Invasão
chinesa
ANABELA CAMPOS
ISABEL VICENTE
EXPRESSO / 26-11-2016
A
China está em Portugal como em nenhum país do Ocidente. E controla
sectores estratégicos como a energia, e tão diversos como a saúde
ou os transportes aéreos. Foram a grande novidade da onda de vendas
pós-troika e já ultrapassaram Angola como grande investidor. Querem
ter um pé na base das Lajes
A 26 de setembro, às
20h15, o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, aterrou na base das
Lajes, em Angra do Heroísmo, juntamente com a mulher e oito membros
do seu Governo. O objetivo era preparar a visita de Estado de António
Costa à China, durante a qual o primeiro-ministro português seria
recebido ao mais alto nível, com direito a uma reunião com o
Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, no Palácio do
Povo, em Pequim. Portugal está definitivamente na rota de
investimento da China, a segunda maior economia do mundo, liderada
por um Presidente empenhado em reconstruir o Império do Meio e em
expandir o mercado para as suas empresas.
Era a terceira vez
em quatro anos que o primeiro-ministro ou o Presidente da China
pisavam a base das Lajes, concessionada aos Estados Unidos da
América. Não se trata de uma mera coincidência a passagem dos
líderes chineses nas Lajes nos últimos anos, é também um sinal de
afirmação da influência chinesa no Atlântico, defende Miguel
Monjardino, académico e especialista em geopolítica e
geoestratégia.
Li Keqiang iria
pernoitar na Terceira, isso já se sabia, o que criou espanto foi ter
passeado com a mulher no centro de Angra e assistido a um concerto na
Praça Velha. Tocava a Orquestra de Sopros da Ilha Terceira e os
Myrica Faya. Porque o fez? Miguel Monjardino responde: “É muito
interessante. Sente-se seguro para o fazer. E, de certa maneira, terá
querido perceber como é que os açorianos reagiam à sua presença.”
Monjardino acredita que Pequim vai solicitar a passagem regular pela
base das Lajes, como tem feito quando viaja para o continente
americano, mas está fora de questão um uso militar. Quando muito,
admite, Portugal e China poderão estabelecer acordos que envolvam os
Açores para as áreas de investigação marítima e logística, um
cenário que o Governo está a equacionar.
A China é o novo
grande investidor em Portugal e foi a novidade da onda de vendas que
varreu o país após a entrada da troika. Está, em termos de
perceção, a assumir papel que antes era atribuído a Angola. E a
estender-se a domínios inesperados, como, por exemplo, os media. Tem
comprado das melhores e mais lucrativas empresas portuguesas.
TROIKA ABRE A PORTA
A grande investida
chinesa iniciou-se em 2011, com o país sob intervenção da troika.
A China está a internacionalizar as suas empresas e Portugal estava
endividado e ávido de dinheiro. Desde então os investidores
chineses já aplicaram em Portugal €12,5 mil milhões, mais do que
o montante arrecadado com as privatizações naquele período (€9,5
mil milhões). Até aí o investimento direto era irrisório: um ano
antes de rebentar a crise financeira mundial, em 2007, situava-se nos
€2,2 milhões e veio sempre a cair até ao investimento na EDP.
A elétrica
presidida por António Mexia foi a porta de entrada: saiu o Estado
português entrou o chinês. Pouco tempo depois aconteceu o mesmo com
a REN. E hoje a China está em Portugal como em nenhum outro país do
Ocidente, com uma presença forte em áreas estratégicas, como a
energia, e uma dispersão significativa em vários domínios da
economia, que vão desde a saúde, os seguros, o imobiliário, o
turismo e, entre outros, a aviação e os media. Quase nada lhes
escapa.
