sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Martinho da Arcada: “o café que se cruzou com a História” chega aos 240 anos

 



LISBOA

Martinho da Arcada: “o café que se cruzou com a História” chega aos 240 anos

 

Teve glórias e várias crises, testemunhou as mudanças da cidade e do país, foi local de conspiração e intriga política no mais político dos locais, a Praça do Comércio, mas também de literatura e artes.

 

João Pedro Pincha

7 de Janeiro de 2022, 7:00

https://www.publico.pt/2022/01/07/local/noticia/martinho-arcada-cafe-cruzou-historia-chega-240-anos-1991028

 

Eduardo Lourenço escreveu no livro de honra do Martinho da Arcada que “um lugar mítico” era aquele “onde um anjo passou anónimo e o converteu em lugar de memória sem fim”. Com 240 anos de existência, celebrados esta sexta-feira, o emblemático e mais duradouro café lisboeta tem umas quantas memórias para partilhar.

 

Passou por glórias e vicissitudes, esteve à beira de fechar mais de um par de vezes, foi acarinhado e defendido por quem o frequentava e não só, testemunhou em lugar privilegiado as mudanças à sua volta: na cidade, no país, nas artes. É “o café que se cruzou com a História”, resume Luís Machado, que há 30 anos ali dinamiza tertúlias por onde passaram muitos nomes da cultura portuguesa.

 

Eduardo Lourenço foi um deles, em 2012. Mas a figura cuja vida é indissociável do Martinho é Fernando Pessoa, que longas horas ocupou as suas mesas “a fazer vida de café” e a escrever. Quer ortónimo, quer heterónimo, são múltiplas as referências na sua obra literária ao estabelecimento que desde 1782 faz gaveto entre a Praça do Comércio e a Rua da Prata.

 

“Se não fosse o Martinho da Arcada, Fernando Pessoa teria morrido mais cedo”, afirmou Agostinho da Silva, citado no livro que o café acaba de lançar para a celebração do 240º aniversário. Martinho da Arcada – um café de todos nós (ed. Âncora), da autoria de Luís Machado, é um dos pontos do programa comemorativo. Está igualmente prevista a criação de um prémio literário, a edição de uma serigrafia, visitas de escolas, a realização de um recital de poesia e de uma nova série de tertúlias com António-Pedro Vasconcelos, Olga Roriz, Sérgio Godinho, Eduardo Gageiro e o embaixador António Monteiro.

 

Da neve à política

Apesar de ter aberto ao público em 1782, só quase meio século mais tarde o café viria a adquirir o nome que mantém ao dia de hoje. A sua fundação deve-se a Julião Pereira de Castro, neveiro-mor do reino, que inaugurou com pompa uma Casa da Neve – local onde se podia tomar refrescos e comer gelados graças aos blocos de neve trazidos propositadamente da Serra da Estrela para a corte. Ainda no Verão passado este percurso foi recriado.

 

“Na Lisboa do século XVIII, o aparecimento de um botequim de luxo era um acontecimento social importante, objecto das atenções dos lisboetas”, escreve Luís Machado, dando conta de uma grande frequência de fidalgos e mercadores. Mas não só. Quando em 1784 o espaço é arrendado a Domenico Mignani, que o rebaptiza como Casa de Café Italiana e, mais tarde, Café do Comércio, outra clientela por lá parava. “A era dos botequins setecentistas, frequentados por aventureiros, meretrizes, proxenetas, marinheiros e arruaceiros, chegara ao fim, dando lugar a cafés mais amplos e arejados que atraíam outro tipo de clientes.”

 

É nesta época que o Café da Arcada, outro nome que também foi seu, começa a ser local de conspiração, discussão e intriga política. O intendente Pina Manique declara: “Os cafés cheiram a jacobinice e maçonaria. São verdadeiras gafarias de sarampelo político.”

 

Em 1810, o café é encerrado por ali se praticar jogo ilegal. Mantém-se cinco anos fechado. Em 1824 volta a mudar de mãos. O novo proprietário, José de Melo, atrai clientela com gelados de morango, carapinhadas e venda de almoços e jantares para fora. Era uma inovação, mas o negócio não rende. E entra finalmente em cena o homem que ainda hoje dá nome ao espaço: Martinho Bartholomeu Rodrigues, comerciante de gelo, neto de Julião Pereira de Castro, que promove obras e reabre o café em 1829.

 

Daquele café de canto – baptizado Martinho da Arcada para se diferenciar do outro café Martinho, ao Rossio – os seus frequentadores viram desfilar o setembrismo e o cabralismo, o estertor da monarquia, o Regicídio ali tão perto, a implantação da República, a ditadura militar. “Janotas ociosos, jornalistas alcoólicos e militares reformados” formam então a clientela da casa. Em 1933, com o começo do Estado Novo, lê-se no livro que “as alterações são visíveis: às onze e meia as mesas passam a ser cobertas por toalhas para os almoços. A partir dessa hora, e até às quinze, deixam de ser servidos cafés. Com as novas regras, os ociosos puros afastam-se.”

 

Já nas mãos da família Mourão, que o deteve durante décadas, o Martinho torna-se, durante a Segunda Guerra, simultaneamente um lugar de espiões e “uma sala de espera nostálgica” para “milhares de fugitivos do nazismo” que “aguardam ansiosamente sentados às mesas do café (durante longas jornadas) notícias dos seus entes queridos”, relata Luís Machado. Nesse período há dificuldade em aceder a alguns bens alimentares, mas “o bife e o bacalhau nunca faltaram”. Quem faltam são os clientes, o que leva a que deixem de ser servidos jantares.

 

Numa história que conta com várias crises, as maiores verificaram-se quando o café era já bicentenário. Em 1984, quando sai a notícia de que o Martinho, para sobreviver financeiramente, será transformado em “moderno self-service”, a professora Maria do Carmo Vieira e os seus alunos lançam uma carta aberta que pede a intervenção da Câmara de Lisboa e do Estado para “salvar o café pessoano”. Nas últimas semanas, a própria relatou pormenorizadamente todo o longo processo em artigos no PÚBLICO.

 

Em 1988, Cavaco Silva almoçava no Martinho para anunciar um apoio estatal de 30 mil contos para obras de requalificação, que ficaram a cargo do arquitecto Raúl Hestnes Ferreira. A ementa: sopa à camponesa, linguado à delícia e ananás dos Açores. Pouco depois, a família Sousa assume o comando do negócio, que mantém até hoje.

 

O Martinho da Arcada, “o próprio estabelecimento em si, na sua globalidade exterior e interior”, está classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1993.

 

tp.ocilbup@ahcnip.oaoj

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