segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Corpo presente, mente ausente. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho in Público 26/08/2012.

Opinião

Corpo presente, mente ausente

Por António S. Rosa de Carvalho
António Costa escolheu o quinto aniversário da sua vitória autárquica para anunciar que, embora mantenha a sua candidatura nas autárquicas de Lisboa para um novo mandato, está interessado num cargo de chefia no seu partido, e, assim, na continuação da sua carreira política de plataforma em plataforma, utilizando trampolins e acrobacias.

Será portanto difícil encontrar uma melhor ilustração de que a sua mente "voa" para outros objectivos e não está concentrada e dedicada exclusivamente a Lisboa. Num momento em que os cidadãos sentem uma verdadeira repulsa e demonstram um profundo cepticismo pelas manobras do jogo político, pelas teias insondáveis de influências e nomeações, determinadas já não apenas pelos clubes políticos, mas por organizações secretas ou não, omnipresentes e transversais à política, nunca a autenticidade e a genuína motivação e dedicação foram tão fortemente e ansiosamente desejadas. Assim, é isso que se deseja de um autarca: uma total e exclusiva dedicação e paixão pela cidade que representa.

Todos aqueles que participam activamente no processo de cidadania têm razões para este cepticismo. Analisando o processo de eleição de José Sá Fernandes e de Helena Roseta, vindos de uma originalmente prometida independência e representação da causa da cidadania, teremos de concluir que a única forma de voltarem a participar nas eleições será através da "fórmula" de perfilamento e definição política inspirada por Prince, o famoso artista da música pop.

Assim, a "fórmula" de Prince, "O artista conhecido anteriormente como Prince", será a única possível de perfilamento e apresentação para estes dois "artistas" politiqueiros, José Sá Fernandes e Helena Roseta. Ambos conhecidos formalmente como paladinos da independência e cidadania, mas agora "transformados" por sua opção consciente e neutralizados por António Costa.

Também, as graves, destruidoras e alienantes consequências para o património arquitectónico do trabalho desenvolvido por Manuel Salgado, na sua pseudo-reabilitação urbana, são visíveis na Baixa pombalina e nas avenidas. Mas o vereador do Urbanismo tem sido exímio na sistemática perseverança de como tem "minado" o terreno legislativo. Utilizando-se do argumento de uma indiscutível necessidade de reforma, desburocratização e aceleração dos processos de licenciamento, conseguiu uma sintonia e ponte permanentes, uma espécie de "via verde" para acordo dos "pareceres" na área do património, com equipa permanente à sua disposição dentro do próprio corpo institucional do património.

Isto, juntamente com uma sintonia perfeita com o nebuloso e indefinido projecto subjectivo e pessoal da nova Direcção-Geral do Património, representado por Elísio Summavielle, garante-lhe "carta branca" para a destruição sistemática do património arquitectónico lisboeta, na Baixa e nas avenidas.

Perante as críticas e solicitações exteriores, António Costa tem-se fechado no seu "castelo", inexpugável e insensível aos frequentes pedidos de esclarecimento, tanto dos cidadãos activos como da comunicação social, interpretando o espaço adquirido pela sua vitória eleitoral como exclusivamente "seu". Brevemente, o "Lord-Mayor" terá de se aventurar no exterior, nas "feiras e aldeias" exteriores ao castelo, a fim de garantir de novo, os votos, indispensáveis para manter o seu "domínio".

Resta assim à verdadeira cidadania, de livre acesso e abertas a todos cidadãos verdadeiramente crentes na Cívitas e Civilitas, uma defesa activa do património e da qualidade de vida em Lisboa. E não é demais voltar a afirmar o princípio: A cidadania não vai a votos! A cidadania exerce-se!

Historiador de Arquitectura

Lisboa e o apelo do Presidente. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho in Público 17/06/2012.

Opinião

Lisboa e o apelo do Presidente

Por António Sérgio Rosa de Carvalho
Lisboa, Jerónimos, entrega dos prémios Europa Nostra na presença do Presidente da República e princípes de Espanha. Momento institucional digno e conseguido. Momento institucional em tensão com uma realidade ameaçadora do património. As aparências iludem, numa diferença abismal entre aquilo que parece e aquilo que é.

Comecemos pelo paradigmático caso Foz do Tua. Depois de um relatório dos peritos do Icomos, o Governo, que segundo parece já teria a intenção de construir a barragem quando apresentou a Candidatura a Património Mundial, decidiu, com a EDP, avançar com a barragem. Num jogo arriscado para o prestígio internacional de Portugal, resolveram "tirar um coelho da cartola", iludindo num truque impossível uma intervenção que terá profundas consequências na região e que poderá levar à perda do seu estatuto prestigiante.

Entretanto, depois de o secretário de Estado da Cultura ter afirmado que a perda do estatuto seria impensável, vem a ministra informar que seria impossível parar as obras, pois os custos seriam incomportáveis. Teremos que aguardar o desfecho, mas quem será responsável se o Douro Vinhateiro perder o seu estatuto de Património Mundial? Vem isto a propósito do apelo do Presidente da República à participação cívica. Mas não é fácil, acima de tudo porque nunca são dadas respostas.

A ilustração ideal desta tensão entra aparências e realidades - entre "conteúdos" e fachadas - é Lisboa. Ou seja o triunfo sistemático e progressivo do fachadismo, camuflado na chamada "reabilitação urbana".

E o mais grave é que este processo de destruição já se estende à Baixa Pombalina, que a CML paradoxalmente continua a afirmar pretender candidatar a Património Mundial. As características fundamentais que determinam o valor histórico do estilo pombalino - a "gaiola", estrutura-esqueleto flexível e anti-sísmica - e todos os elementos produzidos dos seus interiores estão ameaçados por intervenções "betonizadas" dirigidas à inserção forçada de um conceito contemporâneo de viver e estar. É possível um equilíbrio integrado entre necessidades actuais e preservação de interiores históricos, mas nunca numa filosofia de intervenção onde o tema principal é determinado pelo comando à distância de portas de garagens, sobre o aparente prestígio de fachadas "históricas", transformadas num absurdo pela demolição de todo o seu conteúdo.

