segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Quase desaparecida há décadas, a inflação é agora a sombra que paira sobre a retoma

 



ANÁLISE

Quase desaparecida há décadas, a inflação é agora a sombra que paira sobre a retoma

 

Com previsões de crescimento acima de 5%, o ano de 2022 pode vir a ser o da confirmação da retoma mais rápida de todas as recessões das últimas décadas. Um obstáculo, no entanto, ainda pode surgir pela frente: uma inflação persistente que obrigue o BCE a retirar as ajudas mais rapidamente do que estava à espera

 

Sérgio Aníbal

27 de Dezembro de 2021, 0:07

https://www.publico.pt/2021/12/27/economia/analise/quase-desaparecida-ha-decadas-inflacao-sombra-paira-retoma-1989250

 

Desemprego em alta, agravamento de impostos para equilibrar as contas pública ou crescimento insípido dos salários são várias das preocupações que os portugueses se habituaram a ter na frente económica durante as últimas duas décadas. Mas com a inflação, e principalmente com aquilo que esta força o banco central a fazer às taxas de juro, os motivos para a preocupação não têm sido muitos. Até agora.

 

Acreditando que o pior da pandemia já passou, 2022 tem tudo para ser o ano da confirmação de uma retoma económica forte em Portugal, bem mais rápida do que as que se seguiram às outras crises do passado. Mas um obstáculo há muito quase desaparecido ensombra ainda esse cenário benigno: a inflação está, na zona euro, nos máximos das últimas décadas e, se não recuar nos próximos meses, pode forçar o Banco Central Europeu a mudar de rumo, ameaçando retirar a uma economia endividada como a portuguesa um dos apoios de que mais tem beneficiado nos últimos anos.

 

Depois de cair 8,4% em 2020 e de, durante este ano, ter conseguido crescer já 4,8%, a economia portuguesa deverá, de acordo com a generalidade das previsões, acelerar no próximo ano. O Governo aposta num crescimento de 5,5%, o Banco de Portugal ficou recentemente mais optimista e diz que será de 5,8%, enquanto a Comissão Europeia, o FMI e a OCDE projectam 5,3%, 5,1% e 5,8%, respectivamente.

 

As razões por trás deste optimismo generalizado são fáceis de compreender. Em primeiro lugar, a forma como as economias já têm vindo a crescer durante este ano, não só em Portugal mas também na maior parte das economias, parece comprovar a teoria de que, como aquilo que fez recuar as economias nesta crise foram essencialmente as medidas de confinamento adoptadas para controlar a pandemia, então, a partir do momento em que a frente sanitária se resolve, ficam criadas as condições para que a actividade económica regresse rapidamente ao nível em que se encontrava antes da pandemia.

 

Se no caso dos EUA isso já aconteceu e em muitos países europeus deverá estar a ocorrer no final de 2021, no caso de Portugal, o regresso do Produto Interno Bruto (PIB) aos níveis pré-pandemia deverá concretizar-se, de acordo com as últimas previsões do Banco de Portugal, durante a primeira metade de 2022.

 

Se tal se vier a confirmar, será a retoma mais rápida de todas as mais recentes grandes recessões. Por exemplo, durante a crise que trouxe a troika a Portugal em 2011, foi preciso esperar sete anos, até 2017, para que o valor do PIB real regressasse aos níveis de 2010. Agora, a confirmarem-se as previsões, tal acontecerá no espaço de apenas três anos, com o PIB de 2022 a ser já superior ao PIB de 2019.

 

Para esta expectativa de rapidez na retoma portuguesa contribuem, para além do facto de se estar à espera de que o choque pandémico esteja a desaparecer, outros factores. Por um lado, começa a parecer evidente que a economia nacional está agora, à semelhança do que acontece noutros países, mais adaptada à própria pandemia, o que se conclui ao verificar que o impacto económico negativo provocado por cada vaga do vírus tem vindo a ser progressivamente menor.

 

Depois, a economia portuguesa está a poder contar desta vez com um forte apoio da política orçamental. Os Estados – e o português não foi excepção – abriram os cordões à bolsa e adoptaram medidas nunca vistas de apoio às empresas e às famílias, a principal das quais foi o apoio dado à manutenção do emprego via layoff simplificado. Em Portugal, o saldo orçamental passou de um excedente para um défice de 5,8% em 2020 e a dívida pública ultrapassou os 130% do PIB, mas a economia – e principalmente o emprego – resistiram muito melhor do que aquilo que se poderia pensar perante uma travagem forçada da actividade tão significativa.

 

Este apoio do Estado foi possível porque, desta vez, ao contrário do que aconteceu em 2011, nem a União Europeia exigiu austeridade ao país, tendo suspendido mesmo a aplicação das regras orçamentais, nem os mercados deram sinais de poderem penalizar Portugal com subidas das taxas de juro exigidas para emprestar dinheiro ao país.

