OPINIÃO
A sociologia da extrema-direita
As divisões sociais não existem exclusivamente por
motivos económicos, mas também por fatores culturais – onde se vive, grau de
instrução da família, onde se estuda, etc.
Maria João
Marques
27 de Abril de
2022, 1:23
https://www.publico.pt/2022/04/27/opiniao/opiniao/sociologia-extremadireita-2003914
Na primavera de
2009, num breve período em Inglaterra, entretive-me com duas polémicas que
agitavam na altura as notícias e as colunas de opinião dos jornais. Uma era o
escândalo com as despesas abusivas dos membros do parlamento britânico. A
outra, igualmente provocadora dos ânimos, detinha-se na alegação da atriz Kate
Winslet numa entrevista à revista Marie Claire sobre as suas próprias origens:
vinha de uma família working class. Talvez porque na Grã-Bretanha as questões
de classe são importantes e assumidas, houve muitos levando a mal as afirmações
de Winslet – e não para lhe associar alguma aura de glamour que vem com origens
sociais mais abonadas. Pelo contrário. Iam no sentido de considerar working
class como a experiência de vida mais crua, mais real, mais cool e não estavam
dispostos a atribuir a Winslet a distinção de a ter vivido.
A mais divertida
contestação às origens humildes e proletárias da atriz li-a no The Times. As
principais razões para Winslet não ser working class: a educação privada e a
confiança social que lhe tinha permitido organizar a festa descontraída e
despretensiosa do seu primeiro casamento num normal pub britânico. A autora
daquelas linhas também distinguia entre viver numa família working class e ter
pouco dinheiro.
Esta curiosa
polémica à roda de Kate Winslet tem a sua utilidade para 2022. Evidencia, por
um lado, haver um certo identitarismo working class orgulhoso. Por outro, que
as divisões sociais não existem exclusivamente por motivos económicos, mas
também por fatores culturais – onde se vive, grau de instrução da família, onde
se estuda, etc.
Demos um salto
para a outra margem do Canal da Mancha, para as eleições presidenciais francesas
de domingo. A tipologia dos eleitores de Macron e de Le Pen mostrou, mais uma
vez, como a sociedade está dividida em grupos com pouco em comum entre si e que
esses grupos votam, lá dentro, de maneira semelhante. Segundo sondagens à saída
das urnas, os votantes de Macron são citadinos, escolarizados e de zonas com
maior percentagem de frequentadores do ensino superior, têm uma maior esperança
média de vida (indicativa de melhor saúde, maior rendimento, maior qualidade de
vida) e maiores rendimentos. Os eleitores de Marine Le Pen são menos
escolarizados, vivem nas zonas com menor percentagem de frequência
universitária, são mais pessimistas perante a vida. Nesta sondagem também se
concluía que os trabalhadores de colarinho azul votaram maioritariamente na
extrema-direita. De igual modo, as comunas com maior desemprego votaram
preferencialmente Le Pen e o maior apoio à candidata veio dos eleitores mais
pobres das áreas rurais e semi-rurais.
Esta
caracterização dos eleitores do eleitorado francês é muito semelhante às
divisões entre os eleitores americanos republicanos versus democratas e,
igualmente, à da votação do referendo do “Brexit” entre os votantes Remain e
Leave. Nas últimas Conferências do Estoril antes da pandemia, Fareed Zakaria,
por exemplo, constatava que os maiores indicadores que determinavam o apoio a
Trump ou o voto nos democratas eram viver ou não numa cidade e ter ou não um
curso universitário. Livros como Political Tribes, de Amy Chua, ou Hillbilly
Elegy, de J. D. Vance (agora candidato nas primárias republicanas no Ohio para
as eleições intercalares americanas de novembro), dão-nos conta dos hábitos
culturais diferentes entre os eleitores trumpistas e os que repudiavam Trump.
Retour à Reims, de Didier Eribon, cuja adaptação cinematográfica se estreou
recentemente, relata a passagem natural dos votantes comunistas franceses para
a Frente Nacional. O próprio Eribon, apoiante de Mélenchon, absteve-se na
segunda volta das presidenciais francesas, incapaz de votar no centrista Macron
tal como mais de um terço dos eleitores do candidato da extrema-esquerda.
É certo que no
voto na extrema-direita há muito de protesto económico. Desemprego. Trabalhos
pouco qualificados, mal pagos e associados a baixo estatuto social. Escassas
perspetivas de melhoria de vida. Baixas qualificações. A mistura explosiva de
pequenos rendimentos, maus hábitos alimentares, estilos de vida pouco
saudáveis, empregos precários. E todo este marasmo enquanto veem partes da
população prosperando e usufruindo da quase totalidade dos benefícios do
crescimento económico.
Contudo, também
tem muito de cultural esta propensão para a extrema-direita pelo eleitorado (ou
pelos filhos do eleitorado) que anteriormente votava nos partidos comunista e
socialista francês, nos democratas nos Estados Unidos ou nos trabalhistas no
Reino Unido. Os hábitos de vida: como passam o tempo de lazer, os locais que
frequentam, o que veem na televisão ou cinema, como se alimentam, o tipo de
consumo, a tipologia das famílias que constituem. A falta de acesso a
determinados bens culturais e de entretenimento, bem como à diversidade e
dinamismo próprio dos centros urbanos, que implica viver em zonas rurais.
Também, julgo eu, um certo ressentimento social e cultural contra os políticos
que se identificam mais, até pelo estilo de vida, com eleitorados citadinos (e
neles procuram os votos), mais endinheirados e escolarizados.
Em Portugal não
se deu (ainda) a implosão dos partidos moderados de esquerda e direita. (Porém
há diferenças estruturais na forma como o eleitorado posiciona o PS e o PSD que
a podem precipitar.) Não houve cataclismo (ainda) político devido a votações no
Chega. E o PCP sobrevive, pelo que o tamanho da sua tribo cultural se vai
reduzindo mas resiste. Em todo o caso, a nossa tipologia do eleitorado da
extrema-direita assemelha-se à de outros países. Sem frequência universitária,
masculino, menor poder de compra, quase todo o cabaz da caracterização.
Ainda ninguém acertou com uma receita para anular o
crescimento da extrema-direita. Porventura nem é possível, talvez seja uma
característica estrutural das sociedades europeias
No entanto, já
tivemos o “Brexit” e em França há a perceção de que em cinco, dez, quinze anos
pode haver uma maioria de descontentes que se junte aos alegres votantes da
extrema-direita para eleger Le Pen ou quem lhe suceder. E tal legitimaria e
galvanizaria a direita populista por toda a Europa. Ainda ninguém acertou com
uma receita para anular o crescimento da extrema-direita. Porventura nem é
possível, talvez seja uma característica estrutural das sociedades europeias. À
esquerda usualmente usam a economia e diabolizam o capitalismo e o
neoliberalismo. À direita o desnorte é ainda maior. Pela minha parte estou
convencida de que para conter (pelo menos) a extrema-direita faz falta análise
política, análise económica mas também análise sociológica.


Sem comentários:
Enviar um comentário