PORTO
Casa Chinesa luta contra despejo: “Isto não pode acabar
assim”
Mercearia fina com 82 anos corre o risco de fechar,
depois de senhorio propor aumentar a renda para 3000 euros. Pandemia atrasou
avaliação de candidatura ao programa camarário de protecção de lojas históricas
Mariana Correia
Pinto
7 de Janeiro de
2022, 7:04
Loja fez 82 anos
no dia 18 de Dezembro
https://www.publico.pt/2022/01/07/local/noticia/casa-chinesa-luta-despejo-nao-acabar-assim-1990984
Quando uma carta
do senhorio chegou à Casa Chinesa com um aviso de aumento da renda para 3000
euros, Lídia entristeceu. A trabalhadora, na casa há 47 anos, traz o nome
bordado na bata azul e é por ele chamada por boa parte da clientela da
histórica mercearia fina. “Esta casa é única no Porto, já passaram por aqui
gerações: avós, pais e filhos”, conta enquanto atende uma cliente que lhe
confia a missão de escolher “a melhor alheira que tiver”. “Andamos apreensivas e
tristes. Isto não pode acabar assim, alguém tem de fazer alguma coisa por nós.”
“Acabar assim”
significa fechar as portas, 82 anos depois da abertura, na Rua de Sá da
Bandeira, da casa com nome oriental, muito por causa das especiarias importadas
da Ásia desde 1939. Mário Carvalho, um dos dois gestores, conta que foram
surpreendidos, já perto do final de 2021, com uma proposta “exagerada” de
subida da renda. Dispostos a negociar, enviaram ao senhorio uma contraproposta.
Mas a refutação veio já com tom definitivo: “Recebemos uma ordem de despejo.” A
Casa Chinesa está neste momento a contestar a acção em tribunal, com esperança
de um desfecho que não implique o fim de uma loja que é “parte do Porto”.
Apesar do
prestígio e antiguidade, a Casa Chinesa não tem ainda protecção do programa
camarário Porto de Tradição. A candidatura foi entregue há mais de um ano, em
Novembro de 2020, mas até agora não houve decisão. “É um processo demorado”,
procura justificar Mário Carvalho. “Vieram cá ver a loja, tiraram fotografias.
Estamos à espera do resultado. Esperemos que ajude.”
A data de entrada
do pedido de reconhecimento como loja histórica “coincidiu com o momento do
segundo confinamento”, diz ao PÚBLICO o vereador Ricardo Valente, justificando
assim a impossibilidade de “programar a visita ao estabelecimento com a
brevidade desejada”. Essa visita foi realizada apenas em Agosto de 2021 e,
neste momento, a análise técnica está concluída. Mas outros obstáculos
surgiram, explica o vereador: antes e depois das autárquicas não houve
submissão de propostas e, com a redistribuição de pelouros, foi necessário
designar os novos representantes do pelouro na comissão de acompanhamento do
programa Porto de Tradição. Os restantes membros da comissão viram também os
seus mandatos caducados neste período, obrigando a novas nomeações – e a novo
atraso nos processos em avaliação.
Protecção?
Decisão está para breve
Neste momento, a
decisão estará quase a sair. “Está prevista a submissão, na próxima semana, do
pedido de reconhecimento da Casa Chinesa à avaliação da Comissão de
Acompanhamento. Posteriormente, a decisão da comissão de acompanhamento será
submetida a deliberação do executivo municipal.”
E tendo a Casa
Chinesa pedido a protecção camarária antes da acção de despejo ela será útil?
“A medida de protecção prevista na Lei n.º 42/2017, de 14 de Junho em matéria
de arrendamento é aplicável aos estabelecimentos e entidades após a decisão
final de reconhecimento, pelo que me parece que sendo essa a decisão final,
esse será, sem dúvida, um elemento importante a integrar o processo judicial”,
responde Ricardo Valente.
Lídia chegou à
mercearia fina da Baixa do Porto com 16 anos. “Não sabia nada. Tudo o que
aprendi foi aqui, com o senhor Eugénio”, conta, apontando para um retrato do
homem e de outras trabalhadoras emoldurado atrás do balcão, junto a garrafas de
vinho, chás, conservas, produtos nacionais e internacionais, alguns deles só
encontrados ali. “Temos coisas que mais nenhuma casa tem”, jura enquanto
procura a confirmação de Paula, outra dos cinco trabalhadores da casa (mais
dois gerentes).
Quando ali
chegou, Lídia ainda se cruzou com os fundadores, Joaquim Mota Cardoso e
Fernando Silva, que em 1939 quiseram trazer para o Porto produtos exóticos até
então impossíveis de encontrar na urbe. “Esta casa servia o Porto inteiro”,
orgulha-se Lídia, logo corrigindo o pretérito do verbo: “Ainda serve. Dos avós
passamos aos filhos e depois aos netos.”
Nas prateleiras
da Casa Chinesa há produtos de cosmética naturais, plantas medicinais para
fitoterapia, alimentos macrobióticos, produtos para diabéticos e celíacos
(“fomos a primeira casa do Porto a ter produtos sem glúten”), comida de Goa, do
Brasil, de Angola, de Cabo Verde. E ainda chocolates, vinhos e outras bebidas
espirituais, enchidos, frutos secos, queijos, chás, pão.
O atendimento,
como promete uma frase inscrita numa parede, é “personalizado”. E isso, acredita
Lídia, foi carta importante para sobreviver à pandemia. O negócio caiu, as
portas fecharam-se por algum tempo, os turistas, que tanto apreciam o espaço,
desapareceram. Mas algo ficou. E foi garantindo a sobrevivência: “Temos uma
clientela muito fiel.”
Mário Carvalho
declara-se “optimista”. Sobretudo se a autarquia conferir à mercearia fina o
selo de loja histórica. Desde a sua criação, o Porto de Tradição reconheceu “94
estabelecimentos comerciais e quatro entidades de interesse histórico, cultural
ou social local”. A autarquia diz conhecer apenas sete situações em que esses
estabelecimentos acabaram por fechar, mesmo com protecção, sublinhando que
apenas num dos casos houve uma “relação causal directa com uma ordem de
despejo”. O mais recente caso de encerramento é o da Confeitaria Serrana, mas
há outros casos como o da Cunha ou a do Buraquinho.
Se a Casa Chinesa
fechar, conjectura Mário Carvalho, “o Porto perderá muito”. “Seria uma pena que
uma casa com esta idade, tradição e prestígio se perdesse. Não sei o que
pretendem que venha para aqui…”
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