 

Em 2022, a suspensão das regras orçamentais europeias irá manter-se e, para além disso, deverá ser no próximo ano que arrancará em força a execução do Plano de Recuperação e Resiliência, a forma encontrada nesta crise pela União Europeia para dar aos Estados-membros com mais dificuldades de financiamento a possibilidade de investir para recuperar do impacto negativo sofrido com a pandemia. Isso deverá dar um impulso de curto prazo à economia portuguesa que não teve no passado.

 

A contar com a ajuda do BCE

Noutro âmbito, a crise tem sido atravessada com a ajuda daquela que é a política mais expansionista a que já se assistiu na Europa. Para ajudar Estados, empresas e famílias a evitarem ainda maiores dificuldades, o BCE colocou em velocidade máxima as suas máquinas de imprimir dinheiro. Por um lado, tem as taxas de juro a que empresta dinheiro aos bancos a zero, algo que se reflecte, por exemplo, nos valores mínimos a que se encontram as taxas Euribor, usadas como referência na maior parte dos empréstimos em Portugal. E, para além disso, aumentou ainda mais o volume das compras extraordinárias de títulos de dívida pública com que, desde 2015, tem vindo a ajudar os Estados, como o português, a obterem crédito a taxas de juro historicamente baixas.

 

Ao contrário dos bancos centrais dos EUA e do Reino Unido que já estão a recuar rapidamente nos estímulos que oferecem às economias, para já, no BCE, a intenção continua a ser a de dar esses passos de forma moderada, reduzindo as compras de dívida já a partir de Janeiro, mas de forma progressiva até ao final de 2024, e anunciando para breve eventuais subidas dos juros.

 

As políticas do BCE têm permitido, desde as primeiras semanas da crise, que os aumentos dos encargos da dívida, como o que se verificou de forma brusca em 2011, não sejam desta vez um problema para os agentes económicos portugueses, públicos e privados. E a expectativa, pelo menos de acordo com o cenário-base traçado neste momento pelo BCE, é que em 2022, embora comece a retirar progressivamente as suas ajudas, abrandando, por exemplo, o ritmo a que compra títulos de dívida pública, a política monetária continue a ajudar a economia a recuperar.

 

É aqui, contudo, que a ameaça da inflação paira sobre este cenário benigno para a economia portuguesa.

 

Na segunda metade de 2021, a taxa de inflação subiu bastante na maior parte das economias mundiais. Na zona euro, a variação homóloga dos preços chegou, em Novembro, aos 4,9%, o valor mais alto desde que a moeda única foi criada, em 1999. Portugal foi um dos países em que subiu menos – chegou a uma taxa de 2,7% em Novembro –, mas isso pouco conta para aquilo que o seu banco central, o BCE, irá decidir fazer.

 

Os bancos centrais, quando colocados perante uma taxa de inflação alta, que ponha em causa o seu objectivo de estabilidade de preços, aquilo que costumam fazer é tentar refrear a economia, retirando quaisquer medidas extraordinárias de estímulo, como a compra de títulos de dívida pública, e, eventualmente, fazendo subir as taxas de juro.

 

Ao contrário dos bancos centrais dos EUA e do Reino Unido que já estão a recuar rapidamente nos estímulos que oferecem às economias, para já, no BCE, a intenção continua a ser a de dar esses passos de forma moderada, reduzindo as compras de dívida já a partir de Janeiro, mas de forma progressiva até ao final de 2024, e anunciando para breve eventuais subidas dos juros.

 

A entidade liderada por Christine Lagarde, crescentemente pressionada a agir, especialmente pela opinião pública na Alemanha, onde a taxa de inflação já ultrapassa os 6%, mantém esta calma porque acredita que a subida da inflação a que actualmente se assiste é criada essencialmente por factores temporários e que brevemente irá começar a descer.

 

Esta é, no entanto, uma convicção que, cada vez mais, à medida que a subida da inflação se prolonga, começa a ser posta em causa. “Há duas coisas que neste momento são consensuais entre os economistas. A primeira é que uma boa parte da inflação pode ser explicada por fenómenos temporários, como os desequilíbrios orçamentais ou a perturbação das cadeias de abastecimento. E que, uma vez normalizados estes fenómenos, ocorrerá um certo recuo da inflação. A outra é que, mesmo assim, existe a preocupação de que, a partir do momento em que esses fenómenos se revelem mais persistentes, se entre numa espiral de aumentos de salários, que essa, sim, pode levar o BCE a agir”, explica o economista da Nova SBE Pedro Brinca.

 

A evolução da própria expectativa do BCE em relação à inflação tem sido evidente. Nas últimas previsões que apresentou, o banco central passou a sua previsão para a inflação em 2022 de 1,7% para 3,2%. E para os anos seguintes, a expectativa é a de que este indicador se situe em 1,8%, mais perto da meta dos 2% do que os 1,5% antes projectados. Um sinal de que pode estar agora bastante mais perto de começar a inverter o rumo da sua política monetária.