Em alta. António
Costa, aqui com o primeiro-ministro Li Keqiang, foi recebido ao mais
alto nível na sua recente viagem oficial à China. Portugal tem sido
um dos grandes destinos do investimento chinês na Europa
Em alta. António
Costa, aqui com o primeiro-ministro Li Keqiang, foi recebido ao mais
alto nível na sua recente viagem oficial à China. Portugal tem sido
um dos grandes destinos do investimento chinês na Europa
Há capital chinês
na TAP (HNA), na Fidelidade (Fosun), na Luz Saúde (Fosun), na
comunicação social (entraram na Global Notícias através da KNJ
Investment Limited), no turismo e no imobiliário. Mas não só. A
China poderá estar à beira de se tornar o grande acionista da banca
privada portuguesa. Será uma cartada de mestre, a preços
convidativos, e a colocação de mais um pé na banca europeia. O
grupo privado chinês Fosun está desde o verão em negociações
para entrar no BCP, onde pretende ficar com até 30% do capital. E o
Minsheng Financial Group é um dos cinco candidatos à compra do Novo
Banco. Já é chinês o antigo BES Investimento, foi comprado pela
Haitong no final de 2014. Se as operações em curso tiverem sucesso,
os investidores ficarão a controlar cerca de 30% do mercado
financeiro português.
ESTADO CHINÊS
SUBSTITUI O PORTUGUÊS
Portugal foi eleito
há dez anos pelos chineses como um dos quatro parceiros estratégicos
da China no mundo. Uma aposta que já começou a dar frutos. Há
relações históricas que se retomaram. A China sente-se bem
acolhida, e essa é também uma das razões porque têm investido em
força. O Governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas estendeu-lhe
a passadeira, quando deixou empresas estatais chinesas tomar o
controlo do sector energético. A EDP e a rede de transporte de
energia portuguesa, a REN, são hoje detidas maioritariamente por
duas elétricas chinesas, a China Three Gorges e a State Grid. O
Estado português encaixou com estas vendas mais de três mil milhões
de euros — €2,7 mil milhões por 21,35% da EDP e €387,15
milhões por 29,9% da REN. Mas entregou ao Estado chinês um
monopólio natural (REN) e uma empresa que tem tido nos últimos anos
praticamente mil milhões de euros de lucro (EDP).
O controlo do sector
energético por uma empresa estatal estrangeira, especialmente a
infraestrutura de transporte, causa arrepios, atingindo, aliás, todo
o espectro político português da esquerda à direita. Mais nenhum
país na Europa abriu mão do controlo da distribuição e transporte
de energia. Portugal fê-lo, e o Governo chinês sente-se agradecido.
E pode ir mais além. Na investigação para o livro “Negócios da
China” percebemos que a presença de capital chinês no sector
energético poderá não ficar por aqui e alargar-se à Galp.
Um antigo gestor da
petrolífera admite que a estatal chinesa Sinopec, já parceira da
Galp no Brasil, terá nos seus planos estender a sua participação a
Portugal. O facto de a Sonangol, acionista da Galp juntamente com
Américo Amorim, estar fragilizada pode abrir caminho para isso. Uma
hipótese que não é de excluir tendo em conta que uma das razões
que levou a China a comprar empresas portuguesas foi precisamente o
reforço da presença nos países da lusofonia, onde Pequim tem uma
importante palavra a dizer. A Galp está presente em Angola,
Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé. Fonte
governamental adianta mesmo que os chineses, há anos a despejar
milhões de euros em negócios em África, muitas vezes sem o
esperado retorno, já reconheceram que poderão ter vantagem em estar
naqueles mercados com empresas e gestores que os conhecem há
décadas.
A lusofonia, embora
não seja o único, é de facto um dos factores que tem atraído os
investidores chineses, como reconhece Raquel Vaz Pinto, investigadora
do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade
de Lisboa. “Portugal tem uma grande vantagem na perspetiva da
China, as possíveis parcerias com o mercado lusófono, sobretudo
Angola e Moçambique, e também o Brasil, embora este caso seja mais
complexo. Há também Macau, que passou a ser uma espécie de placa
giratória e uma porta de entrada, favorecendo Portugal nesta
circunstância de país europeu e lusófono”. Mas não passa apenas
por aí. “Portugal tem também empresas com um valor tecnológico
apetecível, como é o caso da EDP Renováveis. E hoje a China dá
uma importância muito grande ao crescimento sustentável. Uma das
maiores fontes de protesto está relacionada com as terras de cultivo
e os problemas ambientais”, avança a investigadora. Raquel Vaz
Pinto dá argumentos para a entrada, por exemplo, na Luz Saúde. “A
China, por causa da antiga política de um filho único, tem hoje uma
população envelhecida, e isso também ajuda a perceber o seu
interesse pelo sector da saúde. Esta é claramente uma área em que
a China está à procura das melhores práticas.”