Num país onde não se desenvolveu uma cultura de restauro, onde o ensino da história da arquitectura é exercido por arquitectos prisioneiros da síndroma "criadora", que intervêm no património a seu bel-prazer, deixando marcas-fétiche pessoais, assiste-se agora a uma desconstrução da defesa institucional do património.

Todas estas perguntas, formuladas na Net por uma sociedade civil em franco progresso em direcção a uma democracia participativa, são sempre deixadas sem resposta.

Este mesmo jornal tem sido confrontado com esta realidade autista e indiferente perante os eleitores-leitores. Culminando uma série de experiências negativas, o PÚBLICO noticiou esta semana que a CML deixou de anunciar as suas propostas a apresentar em reunião de Câmara e recusa-se a disponibilizá-las. Esta progressiva ausência de transparência ilustra também um acto premeditado contrário ao incentivo da participação cívica a que o Presidente apelou, ilustrando assim tragicamente a diferença abismal entre o parecer e o ser.

Historiador de Arquitectura

Será necessária uma troika para a cultura e património?A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho in Público 26/02/2012.

Opinião

Será necessária uma troika para a cultura e património?

Por António Sérgio Rosa de Carvalho
O universo do património cultural foi perturbado por uma sucessão de graves acontecimentos, que infelizmente, vieram ilustrar sérias deficiências de programa, visão estratégica e gestão.
Em primeiro lugar, a decisão arbitrária de construir um novo Museu dos Coches, optando-se por um grande nome da arquitectura, que produziu um edifício caríssimo já em plena crise económica, desnecessário e inadequado para a sua função. Toda a polémica criada à volta deste projecto, em cadeia com uma possível deslocação do Museu de Arqueologia, levou posteriormente a possíveis represálias sobre o seu director, Luís Raposo, hipótese que, com ou sem fundamento, desencadeou um profundo mal-estar, desconfiança e medo no mundo dos museus.
Em segundo lugar, o então secretário de Estado da Cultura, Summavielle, determinou a retirada da lista de 946 monumentos em vias de classificação assumindo assim, não-oficialmente, a incapacidade do Estado de proteger o património nacional. Seguidamente, um inevitável relatório-ultimato do ICOMOS veio avisar para uma possível perda de estatuto como património mundial do Douro vinhateiro, colocando assim o Governo perante uma escolha. Aqui, entra pela primeira vez a EDP, que opta novamente pela receita de um arquitecto-vedeta, qual mago que num só gesto e momento tem que substituir todo um processo de gestão cuidada, adequada e a longo prazo, de toda uma região.

Como única notícia positiva, temos a nomeação de Guimarães como Capital Europeia da Cultura. Positiva, mas não surpreendente, pois em Guimarães optou-se há muitos anos por um abrangente e verdadeiro processo de restauro capaz de garantir a autenticidade e a identidade do seu centro histórico, mantendo as suas populações. A vedeta é a cidade e a magia foi conseguida concretamente num longo e coerente processo de execução, recuperação, conservação e restauro.

Poderia Lisboa representar Portugal a este nível no presente? A resposta seria negativa, não apenas no presente, mas em função do que está a ser desenvolvido no presente e preparado em direcção ao futuro (PDM, PPBC), seria categoricamente um grande Não!

Trata-se de uma questão de perspectiva mental e interpretação cultural dos desafios, urgências e prioridades estratégicas de uma cidade e das fórmulas e conceitos a aplicar para lhes dar resposta. Tomemos como exemplo o último caso de violação do PDM por parte do vice-presidente da CML e vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, para forçar - impor - a aprovação do pedido de informação prévia da Fundação EDP para construir um centro cultural à beira-rio, em Belém. Este caso, juntamente com o da construção da sede da EDP na Avenida 24 de Julho que também pode ser considerado "ilegal" na sua aprovação sem consenso (a "ilegalidade" da falta do contrato de urbanização, que "visa apressar a intervenção da EDP" sem acautelar interesses municipais) ilustram uma grande e imprudente "pressa", e uma sofreguidão de decisão...

Para a própria imagem da EDP e do respectivo António Mexia, este processo não constitui um bom contributo e só confirma a tal atitude mental de "torre de marfim"; de isolamento irreal e dicotomia mental com as realidades da cidade e das suas verdadeiras necessidades...

Isto, quando o Largo de S. Paulo, arquétipo do pombalino, continua a apodrecer, e o Mercado da Ribeira a aguardar decisões (além do resto da Baixa pombalina). Tanto Manuel Salgado como António Mexia revelaram-se como mentes prisioneiras de perspectivas megalómanas, irreais e insensíveis ao verdadeiro estado de degradação e decadência da cidade e ainda agarradas à síndrome do grande gesto, de Babel e de arquitectos-magos.
Historiador de Arquitectura

Chelas: o que era novo e moderno ignorou as pessoas


Chelas: o que era novo e moderno ignorou as pessoas

Por Carlos Filipe in Público 4/12/2011
Com a edificação do Hospital Oriental de Lisboa em Chelas quer-se promover a coesão social no território, que foi um falhanço urbanístico. Pôr gente nas ruas que foram feitas para carros pode ser tarefa impossível
Diz-se que a culpa é da Carta de Atenas e que dos seus princípios gerais enferma ainda o urbanismo de Chelas, um território feito de ilhas, onde as relações de vizinhança são difíceis. Quase 50 anos depois do plano que o definiu, um outro está em elaboração, com o qual se pretende dar-lhe coesão e diversidade funcional. Mas será que a construção de um grande hospital ajudará a corrigir tantos erros grosseiros na concepção de cidade?

