O “liberalismo selvagem” tem como resultado “tornar os fortes mais fortes, os fracos mais fracos e os excluídos mais excluídos”, diz também. |
O Papa Francisco acena para a multidão durante cerimônia do
Angelus na Praça de São Pedro: Pontífice demonstrou uma maior abertura às
transformações das sociedades modernas, o que está lhe rendendo ataques de
conservadores STEFANO RELLANDINI / Reuters/STEFANO RELLANDINI
Papa Francisco já enfrenta resistência no Vaticano
Ala tradicionalista da Igreja
condena abertamente mudanças promovidas pelo Pontífice
Fernando Eichenberg
Publicado: 29/09/13 / http://oglobo.globo.com/mundo/papa-francisco-ja-enfrenta-resistencia-no-vaticano-10192000
PARIS - Não é raro o Papa Francisco deixar sua sala de
trabalho na Residência de Santa Marta, na Cidade do Vaticano, tirar uma moeda
do bolso e se servir de um café expresso na máquina instalada no corredor. Em
mais de seis meses de pontificado, o sucessor de Bento XVI manteve seus austeros
hábitos de cardeal franciscano, renunciou aos aposentos papais no Palácio
Apostólico e a tradicionais símbolos do vestuário do cargo, como os sapatos
vermelhos ou a cruz de ouro (ele usa uma de prata).
No discurso, o novo Pontífice demonstrou uma maior abertura
às transformações das sociedades modernas, na rejeição de uma ingerência
espiritual na vida pessoal, e criticou a “obsessão” da Igreja por temas como o
casamento homossexual, o aborto ou os contraceptivos. A Igreja “dos pobres e
para os pobres” do Papa Francisco tem suscitado entusiasmo entre fiéis, mas
também desaprovação e severas críticas por parte de setores católicos
conservadores.
Para o italiano Marco Politi, um dos mais respeitados
vaticanistas, está em curso “uma verdadeira revolução”, num processo gradual de
“desmontagem de uma Igreja imperial” em que o Papa era o monarca absoluto e a
Cúria romana, o centro de dominação. O analista aponta uma firme intenção de
Francisco em impor o “princípio de colegialidade” pela implementação de um
mecanismo de consulta com os bispos para decidir sobre as mudanças necessárias
à Igreja.
— Por isso que já ocorre uma resistência das forças
conservadoras, não somente na Cúria, mas na Igreja. Mas até este momento, no
escalão superior, os cardeais e bispos conservadores não falam abertamente
contra o Papa, deixam as críticas mais furiosas aos sites na internet. Vemos em
diferentes partes do mundo sites muito agressivos contra o Papa, acusando-o de
populista, demagógico, pauperista, de não querer exercer o primado absoluto de
Pontífice romano — nota Politi.
‘Enganador em turnês demagógicas’
O blog “Messainlatino.it”, que prega a renovação da Igreja
“na esteira da tradição”, denunciou uma “real e verdadeira crise de identidade”
do Pontífice por causa de uma de suas notórias declarações no voo de retorno à
Itália da viagem ao Rio de Janeiro, onde participou da Jornada Mundial da
Juventude (JMJ): “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou
eu para julgá-la?”, disse Francisco. O site tradicionalista diagnosticou como
“um sinal tangível de um extravio existencial que faz literalmente tremer os
nervos e o corações dos fiéis”, e indagou de forma irônica: “Perdoe o
atrevimento, vós não sois, talvez, o ‘Papa’? Não tendes, talvez, as chaves para
abrir e fechar o Reino dos Céus?”.
Conservadores americanos reunidos no “Tradition in Action”,
site baseado em Los Angeles que defende as “tradições católicas”, acusaram
Francisco de ser um “enganador” que organiza “turnês demagógicas” em “estilo
miserabilista”. Para o “Tradition in Action”, o Pontífice procura
“dessacralizar os símbolos do papado a fim de aboli-los”. O site criticou seu
gesto de retirar o solidéu para colocá-lo sobre a cabeça de uma menina: “Deste
modo, quer parecer como um velho vovô que brinca com a sua netinha e, ao mesmo
tempo, demonstrar que os símbolos do papado são inúteis”.
Bertone fora do caminho
Para o “Corrispondenza Romana”, setores da Igreja estão
sendo controlados por “uma minoria de frades rebeldes de orientação
progressista”. O site “Una Fides” censurou missas celebradas no Brasil em que
sacerdotes distribuíram a eucaristia em copos de plástico: “O Senhor, um dia,
pedirá contas pelos inumeráveis sacrilégios cometidos por milhões de crentes,
milhares de sacerdotes, centenas de bispos, dezenas de cardeais e talvez até
por alguns Papas.” Já a publicação americana “National Catholic Register”
definiu a eleição de Jorge Mario Bergoglio como Papa como “mais um acréscimo à
pilha das recentes novidades e mediocridades católicas”.
Para Marco Politi, haverá mais oposição entre bispos e
cardeais no mundo do que dentro da Cúria, onde grande parte de seus integrantes
estava decepcionada com a ineficácia administrativa de Bento XVI e com o
autoritarismo do cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano.
— Não podemos saber como tudo vai evoluir, mas é certo que à
medida que o Papa avançar em suas reformas, o movimento de resistência por
parte dos conservadores será cada vez mais forte — avalia.