 

Ricardo Reis, professor na London School of Economics e consultor na Reserva Federal (Fed) e no Banco de Inglaterra, acredita que os próximos meses serão decisivos para a condução da política monetária na Europa. “Logo na primeira metade de 2022, vamos assistir a grandes novidades nesta matéria, a uma grande redefinição do banco central em relação à inflação. Vamos chegar ao final deste ano com a inflação acima dos 4% e isso faz com que estejamos perante um período diferente na história do BCE e que este seja um teste sério àquilo que são as suas prioridades”, afirma este economista, que não acredita que tudo possa acabar por ser resolvido com o simples desaparecimento dos factores temporários que actualmente fazem subir a inflação. “Uma das razões para se ter chegado a esta situação, para além dos factores externos como a subida do preço do petróleo, foi que o BCE tolerou esta alta inflação, mantendo uma política muito expansionista, a mais expansionista de sempre”, sublinha.

 

“Agora, na primeira metade de 2022, vamos ver se temos azar ou sorte em alguns desses factores temporários, ver como eles evoluem. Mas vamos também ver até que ponto estes meses de inflação alta fizeram o BCE perder credibilidade”, considera.

 

Ricardo Reis defende que, para o BCE, “o grande teste será saber se vai reverter as políticas [expansionistas]”. “Já não basta que os factores temporários desapareçam. Penso que já não é possível evitar que a inflação fique persistentemente mais alta sem que o BCE passe à acção, eventualmente subindo as taxas de juro”, afirma.

 

Nas novas previsões que apresentou para a economia portuguesa em Dezembro, o Banco de Portugal traçou um cenário de crescimento forte em 2022 e 2023, mas fê-lo assumindo como pressuposto que o BCE se irá manter firme nos seus actuais planos de retirada muito lenta das medidas expansionistas e que, por isso, tanto as taxas de juro Euribor como as taxas de juro da dívida pública portuguesa se irão manter praticamente inalteradas nos próximos anos.

 

Se este cenário benigno não se concretizar e o BCE acabar mesmo por ceder à pressão e recuar mais rápido, o efeito na economia portuguesa pode ser significativo, considera Pedro Brinca. “Pode ser muito preocupante para diversos países, incluindo Portugal”, afirma, assinalando que os problemas não seriam só para o Estado. “As pessoas não estão habituadas à magnitude de alteração das taxas que é necessária para combater a inflação”, alerta, assinalando que Portugal tem uma característica específica que pode tornar esta questão ainda mais relevante para a sua evolução económica.

 

 

“No combate à crise, Portugal foi um dos países que mais apostaram nas moratórias de crédito. Outros países injectaram capital nas empresas, mas Portugal, para evitar um maior impacto orçamental, apostou em moratórias. As moratórias resolvem o problema da liquidez, mas não o da solvabilidade. Vamos ver agora, com o fim das moratórias, em que forma é que as empresas estão. E aquilo que for feito pelo BCE vai contar muito”, afirma, lamentando que no auge da crise a opção política não tenha sido outra. “Portugal tinha toda a boa vontade política para gastar mais. Se havia altura em que o podia fazer, era esta. Optou por não o fazer e agora já não há forma de voltar atrás”, diz.

 

Ricardo Reis também não tem dúvida de que, “se o BCE fizer algo, se optar por uma maior contracção da política monetária, isso será um choque muito negativo para a economia portuguesa, uma vez que as empresas estão muito alavancadas e o Estado precisa sempre de emitir muita dívida”. “O normal é que isto aconteça. Que este cenário seja tão temido, diz mais da fragilidade em que a economia está”, completa.

 

Um cenário em que o BCE deixe a inflação disparar também teria os seus impactos negativos, “com reflexos nos bolsos das pessoas”, lembra o economista. “É o que faz a inflação. E pode ter também como consequência uma enorme tensão política dentro da zona euro, o que não é bom”, afirma.

 

Nem tudo, contudo, é mau para a economia portuguesa, num cenário de subida das taxas de inflação na zona euro. Na crise anterior, a Alemanha e outros países do Norte da Europa registaram taxas de inflação muito baixas, fruto das suas políticas de conquista dos mercados internacionais por via de uma grande moderação salarial. Isso levou Portugal a, seguindo a receita da troika, ir ainda mais longe, algo que contribuiu para a dimensão e duração do período recessivo.

 

“Entre 2010 e 2012, sem subida de preços na Alemanha, Portugal e outros países da periferia tiveram de baixar custos para ganhar competitividade. Agora, a inflação na zona euro é sobretudo alta na Alemanha, o que está a permitir uma dispersão. Portugal tem uma inflação bem mais baixa e isso está a contribuir para um aumento da competitividade da sua economia, sem necessidade de um corte tão acentuado dos custos”, afirma Ricardo Reis.

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