Especialistas de arquitectura e urbanismo ouvidos pelo PÚBLICO apontam os erros e o futuro da missão: se para um é impossível, para outro ainda há remédio, mas a cura será longa.

A Carta de Atenas foi um documento de compromisso, redigido em 1933 por arquitectos e urbanistas internacionais, entre os quais se destaca Le Corbusier. Surgiu após a conclusão do Congresso de Arquitectos e Técnicos de Monumentos Históricos, realizado na capital grega, dois anos antes. Aqueles princípios serviram de guia urbanístico e como inspiração para a arquitectura contemporânea - seria suprimido o conhecido traçado das cidades, então com ruas e quadras, para se implantar um zoneamento selectivo, uma divisão de áreas funcionais: habitação, trabalho, circulação, lazer.

António Sérgio Rosa de Carvalho, historiador de arquitectura, enfatiza no que diz ser o fulcro da questão: "Abdica-se de dois elementos fundamentais para a constituição de uma cidade: a rua-corredor, elemento integrador e das vivências do quotidiano (residencial/comercial/contactar/movimentar/trabalhar) e a praça-fórum, mais dirigida à vivência institucionalizada (mercado/reuniões/edifícios públicos/monumentos."

Pensada e não acabadaA urbanização de Chelas teve as suas origens no início dos anos de 1960 após estudos do então chamado Gabinete Técnico de Habitação da Câmara de Lisboa. Estimava-se então que estivesse concluída em 2000. Foi pensada para acolher operários e trabalhadores da função pública, como aconteceu com Alvalade e Olivais, mas o plano não correu bem, fosse pela dificuldade de aquisição ou expropriação de terrenos, fosse pela agitação social e o fenómeno das ocupações em 1975. E ainda eclodiu a necessidade de alojar cidadãos oriundos das ex-colónias, e outros pelo início da erradicação dos bairros de barracas. Curraleira, em 2001, foi o último exemplo. A zona polarizou-se em bairros-ilha, sendo os principais Amendoeiras/Olival, Armador, Condado, Flamenga e Lóios.

Com o advento da Expo-98, o território fragmentou-se ainda mais com a multiplicação das vias rápidas de acesso ao Parque das Nações. Cortaram-se as ligações e os habitantes ficaram mais afastados das zonas de comércio e serviços. O cenário verde e idílico que a orografia e o sistema de vales propiciava ficou comprometido. "Criaram-se grandes distâncias a percorrer, com as conhecidas dependências de transporte individual e colectivo, com consequências para a qualidade de vida e ambiental", nota o historiador.

António Baptista Coelho, do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), assume-se um "passeante inveterado que em Chelas não encontra o seu sítio - provavelmente poucas pessoas o encontrarão." "É preciso ter a ideia de que ali se tentou fazer novo e fazer melhor, mas talvez já tivesse havido tempo de se perceber que não resultou, mas que é um sítio fantástico, com exposição solar e vistas privilegiadas", salienta o arquitecto, que lamenta tal exercício urbanístico, quando comparado com outro, anterior no tempo: "Uma das malhas urbanas mais humanizadas e naturalizadas de Lisboa e de Portugal é a de Olivais-Norte/Encarnação, onde há um percurso agradável no verde, acompanhado por vistas de janelas, uma zona pedonal que não inibe uma funcionalidade adequada dos veículos e que se integra na perfeição com actividades comerciais e cívicas, bem servido de transportes, e tudo bem desenhado, o que é fundamental."

O também editor da revista/blogue Infohabitar acrescenta: "Foram edifícios e espaços públicos feitos nos anos 60, mas com a sabedoria da relação com o movimento aparente do Sol. O que ali aconteceu foi ter-se feito cidade com habitação. Ainda hoje, em Chelas, estas condições não existem, pois foi feita muito para o automóvel, quando hoje as cidades estão a ser recuperadas para a pessoa, para o peão."

Para Rosa de Carvalho, "a causa do desastre de Chelas, como cidade-dormitório, radica na raiz da sua concepção errada, constituindo um laboratório de experiências sociais onde as principais vítimas são as pessoas." O historiador vai mais longe: "Este tipo de falhanços urbanísticos já começaram a ser demolidos pela Europa."

Cidade em AlvaladeDos Olivais também aponta ter sido um bom exemplo, mas de Alvalade [do arquitecto Faria da Costa] Rosa de Carvalho afiança ter sido tão bom ou melhor, destacando a Av. da Igreja, "uma verdadeira cidade": "Tem qualidades multifuncionais, humanas, resultantes de uma escala, composição urbana (boa arquitectura em tipologia e materiais/máximo de quatro andares)".

Por que razão falhou Chelas? "Talvez porque na altura haveria uma ideia de modernidade, que tinha que ver com aspectos até políticos, talvez porque não se conseguiu ter adequado discernimento relativamente a conjuntos ali ao lado bem conseguidos em termos habitacionais e urbanos - Alvalade, ainda um exemplo de escala e humanização, Olivais Norte, onde se fizeram pela primeira vez em Portugal, os edifícios no meio do verde e dos jardins, e certas zonas de Olivais Sul", explica o investigador do LNEC.

"O zonamento monofuncional de Chelas, de arquitectura baseada em modelos (escala-tipologias-materiais) errados, exercendo um efeito perverso no campo sociológico, foi ainda agravado pela falta de contacto com o exterior até aos anos 90, transformando as suas cinco ilhas isoladas num baldio", esclarece, por seu lado, o historiador.

