LISBOA
Martinho da Arcada: “o café que se cruzou com a História”
chega aos 240 anos
Teve glórias e várias crises, testemunhou as mudanças da
cidade e do país, foi local de conspiração e intriga política no mais político
dos locais, a Praça do Comércio, mas também de literatura e artes.
João Pedro Pincha
7 de Janeiro de
2022, 7:00
Eduardo Lourenço
escreveu no livro de honra do Martinho da Arcada que “um lugar mítico” era
aquele “onde um anjo passou anónimo e o converteu em lugar de memória sem fim”.
Com 240 anos de existência, celebrados esta sexta-feira, o emblemático e mais
duradouro café lisboeta tem umas quantas memórias para partilhar.
Passou por
glórias e vicissitudes, esteve à beira de fechar mais de um par de vezes, foi
acarinhado e defendido por quem o frequentava e não só, testemunhou em lugar
privilegiado as mudanças à sua volta: na cidade, no país, nas artes. É “o café
que se cruzou com a História”, resume Luís Machado, que há 30 anos ali dinamiza
tertúlias por onde passaram muitos nomes da cultura portuguesa.
Eduardo Lourenço
foi um deles, em 2012. Mas a figura cuja vida é indissociável do Martinho é
Fernando Pessoa, que longas horas ocupou as suas mesas “a fazer vida de café” e
a escrever. Quer ortónimo, quer heterónimo, são múltiplas as referências na sua
obra literária ao estabelecimento que desde 1782 faz gaveto entre a Praça do
Comércio e a Rua da Prata.
“Se não fosse o
Martinho da Arcada, Fernando Pessoa teria morrido mais cedo”, afirmou Agostinho
da Silva, citado no livro que o café acaba de lançar para a celebração do 240º
aniversário. Martinho da Arcada – um café de todos nós (ed. Âncora), da autoria
de Luís Machado, é um dos pontos do programa comemorativo. Está igualmente
prevista a criação de um prémio literário, a edição de uma serigrafia, visitas
de escolas, a realização de um recital de poesia e de uma nova série de
tertúlias com António-Pedro Vasconcelos, Olga Roriz, Sérgio Godinho, Eduardo
Gageiro e o embaixador António Monteiro.
Da neve à
política
Apesar de ter
aberto ao público em 1782, só quase meio século mais tarde o café viria a
adquirir o nome que mantém ao dia de hoje. A sua fundação deve-se a Julião
Pereira de Castro, neveiro-mor do reino, que inaugurou com pompa uma Casa da
Neve – local onde se podia tomar refrescos e comer gelados graças aos blocos de
neve trazidos propositadamente da Serra da Estrela para a corte. Ainda no Verão
passado este percurso foi recriado.
“Na Lisboa do
século XVIII, o aparecimento de um botequim de luxo era um acontecimento social
importante, objecto das atenções dos lisboetas”, escreve Luís Machado, dando
conta de uma grande frequência de fidalgos e mercadores. Mas não só. Quando em
1784 o espaço é arrendado a Domenico Mignani, que o rebaptiza como Casa de Café
Italiana e, mais tarde, Café do Comércio, outra clientela por lá parava. “A era
dos botequins setecentistas, frequentados por aventureiros, meretrizes,
proxenetas, marinheiros e arruaceiros, chegara ao fim, dando lugar a cafés mais
amplos e arejados que atraíam outro tipo de clientes.”
É nesta época que
o Café da Arcada, outro nome que também foi seu, começa a ser local de
conspiração, discussão e intriga política. O intendente Pina Manique declara:
“Os cafés cheiram a jacobinice e maçonaria. São verdadeiras gafarias de
sarampelo político.”
Em 1810, o café é
encerrado por ali se praticar jogo ilegal. Mantém-se cinco anos fechado. Em
1824 volta a mudar de mãos. O novo proprietário, José de Melo, atrai clientela
com gelados de morango, carapinhadas e venda de almoços e jantares para fora.
Era uma inovação, mas o negócio não rende. E entra finalmente em cena o homem
que ainda hoje dá nome ao espaço: Martinho Bartholomeu Rodrigues, comerciante
de gelo, neto de Julião Pereira de Castro, que promove obras e reabre o café em
1829.
Daquele café de
canto – baptizado Martinho da Arcada para se diferenciar do outro café
Martinho, ao Rossio – os seus frequentadores viram desfilar o setembrismo e o
cabralismo, o estertor da monarquia, o Regicídio ali tão perto, a implantação
da República, a ditadura militar. “Janotas ociosos, jornalistas alcoólicos e
militares reformados” formam então a clientela da casa. Em 1933, com o começo
do Estado Novo, lê-se no livro que “as alterações são visíveis: às onze e meia
as mesas passam a ser cobertas por toalhas para os almoços. A partir dessa
hora, e até às quinze, deixam de ser servidos cafés. Com as novas regras, os
ociosos puros afastam-se.”
Já nas mãos da
família Mourão, que o deteve durante décadas, o Martinho torna-se, durante a Segunda
Guerra, simultaneamente um lugar de espiões e “uma sala de espera nostálgica”
para “milhares de fugitivos do nazismo” que “aguardam ansiosamente sentados às
mesas do café (durante longas jornadas) notícias dos seus entes queridos”,
relata Luís Machado. Nesse período há dificuldade em aceder a alguns bens
alimentares, mas “o bife e o bacalhau nunca faltaram”. Quem faltam são os
clientes, o que leva a que deixem de ser servidos jantares.
Numa história que
conta com várias crises, as maiores verificaram-se quando o café era já
bicentenário. Em 1984, quando sai a notícia de que o Martinho, para sobreviver
financeiramente, será transformado em “moderno self-service”, a professora
Maria do Carmo Vieira e os seus alunos lançam uma carta aberta que pede a intervenção
da Câmara de Lisboa e do Estado para “salvar o café pessoano”. Nas últimas
semanas, a própria relatou pormenorizadamente todo o longo processo em artigos
no PÚBLICO.
Em 1988, Cavaco
Silva almoçava no Martinho para anunciar um apoio estatal de 30 mil contos para
obras de requalificação, que ficaram a cargo do arquitecto Raúl Hestnes
Ferreira. A ementa: sopa à camponesa, linguado à delícia e ananás dos Açores.
Pouco depois, a família Sousa assume o comando do negócio, que mantém até hoje.
O Martinho da
Arcada, “o próprio estabelecimento em si, na sua globalidade exterior e
interior”, está classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1993.
tp.ocilbup@ahcnip.oaoj
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