OPINIÃO
Pedro Pichardo e essa coisa chamada nação
Os portugueses que aplaudem com entusiasmo a camisola
verde e vermelha, independentemente do homem que a enverga, percebem muito mais
de teoria política do que todos os xenofobozinhos juntos.
João Miguel
Tavares
7 de Agosto de
2021, 0:00
https://www.publico.pt/2021/08/07/opiniao/opiniao/pedro-pichardo-chamada-nacao-1973293
Em 1985, o
historiador Eric J. Hobsbawm proferiu uma série de conferências em Belfast que
depois reuniu num livro chamado Nações e Nacionalismo desde 1780 (há uma edição
brasileira na editora Paz e Terra). Na introdução, Hobsbawm imagina um
historiador extraterrestre a chegar a uma Terra devastada por um apocalipse
nuclear – eram os anos 80… – e a concluir que, sem entender o significado do
termo “nação”, “os últimos dois séculos da história humana do planeta Terra são
incompreensíveis”. E são mesmo.
Se lhe
perguntarem no café ou num concurso de televisão qual a data em que foi fundada
a nação portuguesa, por favor, não responda 1143, porque a pergunta mistura
dois conceitos separados por 700 anos. Sim, o reino independente de Portugal
nasceu no século XII, mas a ideia de nação, como hoje a concebemos – um
território e um povo com tradições, interesses e aspirações comuns, tornados
cidadãos pela tutela de um poder central e a viver sob um mesmo regime político
–, é uma criação do século XIX. Foi esse o século da construção das nações; o
século em que o poder simbólico do rei (e, em última análise, a sua
legitimidade) foi ultrapassado pelo poder simbólico do Estado-pátria-nação.
A tese central
das lições de Hobsbawm é que as grandes nações do continente europeu – França,
Alemanha, Itália – foram construídas de cima para baixo. Ou seja: existiu um
Estado francês, alemão e italiano antes de existir um povo francês, alemão ou
italiano. Aliás, no que diz respeito a uma discussão recorrente em Portugal,
relacionada com o nosso atraso no processo de alfabetização, há quem defenda
que a explicação para esse enorme problema está precisamente na facilidade com
que a nação portuguesa foi construída no século XIX. Ao contrário do que
aconteceu em França, onde só metade dos franceses falava francês por alturas da
revolução de 1789 (em Itália a percentagem era ainda mais baixa), em Portugal
não foi necessário alfabetizar para nacionalizar, pois já existia uma unidade
cultural, linguística e geográfica estável há séculos. Os Estados da Europa
central, ao contrário de nós, precisaram de instituições mais fortes e mais
eficientes para conseguirem construir as suas nações.
Ironia das
ironias: o nacionalismo, que hoje é entendido como uma ideia conservadora e de
direita, no século XIX era uma ideia revolucionária e de esquerda.
Nacionalistas eram aqueles que sobrepunham a autoridade da pátria à autoridade
do rei. E reparem como Portugal, ao subscrever a independência das colónias
após o 25 de Abril, decidiu de forma unilateral expropriar todos os cidadãos
dos antigos territórios ultramarinos – com excepção dos brancos e dos goeses –
da sua nacionalidade portuguesa, sem eles serem tidos nem achados. Parece-vos
uma medida de esquerda ou de direita?
As discussões
acerca de quão português é Pedro Pichardo são fascinantes por causa de tudo
isto. Como notou Nuno Garoupa, Pichardo irrita a extrema-direita porque não
nasceu em Guimarães e tropeça no hino, e irrita a extrema-esquerda porque fugiu
do paraíso cubano. Só que a uns e a outros escapa isto: todas as nações são
artifícios, construídos e definidos pela força da lei. Cada nação é um clube, e
só um tonto impediria de entrar nele os homo sapiens excepcionais. Os
portugueses que aplaudem com entusiasmo a camisola verde e vermelha,
independentemente do homem que a enverga, percebem muito mais de teoria
política do que todos os xenofobozinhos juntos.


Sem comentários:
Enviar um comentário