Mas o plano com o hospital pode ser remédio? "A única tentativa que pode ser feita (missão quase impossível) é tratar cada uma das zonas independentemente, e desenvolver em cada uma delas, uma aproximação a uma pequena cidade - ruas, comércio, praças, centros cívicos, pontos de referência e identidade", diz Rosa de Carvalho.

António Baptista Coelho adverte que há em Chelas "excelentes peças de arquitectura habitacional". E cita o arquitecto Manuel Taínha, na revista Arquitectura e Vida, de Março 2000:" É mais do que tempo para regenerar, reabilitar, reconverter, preencher e requalificar Chelas, e, quem sabe, o tempo que passou nos permita fazer ali uma intervenção tão sensível e adequada, como estruturalmente reabilitadora da realidade que ali se vive."

A integração de equipamentos hospitalares em Chelas, admite, só "poderá ajudar a "desenclavar" o bairro (que hoje ainda o não é), mas é evidente que o que se foi fazendo mal ao longo de decénios não será remediado em meia dúzia de anos". No entanto, conclui, "é possível privilegiar e é vital calendarizar medidas e opções que atribuam a Chelas um sentido de vivência urbana e humana".

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Uma questão de imagem, prestígio e coerência, para um banco com responsabilidades. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho / 25/11/2011 in Público.




Uma questão de imagem, prestígio e coerência, para um banco com responsabilidades
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


A banca vive tempos difíceis. À crise de capital e liquidez junta-se a, cada vez mais difícil de gerir, crise de prestígio e imagem.
As elites viram o Inside Job, ou mesmo o All Watched over by Machines of Loving Grace, de Adam Curtis (BBC), onde não apenas as graves consequências da New Economy para o sistema e pessoas são analisadas, mas sobretudo, as suas origens.
As pessoas, essas estão zangadas e ressentidas. Numa indignação difícil de definir e colocar, mas não menos importante por isso, sentem que foram vitimizadas e manipuladas.
O tão ridicularizado por ausência de objectivos e definições movimento Internacional Occupy, no entanto, cresce... e o seu impacto, como sintoma, não é de menosprezar. E o que é que isto tem a ver especificamente e objectivamente com o BES?
Uma das importantes contribuições para a consolidação da imagem pública do universo BES tem sido, sem dúvida, o importante Museu de Artes Decorativas e a sua permanente actividade de consciencialização e defesa do valor patrimonial e histórico dos interiores. Ora, este museu, ilustrativo da importância histórica desses mesmos interiores, está instalado num magnífico edifício sede da Fundação Ricardo Espirito Santo, onde também estão instaladas as oficinas de restauro da mesma fundação dedicadas às Artes Decorativas.
A Fundação Ricardo Espírito Santo complementa a sua importante actividade, que se estende para lá das fronteiras, através do ensino académico da História das Artes Decorativas e Interiores. Ora, perante o desafio que Lisboa conhece no que respeita à preservação da sua imagem histórica e patrimonial, condição sine qua non para a salvaguarda do seu carácter, identidade, brio e prestígio, temos assistido a intervenções promovidas pelo braço imobiliário do universo BES que constituem um paradoxo perante as preocupações e actividades descritas anteriormente.
Assim, nas avenidas, os atentados ao património arquitectónico sucedem-se com propostas contínuas e sucessivas de demolição integral de interiores, ou mesmo de demolição total de edifícios. O casus Rosa Araújo, através de um conjunto de vários edifícios, tornou-se paradigmático deste tipo de intenções, com grande impacto negativo na opinião pública agravado por grandes trapalhadas no processo de licenciamento, o que também tem afectado a imagem pública do vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa, Manuel Salgado, o qual foi precisamente eleito para representar o rigor e a defesa da cidade e exercer pedagogia perante os promotores.
Mas, infelizmente, para todos nós e para o BES, estes casos e tendências já conhecem vários exemplos na cidade de Lisboa.
Talvez o mais significativo e ilustrativo tenha sido o da Avenida Duque de Loulé, 35.
Trata-se da demolição integral de um palacete completamente intacto nas suas características de séc. XIX tardio, e altamente representativo e perfeitamente ilustrativo das avenidas concebidas pela visão urbanística de Ressano Garcia. Ora, misteriosamente, este palacete não fazia parte da Carta do Património de Lisboa e foi possível demoli-lo integralmente para colocar no seu lugar um edifício medíocre e de duvidoso sucesso comercial.
E isto, enquanto a câmara comemora oficialmente o Centenário de Ressano Garcia. Precisamente por Lisboa ser procurada pelo turismo não podemos esquecer, neste momento em que a nossa imagem internacional está como nunca antes, devido à crise, sujeita a um olhar crítico e a um escrutínio implacável, que muitos que nos visitam vêm de uma Europa com centros históricos impecáveis e exemplares no seu grau de conservação e restauro.
O apelo ao BES é, portanto, que pare e medite... se não seria altamente vantajoso integrar os tão louváveis valores e princípios que defende na actividade da sua ilustre fundação na sua actividade imobiliária.
Isso seria um inteligente investimento e uma séria recapitalização num valor insuperável e insubstituível: a imagem e o prestígio.
Historiador de Arquitectura

sábado, 11 de agosto de 2012

Loja da antiga Pompadour de novo em obras. 9/6/2011 in Público.




Loja da antiga Pompadour de novo em obras
O espaço da antiga Pompadour, no Chiado, em Lisboa, ultimamente ocupado pela loja de pronto-a-vestir Vitrine, está novamente em obras. Desta vez, para dar lugar a uma loja de cristais Swarovski, com um novo conceito de decoração para a marca internacional, o crystal forest.

