-Claude
Juncker é um social-cristão, mais próximo da compreensão dos problemas dos
países do Sul. Os programas dos dois grandes partidos europeus são um conjunto
de banalidades em que tem de caber tudo. Podem fazer grandes debates políticos
usando palavras mais ou menos vazias de sentido, ainda que simpáticas. Apenas
ajudam a desviar a atenção do que está em causa nestas eleições: a ascensão
assustadora dos nacionalismos em alguns países decisivos para o futuro da
Europa. Não vale a pena dizer que serão apenas marginais no PE. O verdadeiro
problema não está em Bruxelas, mas nas democracias nacionais e na sua
incapacidade para combater a retórica nacionalista destes partidos, quando
apenas oferecem um discurso mole e ilusório sobre os méritos da Europa e caem
na tentação de “incluir” algumas das suas bandeiras. O nacionalismo cega as
pessoas com verdades primárias e com o ódio aos outros, apresentados como
responsáveis pelos seus males. Os europeus conhecem-no bem. A Europa está a
aprender de forma dramática como lidar com o nacionalismo de Putin. Pode
apanhar um grande susto com as vitórias de Marine, de Farage ou de Wilders. É tempo
de enfrentar os verdadeiros problemas: os europeus e os nossos, deixando de
lado um mundo do faz-de-conta que já não existe.
Jornalista
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