segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A “fome de poder” de Gouveia e Melo e o país que adora a “voz de comando”

 



OPINIÃO

A “fome de poder” de Gouveia e Melo e o país que adora a “voz de comando”

 

Gouveia e Melo há três meses não queria “confundir as coisas”; agora, imbuído sabe-se lá de quê, para lá do seu encantador egocentrismo, já está disponível para “confundir” o que lhe der na real gana.

 

Ana Sá Lopes

26 de Dezembro de 2021, 7:07

https://www.publico.pt/2021/12/26/politica/opiniao/fome-gouveia-melo-pais-adora-voz-comando-1989900

 

Temos metade do país apaixonada por um homem “alto” que “usa farda” e “tem voz de comando” (auto-descrição de Gouveia e Melo para justificar a sua popularidade em entrevista ao Sol). O próximo chefe do Estado-Maior da Armada – e parece que próximo-o-que-quiser-na-vida – fez um bom trabalho reconhecido por toda a gente no processo de vacinação. Mas há uma elevada quantidade de portugueses que cumpre as suas atribuições com sucesso e não suscitam nem paixões nem – na maioria dos casos – qualquer popularidade ao nível da que Gouveia e Melo atingiu em tão curto espaço de tempo.

 

O facto é que, num instantinho, a pátria “elegeu” Gouveia e Melo como “pai” e isso diz muito mais da pátria do que do vice-almirante, que do alto do seu incomensurável narcisismo nos vai oferecendo pérolas como aquela de que tem “fome de vencer”, como disse na entrevista ao Expresso. A frase é tão boa que merece ser reproduzida na íntegra: “Sou ambicioso, sim senhor… Olhe, tenho fome de vencer, podem dizer isso, que tenho fome de vencer e que sou muito ambicioso porque tenho fome de vencer e não gosto de perder.”

 

O homem que em Setembro dizia que não iria para a política mudou de ideias em Dezembro. É verdade que a mudança ocorreu antes de o seu nome ser finalmente nomeado para Chefe de Estado-Maior da Armada – depois da trapalhada entre Governo e Marcelo, quando João Gomes Cravinho tentou demitir Mendes Calado sem que Marcelo estivesse pelos ajustes. Pode ter a ver com isso. Mas é surreal que quem dizia, há escassos três meses, que “daria um péssimo político”, que “não estava preparado para isso” e achava que se devia “separar o que é militar do que é político, porque são campos de actuação completamente diferentes” venha agora admitir uma candidatura à Presidência da República, com queixas sobre o preconceito do espaço público relativamente aos militares. Em Setembro não havia “necessidade de nenhum militar vir para a política” porque a classe política era “muito desenvolvida e estruturada” e “os militares devem fazer o que sabem fazer, que é ser militar, e os políticos devem fazer o que sabem fazer, que é ser políticos”. Gouveia e Melo há três meses não queria “confundir as coisas”; agora, imbuído sabe-se lá de quê, para lá do seu encantador egocentrismo, já está disponível para “confundir” o que lhe der na real gana.

 

Gouveia e Melo chama-lhe “apanhar ar fresco”. Por enquanto, vai estar entretido com as funções de Chefe de Estado-Maior da Armada, mas depois há todo um mundo de possibilidades, como disse ao Expresso: “Para já quero continuar a ser militar. Se por algum motivo esse projecto estivesse comprometido, o que é que queria que eu fizesse? Que me atirasse da janela? Não. Abria a janela e apanhava ar fresco. E apanhando ar fresco tinha um grau de liberdade diferente.” E pronto: temos Gouveia e Melo disponível para um “contributo para a sociedade” que pode passar por um “movimento de cidadania”.

 

É um facto que existe uma sociedade – ou parte dela – fascinada com o vice-almirante que vai para lá do sucesso das inoculações vacinais. O homem atingiu o nível de “pop star”, provavelmente porque a paróquia adora que, de vez em quando, apareça uma “voz de comando” do tal “centro pragmático” – Cavaco Silva personificou com sucesso essa “fome de poder” durante 20 anos, 10 no Governo e outros 10 na Presidência. Ramalho Eanes esteve 10 anos em Belém, mas depois a tentativa de entrar na vida partidária com o Partido Renovador Democrático – apesar de inicialmente bem sucedida – revelou-se um fiasco. Quanto ao marinheiro Gouveia e Melo, pode perder ou não as graças do mar.

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