O edifício dos números 28 e 30 da Rua Garrett, da autoria do arquitecto modernista Raul Lino (1879-1974), é de "alguma nobreza em termos exteriores", diz Carlos Récio, director da agência de retail da CB Richard Ellis (CBRE), a consultora imobiliária responsável pela colocação da marca no Chiado, mas a ideia é fazer alterações, pelo menos no interior, a julgar pelo pedido de licenciamento para obras de alteração.
O PÚBLICO tentou, sem sucesso, contactar o responsável pela Swarovski na Península Ibérica para o questionar sobre que obras estarão a ser feitas. As alterações no interior da loja limitar-se-ão ao pavimento e à colocação de um balcão, ao fundo.
Depois do encerramento da Pompadour, um projecto de 1924 do arquitecto Raul Lino, já algumas alterações se fizeram ao espaço. Em 2005, recorda o historiador de arquitectura António Sérgio Rosa de Carvalho no blogue Cidadania Lx, "o seu mobiliário original já tinha desaparecido". Nessa altura, recorda, ainda foi possível "salvar a screen-fachada do fundo da loja, elemento mais importante e determinante da sua arquitectura de interiores, juntamente com os candeeiros".
O projecto para as obras de alteração deu entrada na câmara precisamente há um mês e está ainda em fase de apreciação, e, segundo Carlos Récio, a loja abrirá ainda em Junho. O acordo entre a Swarovski, o proprietário do edifício e o pronto-a-vestir ficou fechado em Dezembro e o espaço já foi entregue em Fevereiro passado. A Vitrine da Rua Garrett vai agora mudar-se para o centro comercial Odivelas Parque. Cláudia Sobral

Charcutaria centenária Nova Açoreana, em Lisboa, abre hoje portas pela última vez. in Público 14/05/2011.





Charcutaria centenária Nova Açoreana, em Lisboa, abre hoje portas pela última vez
Por Cláudia Sobral in Público
 Cento e vinte anos de história não chegam para manter aberta uma das mercearias com mais fama da Baixa. No edifício poderá surgir um hotel

A mesma história tem sido contada vezes sem conta. Mudam apenas os nomes. Desta vez é a charcutaria Nova Açoreana, na Rua da Prata, que fecha - hoje é o último dia em que está de portas abertas para a Baixa. Nem a fama nem os 120 anos de história que já conta a salvaram de ter um destino igual ao de tantas outras casas de comércio tradicional.
As instalações deverão, segundo uma das sócias da empresa, Cristina Maneira, ser transformadas num hotel, que ocupará todo o edifício. A charcutaria fecha, mas "com um sentimento de missão cumprida", garante. "Estão a dar uma conotação de um horror a isto, mas é uma coisa normal. Nem eles [os proprietários, com quem chegaram a um acordo para deixar o espaço] são os vilões nem nós somos os coitadinhos."
Para o presidente da Junta de Freguesia de São Nicolau, António Manuel, não é bem assim. "É com alguma pena que vemos desaparecer estabelecimentos como a Açoreana ou a Loja das Meias [que fechou em 2007], que estão ligados à memória da Baixa e fazem parte da sua identidade", diz. "A Baixa fica mais pobre. Mas não podemos ver nisto algo irreversível. A renovação da Baixa vai, com certeza, fazer com que também se venha a afirmar de outra forma."
Reabrir num novo espaço é, admite Cristina Maneira, uma hipótese que se coloca, mas não por enquanto.
Na opinião do historiador de Arquitectura António Sérgio Rosa de Carvalho, que vive perto da Nova Açoreana, o encerramento de mais um "estabelecimento tradicional com características importantes e raríssimas" é algo de desastroso: "Isto depois nunca mais se consegue agarrar. É irreversível."
"Os resíduos de identidade, o brio ligado ao sentimento de tradição e continuidade estão a desaparecer pela crise e por uma espécie de desânimo, uma vontade de desistir, de largar", explica. E o que está a conduzir ao fecho de cada vez mais casas destas - recorda outras como o último correeiro da Rua dos Correeiros, que dará lugar a um hotel - é, acredita, a ausência de um plano de urbanismo comercial em Lisboa.
"Até que ponto é que a câmara vai continuar a olhar para o lado e a fingir que este problema não existe?", questiona. Muitas outras mercearias finas têm fechado na cidade. Uma delas foi a charcutaria Brasília, na Rua Alexandre Herculano, que encerrou no final de 2010.
Em 2009, foi aprovado um projecto de obras de conservação no prédio da Nova Açoreana, que não previam a sua transformação em hotel. O PÚBLICO tentou perceber junto da câmara se, depois disso, entrou outro projecto que preveja a criação de um hotel, mas não obteve qualquer resposta. Tentou também, sem sucesso, contactar o dono do edifício.

Basta! A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 30/12/2010 in Público.

 