Para o posto de Bertone, o segundo na hierarquia da Santa
Sé, foi nomeado o arcebispo Pietro Parolin, “um homem de grande experiência,
que não tem uma atitude ideológica, mas de atenção para a realidade
contemporânea”, diz Politi. O vaticanista lista, ainda, algumas mudanças
importantes já feitas ou sinalizadas pelo Papa: o saneamento do Banco do
Vaticano, com tolerância zero para as contas opacas; a criação do grupo de
trabalho constituído de oito cardeais para refletir e elaborar propostas de
reformas na Cúria, a comunhão para os divorciados recasados ou a ascensão de mulheres
a postos de decisão na hierarquia da Igreja.
— Uma de suas decisões que provocaram bastante ruído em Roma
foi a demissão do prefeito da Congregação do Clero, o cardeal Mauro Piacenza
(substituído por Beniamo Stella), responsável pelas centenas de milhares de
padres no mundo — acrescenta Politi. — Era muito conservador, e contra qualquer
mudança na lei do celibato. Esta troca é um sinal claro de que o Papa não quer
um conservador num posto-chave como este.
‘A instituição irá se defender’
Para o sociólogo francês Olivier Bobineau, especialista em
religiões no Instituto de Ciências Políticas de Paris (Sciences-Po) e autor de
“O império dos Papas — uma sociologia do poder na Igreja”, haverá um limite
para as reformas de Francisco. Na sua opinião, o Pontífice já deu sinais de
abertura, simplificou o protocolo hierárquico e poderá alterar o “clima e o
ambiente” na Igreja, mas terá enormes dificuldades se desejar promover
transformações mais profundas.
— A primeira coisa que ele teria de fazer é mexer no
edifício hierárquico. Mas nem João XXIII conseguiu fazê-lo. A instituição irá
se defender. Há padres e bispos que amam este poder hierárquico, e vão tentar
conservá-lo por todos os meios. Não se pode sair de uma estrutura católica que
remonta ao século V. Há 1.500 anos é assim. Um só homem não pode mudar isto.
Bobineau acredita que o Papa centrará seu Pontificado nas
mensagens de amor e pelos pobres e em mudanças de estilo:
— Em sua recente entrevista à revista dos jesuítas, ele
disse que as reformas estruturais e organizacionais são secundárias. Ele sabe.
Seria necessário explodir tudo. Ele está no topo de uma estrutura hierárquica
que em algum momento vai lhe impor limites. Quanto mais ele empurrar no sentido
de mudanças, mais sofrerá resistências dos conservadores — prevê.
Entre 1º e 3 de outubro, o Conselho de oito cardeais se
reunirá com o Papa para preparar um documento de trabalho com propostas de
reformas na Cúria. No dia 4, Francisco visitará, pela primeira vez como Papa,
Assis, a cidade do santo que inspirou o nome de seu pontificado.
— A expectativa é de que fará um discurso bastante forte
sobre a pobreza na Igreja — arrisca Politi.
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“Não existe um Deus católico… Acredito em Jesus Cristo, a sua encarnação." |
Papa considera Igreja Católica muito "vaticanocêntrica"
Crítica a um governo da Igreja centrado no Vaticano, cujos interesses “são
ainda em grande medida temporais”, numa entrevista publicada no dia em que
começa a discutir reformas com um grupo de cardeais.
As declarações foram publicadas nesta terça-feira,
dia em que começa um conselho de cardeais que pode decidir reformas na
Igreja.
A Cúria – governo da Igreja – não é uma corte, mas encontram-se lá
“cortesãos”, afirma o Papa. Francisco adianta que fará o que estiver ao seu
alcance para mudar a mentalidade “vaticanocêntrica”. A Cúria centra-se muito nos
interesses do Vaticano que “são ainda em grande medida interesses
temporais”.A entrevista é feita pelo fundador do La Repubblica, Eugenio Scalfari, e segue-se a uma troca de correspondência, depois de o jornalista ter manifestando ao Papa as razões do seu ateísmo. Francisco revela que, por momentos, ponderou não aceitar a eleição para liderar a Igreja, quando foi escolhido, em Março.
Falando sobre a sua fé, o Papa afirma: “Não existe um Deus católico…Acredito em Jesus Cristo, a sua encarnação. Jesus é o meu mestre e o meu pastor, mas Deus, o pai …é a luz e o criador."
O Papa Bergoglio distingue também clericalismo de cristianismo. “Não tem nada a ver com cristianismo”, sublinha. “Acontece-me também a mim: se encontro um clerical torno-me anticlerical.”
Francisco manifesta o entendimento de que a Igreja deve relançar-se a partir do Concílio Vaticano II e abrir-se à cultura moderna, participando nos grandes debates da actualidade.
Os “males mais graves que afligem o mundo” são, afirma, “o desemprego dos jovens e a solidão em que são deixadas as pessoas idosas”. O “liberalismo selvagem” tem como resultado “tornar os fortes mais fortes, os fracos mais fracos e os excluídos mais excluídos”, diz também.
Francisco começa nesta terça-feira uma reunião com oito cardeais de todo o mundo – Itália, Chile, Índia, Alemanha, República Democrática do Congo, EUA, Austrália e Honduras – a quem pediu que o ajudassem a reformar a administração do Vaticano. “É o princípio de uma Igreja com uma organização não apenas vertical mas também horizontal”, disse.
O reforço do papel das mulheres na Igreja, a situação dos católicos divorciados e os abusos sexuais são outros assuntos que poderão ser abordados nas discussões que se devem prolongar por três dias. A intenção de criar o conselho de cardeais foi anunciada por Francisco um mês depois da sua eleição.
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