sábado, 18 de junho de 2022

A adesão da Ucrânia à UE e a estranha posição portuguesa

 



OPINIÃO

A adesão da Ucrânia à UE e a estranha posição portuguesa

 

Há dois meses que Portugal, pela voz do primeiro-ministro, se mostra altamente ambíguo quanto à perspectiva europeia a dar à Ucrânia. Portugal arvorou-se mesmo no campeão dos Estados-membros mais reticentes e relutantes. Isto pode agradar aos líderes do eixo franco-alemão, mas não serve os interesses portugueses nem europeus

 

Paulo Rangel

16 de Junho de 2022, 7:00

https://www.publico.pt/2022/06/16/opiniao/opiniao/adesao-ucrania-ue-estranha-posicao-portuguesa-2010196

 

1. A ideia da adesão da Ucrânia à União Europeia afigurava-se totalmente implausível antes da data crítica de 24 de Fevereiro. Até os casos da Geórgia ou da Moldávia, que se haviam por altamente improváveis, eram considerados mais plausíveis. A Ucrânia, sendo encarada pela Rússia como a “jóia da coroa”, teria, na melhor das hipóteses, o destino da Finlândia do pós-guerra. Ninguém desejava a sua adesão; ninguém contava com ela. Esta é, pois, a grande mudança trazida pela guerra de agressão da Rússia: hoje todos se confessam apoiantes de uma integração europeia plena. O desígnio europeu da Ucrânia é agora inquestionavelmente realista e atingível. A Ucrânia formalizou entretanto o seu pedido de adesão. Decorrido os passos preliminares, a Comissão Europeia vai emitir a sua opinião, que será decerto positiva, ficando nas mãos do Conselho Europeu de 23-24 de Junho o destino da concessão do estatuto de “país candidato”.

 

2. O que está por ora em causa é apenas e só a atribuição do “estatuto de país candidato”. Atenta a vontade manifesta dos ucranianos e da sua liderança, o apoio das opiniões públicas europeias e o impacto brutal que uma recusa teria no desenrolar da guerra, é simplesmente impensável não atribuir tal estatuto à Ucrânia. É evidente que esta decisão tem implicações sérias para a UE e para a sua política de alargamento. Dizer sim à Ucrânia obrigará a dizer sim aos pedidos moldavo e georgiano, já em simultâneo ou num prazo curtíssimo. E cria também um problema nos Balcãs Ocidentais, onde há quatro Estados já candidatos, com negociações problemáticas ou ainda sem começar, e dois Estados, precisamente à espera do estatuto de país candidato. Não por acaso, o Conselho Europeu de 23-24 de Junho é precedido por uma cimeira com os Estados balcânicos.

 

Dizer sim à Ucrânia obrigará a dizer sim à Moldova e Geórgia, em simultâneo ou num prazo curtíssimo. E cria um problema nos Balcãs Ocidentais, onde há quatro Estados já candidatos, com negociações problemáticas ou ainda sem começar, e dois Estados à espera do estatuto de candidatos

 

Seja como for, a resposta à Ucrânia não pode deixar de ser afirmativa. Há algo que muitos líderes europeus parecem não ter percebido: depois de 24 de Fevereiro, o mundo mudou. E sobretudo, o mundo mudou na Europa e para a Europa. Putin fez da UE a entidade geopolítica com que, bem ou mal, tantos sonharam e que ela, mal ou bem, tanto hesitou em ser. Uma entidade geopolítica tem de actuar geopoliticamente. Acabou o tempo, tão querido aos alemães e não só, da pura geoeconomia.

 

3. Conceder o estatuto de país candidato não é garantir nem aceitar a adesão. São muitos os líderes, aí incluído António Costa, que lembram que os critérios de entrada são muito exigentes e que as negociações de adesão da Ucrânia vão demorar décadas. Macron até veio propor a criação de uma nova organização – a Comunidade Política Europeia –, com vínculos mais lassos, para acolher todos os Estados que não estão (ou não estão ainda) em condições de se juntar à UE. Mais uma vez, as lideranças dos Estados europeus parecem não ter assimilado a mudança coperniciana que sofreu a política internacional. Quando a guerra terminar, será insustentável pôr a Ucrânia ou outros Estados 15 ou 20 anos à espera para se tornarem membros de pleno direito da UE. Isso seria pôr a Ucrânia numa espécie de “corredor da morte”, dando a Putin e ao Kremlin uma vitória ao retardador.

 

Quando a guerra terminar, será insustentável pôr a Ucrânia ou outros Estados 15 ou 20 anos à espera para se tornarem membros de pleno direito da UE. Isso seria pôr a Ucrânia numa espécie de “corredor da morte”, dando a Putin e ao Kremlin uma vitória ao retardador

 

A UE terá mesmo de repensar e revisitar os critérios de adesão, reflectindo justamente a sua “nova natureza” geopolítica. Terá seguramente de jogar com a flexibilidade da integração a várias velocidades, mas não poderá denegar a pertença plena a estes novos pretendentes. A integração do Cáucaso e dos Balcãs tem de passar a ser vista como uma oportunidade e não mais como uma ameaça. Esta oportunidade consubstancia mesmo a primeira possibilidade da afirmação geopolítica da União como actor global, que já chega aos Urais. Essa integração só ocorrerá depois de finda a guerra, mas pode ser muito facilitada por um plano de reconstrução, que será também uma “reconstrução institucional” (removendo muito dos óbices hoje subsistentes). Em rigor, a consideração geopolítica nunca foi alheia aos processos de alargamento. A Grécia, que se democratizou ao mesmo tempo que os Estados ibéricos, logrou integrar-se seis anos antes, para fazer face ao seu isolamento geopolítico. Oito dos Estados da cortina de ferro, apesar de estarem em condições bem diversas, entraram todos em simultâneo em 2004, também por considerações tipicamente geopolíticas.

 

4. No início da guerra, salientei em várias ocasiões que o Governo português andou bem, na condenação categórica, na solidariedade inequívoca, no alinhamento com a UE e a NATO. Mas há mais de dois meses que, em diversos fóruns, venho alertando para uma inflexão do Governo português, merecedora de crítica forte e rotunda. Desde essa altura que chamo a atenção para que Portugal, designadamente pela voz do primeiro-ministro, se mostra altamente ambíguo quanto à perspectiva europeia a dar à Ucrânia. Portugal arvorou-se mesmo no campeão dos Estados-membros mais reticentes e relutantes. Nesta como noutras matérias, o Governo limita-se a seguir Macron e a linha política europeia da França, sem qualquer dissonância ou autonomia. Em certas alturas, Portugal parece até a lebre que Macron lançou para fazer vingar as suas teses e pretensões.

 

Nesta como noutras matérias, o Governo limita-se a seguir Macron e a linha política europeia da França, sem qualquer dissonância ou autonomia

 

Esta relutância lusa pode agradar aos líderes do eixo franco-alemão, mas não serve nem os interesses portugueses nem europeus. Portugal deveria estar ao lado dos países mais atlantistas da UE, que não se equivocam quanto ao destinou europeu da Ucrânia nem quanto aos sinais a dar à Rússia. Afinal, o que ganha Portugal e a Europa com este seguidismo da França, agora apresentado com o argumento do altruísmo que visa não iludir nem decepcionar os heróis ucranianos? Para não os decepcionar mais tarde, trata apenas de os decepcionar já e imediatamente. Portugal, pela tradição atlantista e pelo empenho europeu, deveria ser dos primeiros a compreender a profunda mutação da ordem europeia e global. Mas sim, é verdade, na nossa história, há também a saga e a sina dos Velhos do Restelo.

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