Basta!
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


Enquanto a destruição sistemática e organizada do que resta das Avenidas continua em perfeita sintonia com uma classe de arquitectos, indiferente ao seu Património insubstituível, e determinada a assumir o estatuto de arquitectos do regime, Manuel Salgado, mais transformado em "porteiro" dos interesses estabelecidos, em lugar de defensor e garantia de salvaguarda dos interesses da cidade, assina um acordo inaceitável a priori com um promotor, tornando-se assim cúmplice de chantagem vergonhosa sobre os eleitos.
O resultado ultrapassou todas as marcas do eticamente escandaloso e do ilegal, tornando este caso de licenciamento definitivo do Projecto do Largo do Rato num símbolo manipulativo de abuso de poder.
Resta agora à sociedade civil transformá-lo num símbolo definitivo de resistência "musculada" e tenaz, que fique para a História como um sinal de maturidade da democracia participativa contra a tirania das manobras maquiavélicas e manipulativas de uma certa forma de exercer a democracia representativa.
Que se aproveite também para meditar sobre o papel afirmativo (em ruptura irreversível) e destruidor de muitos arquitectos com relação ao património, atitude bem ilustrada nas Avenidas e simbolizada no projecto da sua Ordem, nos antigos Banhos de S. Paulo.
Desta história, no Largo do Rato, ninguém sai incólume. Como é possível ouvir alguns representantes da vontade popular afirmar que esta decisão "foi a forma mais simples de fazer com que a cidade possa funcionar", e que o papel dos eleitos "não é achar [o projecto] bom ou mau, é verificar se está em conformidade com a lei" (vereadora Livia Tirone ), mas afirmando também que o projecto "é completamente dissonante" e lamentando que ele tenha sido aprovado "sem debate público"?
Este paradoxo ilustrativo do absurdo, ou de algo bem pior, não pode ser comparado ao protesto indignado de Ruben de Carvalho ou Helena Roseta sobre as pressões inaceitáveis de um processo jurídico desenvolvido com a cumplicidade do vereador do Urbanismo, no momento em que este assina um compromisso de acordo que antecede e influencia a decisão.
De resto, todos os vereadores do Urbanismo anteriores são responsáveis e tomaram decisões que permitiram ou determinaram este processo de destruição sistemática da Lisboa Romântica. Um dos argumentos continuamente esgrimidos, e agora reutilizado, numa manobra surpreendente de aproveitamento da "terra de ninguém" criada por várias "ausências" forçadas ou voluntárias, foi o da sua anterior aprovação em 2005.
Toda esta situação leva-nos à pergunta fundamental: Qual é a formação técnica e académica deste eleitos? Qual é a garantia oferecida pelas suas pessoas para decidir sobre o futuro da cidade de Lisboa?
Resta agora aos cidadãos uma luta definitiva e decisiva, capaz de contribuir para o seu processo de autoconsciência e afirmação da sua maturidade democrática e de fazer sentir aos políticos o que sentimos perante este caso vergonhoso. Basta!
Historiador de arquitectura

"Que se lixe o contexto" A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho . 20/09/2010 in Público.




 "Que se lixe o contexto" 
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


"Fuck the context" ["Que se lixe o contexto"]. Esta radical e provocadora afirmação foi feita, em 1995, pelo arquitecto Rem Koolhaas e ilustra não só a sua iconoclástica apologia de uma auto-suficiente "grandeza" (bigness - não confundir com grandiosidade, conceito qualitativo) que se sobrepõe a todos os valores, como contexto, discurso artístico, identidade e até à necessidade da própria arquitectura.
O objecto arquitectónico a partir de uma certa escala passa a um ponto sublime de auto-suficiência expressiva e afirma-se sem necessitar de diálogo com a envolvente. Pelo contrário, este desprezo pelo contexto é a condição imperativa para o seu carácter sublime. Este conceito foi desenvolvido a partir de Delirious New York (originalmente publicado em 1978) com uma retórica sedutora e eficaz, não tivesse Koolhaas sido, antes, jornalista e scriptwriter cinematográfico. Ora, a única palavra para descrever esta atitude é arrogância. E quando ela é aplicada numa arte e actividade que transporta em si uma tamanha influência e responsabilidade na qualidade de vida quotidiana e na sua relação com a paisagem e a Natureza, como a arquitectura, as consequências, essas sim, são enormes.
Passemos agora para o projecto Estoril Residence, de Gonçalo Byrne, no local do antigo Estoril Sol. Não pretendo aqui desenvolver apreciações sobre a demolição do Estoril Sol (já o fiz no PÚBLICO - Sol no Estoril, Delírios em Lisboa) ou considerações estéticas sobre a sua arquitectura (já o tratei na perspectiva do Genius Loci no PÚBLICO, Eclipse Total no Estoril, 19/8/2007), mas sim sobre a "conveniência" deste projecto para uma vila e uma região costeira, que se pretende afirmar perante o turismo internacional de qualidade, como vila histórica consolidada e inserida numa paisagem de beleza natural autêntica e preservada.
Cascais tem procurado afirmar o prestígio do seu carácter histórico patrimonial num pretendido equilíbrio dialéctico entre as características pitorescas de uma vila piscatória e a erudição aristocrática das villas e palacetes vindas do período D. Carlos. Isto, também numa continuação contrastada de uma pretendida sofisticação mais cosmopolita representada pelo Estoril e pelo Monte Estoril, imediatamente adjacente. Ora, não precisamos de relembrar os recentes acontecimentos do Tamariz, para sentir a confirmação de que estes locais há muito que se transformaram em zonas de expansão e ocupação da verdadeira megacidade-dormitório periférica em que esta costa se transformou. Processo este iniciado, muito antes, com as primeiras construções J. Pimenta, que marcaram também o início da ausência de planeamento estratégico e do "eclipse" da Costa do Sol.
Nesta perspectiva, é difícil compreender a aprovação deste projecto residence pelo autarca de Cascais, na oportunidade única que constituiu a demolição do Estoril Sol, para se desenvolver um outro projecto com uma boa contextualização histórica nas pretendidas características de Cascais e com uma inserção corrigida e correcta na paisagem. Isto, depois de um "delírio" prévio e irresponsável, com a ideia de uma torre na marina e depois da polémica inserção forçada do centro comercial na escala "Estado Novo", da entrada da vila.
Que dizer (escultura habitável?) sobre um objecto arquitectónico "autista", hermético, que pretende existir em auto-suficiência egocêntrica, num isolamento arrogante que despreza a paisagem, violentando-a... um edifício completamente dependente da climatização artificial, que pretende servir de plataforma privilegiada para usufruir de um horizonte marítimo, mas onde não se pode abrir uma única janela?
Nesse aspecto, a profecia perversa e a promessa egoísta e sociologicamente ridícula do filme de promoção cumpriu-se... os únicos que vão ter o privilégio de serem poupados à violência deste atentado à paisagem e ao horizonte... vão ser os seus habitantes. Historiador de Arquitectura

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Plano não pode escolher as lojas da Baixa de Lisboa. 13/06/2010 in Público.