CONCORREM PARA
GANHAR
Quando sinalizam o
interesse por um ativo, os investidores chineses raramente perdem.
Saem quase sempre vencedores. Isso aconteceu na privatização da
Fidelidade, na venda do Hospital da Luz, na EDP e na REN. Na verdade,
ofereceram sempre o preço mais alto, e isso, foi determinante. Para
os menos críticos à chamada invasão de capital chinês em empresas
portuguesas, há reconhecimento, uma vez que consideram que a China
deu a mão a Portugal quando o país mais precisava. Na realidade, os
milhões injetados pelas compras dos chineses foram uma importante
almofada numa altura em que o país tinha o acesso aos mercados
limitado e não havia fortes candidatos às privatizações. Já os
mais críticos dizem que o investimento chinês não traz valor
acrescentado, como foi o caso de Fernando Ulrich, presidente do BPI,
que considera Portugal como “o porta-aviões da China para entrar
na Europa”. “Ninguém fica escandalizado com o facto de o
presidente da Fosun ser membro do comité central do Partido
Comunista Chinês e as empresas sejam comandadas pelo Estado e depois
é aqui d’el rei quando os angolanos compram qualquer coisa em
Portugal, argumentando-se que não são transparentes”, comentou
Ulrich, em abril em 2015.
POUCO MUDA, PARA
JÁ...
Uma coisa é certa,
a entrada dos chineses nas empresas portuguesas tem sido feita de
forma discreta. Mantêm os gestores ao comando das empresas que
controlam. António Mexia, continua como presidente da EDP e Jorge
Magalhães Correia da Fidelidade. Isabel Vaz lidera o destino da Luz
Saúde. Até agora as empresas que compraram não fizeram cortes,
mantêm o número de trabalhadores e estão a expandir os negócios.
Há pequenas mudanças, claro. Os chineses apreciam a discrição.
António Mexia, por exemplo, passou a ter uma agenda mediática mais
contida. E ultimamente a EDP tem usado contadores de energia
fabricados na China. É, contudo, ainda cedo para perceber o
verdadeiro impacto da entrada de capital chinês nas grandes
empresas, nomeadamente ao nível do investimento e da criação de
emprego qualificado. E é preciso não esquecer que a paciência é
um dos trunfos dos chineses.
Se Passos Coelho
abriu a porta, António Costa manteve-a aberta. Portugal é o quinto
maior destino do investimento chinês na Europa, e há uma nova onda
de compras a caminho, onde se destacam, como já referido, o BCP e,
provavelmente, o Novo Banco. Na mira estão agora também turismo e
agricultura e a criação de uma plataforma logística no Porto de
Sines, que tem suscitado interesse da China. O convite ao
investimento chinês faz-se sentir também nos corredores da
diplomacia. O embaixador da China em Portugal, Cau Run, esteve há
pouco mais de um ano no Porto de Sines numa visita guiada. Os
objetivos foram claros: mostrar a competitividade do porto e a sua
localização geoestratégica, um excelente ponto de entrada na
Europa. A capacidade de expansão do Porto de Sines, sobretudo na
área afeta aos contentores, também foi abordada, já que poderá
ser aqui instalada uma plataforma logística.
As relações
diplomáticas com a China atravessam um momento de ouro. E não deixa
de merecer destaque o anúncio de três voos diretos semanais de
Lisboa para Pequim a partir de 2017. Um estimulo a um maior fluxo
comercial e turístico entre os dois países. 2016 deverá fechar com
a visita de 180 mil turistas chineses, um recorde absoluto.
