OPINIÃO
A adesão da Ucrânia à UE e a estranha posição portuguesa
Há dois meses que Portugal, pela voz do
primeiro-ministro, se mostra altamente ambíguo quanto à perspectiva europeia a
dar à Ucrânia. Portugal arvorou-se mesmo no campeão dos Estados-membros mais
reticentes e relutantes. Isto pode agradar aos líderes do eixo franco-alemão,
mas não serve os interesses portugueses nem europeus
Paulo Rangel
16 de Junho de
2022, 7:00
1. A ideia da
adesão da Ucrânia à União Europeia afigurava-se totalmente implausível antes da
data crítica de 24 de Fevereiro. Até os casos da Geórgia ou da Moldávia, que se
haviam por altamente improváveis, eram considerados mais plausíveis. A Ucrânia,
sendo encarada pela Rússia como a “jóia da coroa”, teria, na melhor das
hipóteses, o destino da Finlândia do pós-guerra. Ninguém desejava a sua adesão;
ninguém contava com ela. Esta é, pois, a grande mudança trazida pela guerra de
agressão da Rússia: hoje todos se confessam apoiantes de uma integração
europeia plena. O desígnio europeu da Ucrânia é agora inquestionavelmente
realista e atingível. A Ucrânia formalizou entretanto o seu pedido de adesão.
Decorrido os passos preliminares, a Comissão Europeia vai emitir a sua opinião,
que será decerto positiva, ficando nas mãos do Conselho Europeu de 23-24 de
Junho o destino da concessão do estatuto de “país candidato”.
2. O que está por
ora em causa é apenas e só a atribuição do “estatuto de país candidato”. Atenta
a vontade manifesta dos ucranianos e da sua liderança, o apoio das opiniões
públicas europeias e o impacto brutal que uma recusa teria no desenrolar da
guerra, é simplesmente impensável não atribuir tal estatuto à Ucrânia. É
evidente que esta decisão tem implicações sérias para a UE e para a sua
política de alargamento. Dizer sim à Ucrânia obrigará a dizer sim aos pedidos
moldavo e georgiano, já em simultâneo ou num prazo curtíssimo. E cria também um
problema nos Balcãs Ocidentais, onde há quatro Estados já candidatos, com
negociações problemáticas ou ainda sem começar, e dois Estados, precisamente à
espera do estatuto de país candidato. Não por acaso, o Conselho Europeu de
23-24 de Junho é precedido por uma cimeira com os Estados balcânicos.
Dizer sim à Ucrânia obrigará a dizer sim à Moldova e
Geórgia, em simultâneo ou num prazo curtíssimo. E cria um problema nos Balcãs
Ocidentais, onde há quatro Estados já candidatos, com negociações problemáticas
ou ainda sem começar, e dois Estados à espera do estatuto de candidatos
Seja como for, a
resposta à Ucrânia não pode deixar de ser afirmativa. Há algo que muitos
líderes europeus parecem não ter percebido: depois de 24 de Fevereiro, o mundo
mudou. E sobretudo, o mundo mudou na Europa e para a Europa. Putin fez da UE a
entidade geopolítica com que, bem ou mal, tantos sonharam e que ela, mal ou
bem, tanto hesitou em ser. Uma entidade geopolítica tem de actuar
geopoliticamente. Acabou o tempo, tão querido aos alemães e não só, da pura
geoeconomia.
3. Conceder o
estatuto de país candidato não é garantir nem aceitar a adesão. São muitos os
líderes, aí incluído António Costa, que lembram que os critérios de entrada são
muito exigentes e que as negociações de adesão da Ucrânia vão demorar décadas.
Macron até veio propor a criação de uma nova organização – a Comunidade
Política Europeia –, com vínculos mais lassos, para acolher todos os Estados
que não estão (ou não estão ainda) em condições de se juntar à UE. Mais uma
vez, as lideranças dos Estados europeus parecem não ter assimilado a mudança
coperniciana que sofreu a política internacional. Quando a guerra terminar,
será insustentável pôr a Ucrânia ou outros Estados 15 ou 20 anos à espera para
se tornarem membros de pleno direito da UE. Isso seria pôr a Ucrânia numa
espécie de “corredor da morte”, dando a Putin e ao Kremlin uma vitória ao
retardador.
Quando a guerra terminar, será insustentável pôr a
Ucrânia ou outros Estados 15 ou 20 anos à espera para se tornarem membros de
pleno direito da UE. Isso seria pôr a Ucrânia numa espécie de “corredor da
morte”, dando a Putin e ao Kremlin uma vitória ao retardador
A UE terá mesmo
de repensar e revisitar os critérios de adesão, reflectindo justamente a sua
“nova natureza” geopolítica. Terá seguramente de jogar com a flexibilidade da
integração a várias velocidades, mas não poderá denegar a pertença plena a
estes novos pretendentes. A integração do Cáucaso e dos Balcãs tem de passar a
ser vista como uma oportunidade e não mais como uma ameaça. Esta oportunidade
consubstancia mesmo a primeira possibilidade da afirmação geopolítica da União
como actor global, que já chega aos Urais. Essa integração só ocorrerá depois
de finda a guerra, mas pode ser muito facilitada por um plano de reconstrução,
que será também uma “reconstrução institucional” (removendo muito dos óbices
hoje subsistentes). Em rigor, a consideração geopolítica nunca foi alheia aos
processos de alargamento. A Grécia, que se democratizou ao mesmo tempo que os
Estados ibéricos, logrou integrar-se seis anos antes, para fazer face ao seu
isolamento geopolítico. Oito dos Estados da cortina de ferro, apesar de estarem
em condições bem diversas, entraram todos em simultâneo em 2004, também por
considerações tipicamente geopolíticas.
4. No início da
guerra, salientei em várias ocasiões que o Governo português andou bem, na
condenação categórica, na solidariedade inequívoca, no alinhamento com a UE e a
NATO. Mas há mais de dois meses que, em diversos fóruns, venho alertando para
uma inflexão do Governo português, merecedora de crítica forte e rotunda. Desde
essa altura que chamo a atenção para que Portugal, designadamente pela voz do
primeiro-ministro, se mostra altamente ambíguo quanto à perspectiva europeia a
dar à Ucrânia. Portugal arvorou-se mesmo no campeão dos Estados-membros mais
reticentes e relutantes. Nesta como noutras matérias, o Governo limita-se a seguir
Macron e a linha política europeia da França, sem qualquer dissonância ou
autonomia. Em certas alturas, Portugal parece até a lebre que Macron lançou
para fazer vingar as suas teses e pretensões.
Nesta como noutras matérias, o Governo limita-se a seguir
Macron e a linha política europeia da França, sem qualquer dissonância ou
autonomia
Esta relutância
lusa pode agradar aos líderes do eixo franco-alemão, mas não serve nem os
interesses portugueses nem europeus. Portugal deveria estar ao lado dos países mais
atlantistas da UE, que não se equivocam quanto ao destinou europeu da Ucrânia
nem quanto aos sinais a dar à Rússia. Afinal, o que ganha Portugal e a Europa
com este seguidismo da França, agora apresentado com o argumento do altruísmo
que visa não iludir nem decepcionar os heróis ucranianos? Para não os
decepcionar mais tarde, trata apenas de os decepcionar já e imediatamente.
Portugal, pela tradição atlantista e pelo empenho europeu, deveria ser dos
primeiros a compreender a profunda mutação da ordem europeia e global. Mas sim,
é verdade, na nossa história, há também a saga e a sina dos Velhos do Restelo.


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