Comércio

Plano não pode escolher as lojas da Baixa de Lisboa
Podemos definir regras de recuperação e preservação arquitectónica, apoiar actividades culturais ou incentivar o mercado de arrendamento. Mas nem o ambicioso Plano de Pormenor da Baixa Pombalina consegue fazer um ordenamento comercial da zona. Por Luís Francisco in Público
O Plano de Pormenor da Baixa Pombalina está em fase de discussão pública e, apesar de a propalada candidatura a património mundial marcar passo, a recuperação e requalificação da área mais nobre da capital é um projecto de enorme amplitude: custará à volta de 700 milhões de euros. Tratando-se de uma zona histórica, naturalmente há pressupostos arquitectónicos a ter em conta. Mas a Baixa de Lisboa é, também, uma enorme zona turística e comercial. A esse nível, o que queremos fazer dela?

A Câmara de Lisboa elaborou uma lista de estabelecimentos (ver caixa) a proteger, na sua arquitectura exterior e interior (nalguns casos). Mas não há em Portugal regulamentos que permitam definir o tipo de comércio que se instala em cada artéria. Fazer o ordenamento comercial de uma zona como a Baixa, agora que se pretende dar-lhe nova vida (nomeadamente combatendo a desertificação à noite), deveria ser uma prioridade?

Sim, responde o historiador António Sérgio Rosa de Carvalho. "Constata-se a invasão de um certo tipo de comércio que se estendeu do Martim Moniz e que bloqueia agora qualquer tipo de ordenamento comercial. Se falamos de eixos prioritários [para revitalizar a Baixa], temos de saber o que queremos ter lá em termos de comércio."

É que, apesar de existirem na zona abrangida pelo plano de pormenor "cerca de 1600 espaços comerciais", como salienta Vasco de Melo, presidente da União das Associações de Comércio e Serviços, e, portanto, "haver espaço para tudo", ter uma estratégia poderia fazer a diferença. No entanto, conforme nota Jorge Catarino Tavares, director municipal de Conservação e Reabilitação Urbana, não existe uma interdição à mudança de actividade. "As condicionantes são sempre no sentido de se salvaguardar o património arquitectónico. Ou seja são admitidas mudanças de ramo de actividade mas, consoante cada caso, existem elementos arquitectónicos, decorativos ou estruturais que terão de ser preservados."

Uma volta pelas ruas e praças criadas pela vontade política do Marquês de Pombal após o terramoto de 1755 mostra uma clara proliferação de estabelecimentos comerciais que não são propriamente típicos de zonas urbanas nobres. Sim, estamos em pleno Mundial de futebol, mas a profusão de camisolas de Cristiano Ronaldo ou cachecóis da selecção à porta de muitas lojas não é um contágio vindo da África do Sul. Na verdade, durante o resto do ano, o jogador está na mesma em exposição, só que o seu nome aparece na camisola branca do Real Madrid. Os espaços comerciais que se dedicam à venda de recuerdos turísticos e ícones da cultura popular proliferam na Baixa.

Deviam estar lá? Ou, pelo menos, na mesma quantidade? Vasco de Melo diz que não, mais não seja porque "estas lojas têm métodos de funcionamento que andam "fora-da-lei"", pelos horários de trabalho, pela qualificação do pessoal ou pela lógica "nómada" da sua actividade...

Mas, corporativismos à parte, há uma questão de imagem que também conta, quando se fala do bilhete postal de uma cidade que aposta cada vez mais na sua dimensão de destino turístico. "Devia haver um mapa das actividades nos eixos prioritários. Mas será possível?", interroga-se Rosa de Carvalho. Em todo o caso, há que ultrapassar o desconforto da generalização do termo "loja dos chineses"... "Isto não tem nada a ver com questões racistas. Há estabelecimentos orientais belíssimos", diz o historiador. E que só ficam bem numa cidade que foi, durante um período da história da Humanidade, o epicentro da globalização.

Jorge Catarino Tavares admite que algumas actividades, por via de condicionantes de intervenção no edificado, "tenham dificuldades em se instalar." Mas opina: "Penso que qualquer tipo de comércio, desde que a sua instalação obedeça aos princípios de qualidade e de rigor no seu projecto, terá lugar na Baixa."

Mobilidade e habitação

O plano da Baixa vai muito para além da questão comercial. Mas muitos dos pontos que aborda estão interligados. Como a mobilidade, por exemplo. "Há que ter em conta a questão do transporte individual. Os grandes centros comerciais têm bons transportes, mas as pessoas vão de automóvel. Este é um dado adquirido, temos de lidar com ele", sentencia Vasco de Melo.

Do outro lado da barricada, parece estar António Rosa de Carvalho: "Continuamos a ter do carro uma cultura de "vaca sagrada"", desabafa, criticando a ideia de ser possível construir garagens na Baixa, algo que considera "incompatível com as características dos edifícios" da zona, nomeadamente a famosa gaiola pombalina, a construção anti-sísmica assente em estacaria que concede a esta zona de Lisboa muita da sua identidade única. Mas o historiador está mais preocupado com o automóvel enquanto condição incontornável para se morar na Baixa. Para quem vem às compras, aceita a existência de parques ou, até, de silos.

Porque é um local de passagem que se quer bonito e funcional. Mas é também um coração desertificado, um local onde muitos estabelecimentos fecham a porta ao fim da tarde, altura em que as ruas ficam vazias. Ninguém mora na Baixa. E uma das ideias do plano de pormenor é também criar condições para que haja uma população residente nesta zona nobre da cidade. E isso também pode influenciar o tipo de comércio que ali prospera.