A fase de
investimento em grandes empresas, algumas monopolistas acabou, já
não há praticamente mais nada para privatizar, e agora a palavra de
ordem é diversificar. E foi esse o recado que António Costa deixou
na visita à China.
CHINA À DISPUTA COM
ANGOLA?
Coincidência ou
não, a verdade é que a onda de investimento chinês segue um
roteiro com semelhanças ao executado no passado pelos angolanos, que
entraram primeiro no sector da energia e depois foram alastrando os
seus domínios para a banca, os media, o imobiliário e também para
as pequenas e médias empresas do sector produtivo. Aproveitando a
debilidade dos investidores angolanos, já sem o poder que os
estratosféricos preços do petróleo lhe garantiam, os investidores
chineses estão a substituir os investidores angolanos como grandes
compradores. E com vantagem sobre estes, tem entrado a preços mais
atraentes.
Negócio. A compra
da EDP pela estatal Three Gorges foi a porta de entrada do
investimento chinês em Portugal e marcou o início de uma nova era
Negócio. A compra
da EDP pela estatal Three Gorges foi a porta de entrada do
investimento chinês em Portugal e marcou o início de uma nova era
NUNO FOX
Não é só como o
novo grande investidor que a China está a dar nas vistas. É curioso
como os empresários chineses estão a entrar em empresas onde os
angolanos já se encontram. A Fosun pode vir a tornar-se o maior
acionista do BCP, destronando a Sonangol. Há capital chinês na
Global Notícias, até agora controlada por angolanos, e é grande a
especulação sobre o interesse dos chineses na Galp. “A China é
um importante parceiro comercial de Angola. Com a descida dos preços
do petróleo, os angolanos perderam o fulgor, passaram a ter de
partilhar participações em determinados negócios, e a China está
a assumir posições que antes eram dos angolanos”, sublinha Raquel
Vaz Pinto. Contudo, a investigadora afirma que é prematuro tirar
conclusões sobre o investimento angolano em Portugal ou dizer que
esta entrada dos chineses é coordenada como o Governo de Angola.
RECIPROCIDADE E O
DEBATE EUROPEU
Há um grande debate
na Europa face ao investimento direto chinês, a que Portugal tem
passado ao lado. O Reino Unido e a Alemanha, os novos grandes
destinos dos investimentos chineses, estão a torcer o nariz à
entrada de Pequim nos sectores estratégicos. Rebentou há poucas
semanas em Berlim a polémica por causa da intenção de compra da
grande tecnológica alemã Kuka pela chinesa Midea Group. O Governo
alemão opôs-se. Começam a criar-se anticorpos na maior economia da
Europa. É que nos primeiros seis meses do ano, os chineses
investiram 10,8 mil milhões de dólares na Alemanha na compra de 37
empresas, e uma grande parte deste investimento destinou-se a
adquirir tecnológicas, a grande coqueluche dos investidores do
Império do Meio.
A chanceler alemã,
Angela Merkel, quer reciprocidade. A Alemanha é a grande exportadora
da Europa, e a China é muito protecionista, predomina ainda o
capitalismo de Estado. “A reciprocidade é o nó górdio. Há um
conjunto de sectores na economia chinesa ainda controlados pelo
Estado. Há uma série de questões a analisar sobre o futuro,
nomeadamente, o que irá ser a evolução da elite chinesa. Tem
havido uma centralização do poder no presidente. Ji Xinping é cada
vez mais olhado como um imperador, há já quem lhe chame o
presidente imperial”, alerta Raquel Vaz Pinto. A China ainda não é
uma pura economia de mercado e isso levanta muitas questões.
Portugal encontra-se na fase de namoro, mas, não tardará, terá
também de entrar neste debate.
As autoras acabam de
publicar
na Oficina do Livro “Negócios da China”
Artigo publicado na
edição do EXPRESSO de 19 de novembro de 2016