Apoiar a iniciativa privada

Não há regras, mas há opiniões. Quando questionado sobre o tipo de comércio que deve existir na Baixa, Vasco de Melo evita dar uma opinião taxativa. Mas deixa ideias: "As ourivesarias e vestuário estão muito bem representadas. Parece-me uma boa ideia a que foi avançada pelo vereador Fontão de Carvalho (PCP), no sentido de concentrar os pequenos artesãos de ourivesaria, formando um cluster desta actividade. Ou apostar em espaços mais temáticos, como acontece na Rua da Conceição, onde há grande concentração de retrosarias. Proteger o que existe e assegurar a mobilidade e a segurança são as formas de garantir a viabilidade de quem investe."

E tem de ser o investimento privado a alimentar o processo. Apesar de considerar a recuperação da Baixa "um desígnio nacional", António Rosa de Carvalho também acha que são as pessoas quem tem de assumir a tarefa. À máquina pública cabe ser acessível. Porque "os regulamentos existem, resta saber com que velocidade e com que rigor serão aplicados".

Para já, eles incidem sobre a arquitectura das lojas e edifícios. Não haverá marquises; os estores exteriores têm de ser aprovados pela câmara; as portas de lagarta e grades metálicas só poderão ser montadas do lado de dentro das lojas; aparelhos de ar condicionado, cabos e condutas terão de sair das fachadas principais; estão proibidas as esplanadas fechadas; só as farmácias poderão ter anúncios electrónicos; fica interdita a instalação de painéis, mupis ou colunas e mastros de publicidade.

A Baixa como a conhecemos pode estar em vias de ser "purificada". Se conseguirá manter alguma identidade comercial, isso é difícil de prever. "Isto é um grande momento urbanístico. A questão é: estaremos à altura?", questiona Rosa de Carvalho.

A Real Praça do Comércio. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho . 4/6/2010 in Público




Opinião

A Real Praça do Comércio 
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


Pronto, finalmente reavemos a Real Praça do Comércio. Reparem que não lhe chamo "Terreiro do Paço"... e isto não acontece por acaso, mas é uma atitude consciente e premeditada... pois esta diferença de denominação ilustra precisamente o erro de perspectiva e de interpretação histórica que levou a todas as "trapalhadas" no antigo projecto, agora sensatamente corrigido.
A Real Praça do Comércio foi concebida por um primeiro-ministro "estrangeirado" que pretendia alcançar uma reforma profundíssima no plano político, social e mercantil do Reino de Portugal, aproveitando um cataclismo natural que, tendo criado uma situação de Tabula rasa no país, oferecia-lhe uma oportunidade única.
Ela foi concebida também seguindo referências eruditas e prestigiantes internacionais da place royale do séc. XVIII Iluminista, e, no caso de todo o plano de reconstrução da Baixa, ela anunciava com grandiosidade uma nova cidade, renascida das cinzas e que iria servir de décor para um novo Portugal reformado, e de contexto e habitação para uma nova burguesia mercantil e iluminada.
Assim, é perfeitamente claro que o conceito do "terreiro" pertencia a um passado pré-terramoto e a um tipo de sociedade que se pretendia reformar radicalmente numa perspectiva iluminista, embora num conceito tão típico para a época de despotismo iluminado.
Visto isto, vale a pena reflectir sobre o facto de que, mais uma vez, se o prazo foi cumprido "sem derrapagens orçamentais", se deve a um factor externo que nos pressionava e obrigava a uma clara deadline... a visita do Papa.
Sem questionar a evidente e prestigiante oportunidade mediática que nos foi oferecida com a visita do Papa, e agora que foi anunciado o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina, teremos que reconhecer que a imagem que foi oferecida ao Papa e ao mundo não foi a imagem da verdadeira decrepitude em que se encontra a Baixa de Lisboa.
Assim, as intenções e os milhões pretendidos com o anúncio do plano de salvaguarda não podem ser encarados como algo para se "ir fazendo", mas como um dos projectos mais urgentes e indispensáveis para Lisboa, capital de Portugal.
Agora, em plena e profunda crise, que tentamos rever e reanalisar os grandes projectos de obras públicas, aqui temos um grande projecto, urgente, indispensável e verdadeiramente responsável. Ele é credível e responsável, pois os benefícios e resultados estão a priori garantidos.
Trata-se do prestígio e da atractibilidade da nossa imagem exterior e dos dividendos na área do turismo cultural. Trata-se da nossa qualidade de vida no quotidiano. Trata-se da auto-estima e do estímulo que ela transporta para o nosso empreendedorismo. Trata-se de provar à nossa juventude que Portugal está à altura da responsabilidade da salvaguarda do nosso património e portanto tem futuro.
Proponho portanto que o projecto de restauro e salvaguarda da Baixa pombalina seja elevado a desígnio nacional... que seja ligado a uma dimensão capaz de transcender a própria autarquia, e os ciclos políticos inerentes, através da ligação à Presidência da República pela nomeação de um comissário.
Seguindo o exemplo de Amesterdão, onde o presidente da câmara é nomeado pela Coroa como árbitro au dessus de la mêlée, pode cumprir vários mandatos e tem a função de estimular, vigiar e garantir, perante os eleitos políticos, a prioridade e o cumprimento dos projectos verdadeiramente importantes ... assim eu proponho um comissário escolhido pela Presidência da República, instituição suprema da nação portuguesa, que desempenhe este papel de guardião e de garantia de execução deste verdadeiro desígnio nacional.
Chegou a altura de encontrarmos em nós próprios a capacidade de realizar, de cumprir, e não "ir" avançando apenas aos soluços estimulados por factores externos.
Para isso, teremos de compreender, de vez, que estamos reduzidos a este pequeno rectângulo, e deixarmo-nos de fugas, de diásporas e quimeras. É Portugal que tem que ser cumprido!
Historiador de Arquitectura