OPINIÃO
Abriu a época da caça...
Acaba de abrir a estação da caça à lei que cria o crime
de enriquecimento injustificado e ocultação de riqueza. O espectáculo já
começou e tenho as maiores dúvidas que o dinheiro não continue a cair do céu.
Francisco
Teixeira da Mota
23 de Abril de
2021, 0:15
https://www.publico.pt/2021/04/23/opiniao/noticia/abriu-epoca-caca-1959652
Vamos ter a
possibilidade de ver ao vivo como vai ser torpedeado, estraçalhado e esvaziado
de qualquer eventual eficácia que pudesse vir a ter o projecto de lei do Bloco
de Esquerda que cria o crime de enriquecimento injustificado e ocultação de
riqueza.
Em primeiro
lugar, sempre com eficácia garantida no protelamento de qualquer medida que
possa pôr em causa a sossegada vida que levamos, iremos ouvir o clássico
argumento que não é bom legislar “a quente”, isto é, aprovar medidas
legislativas em virtude de um concreto caso judicial. Um argumento cheio de bom
senso, sem dúvida, só que neste caso a Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, que está em vigor nosso país há quase 14 anos, recomenda expressamente
a “adopção de medidas legislativas (...) para classificar como infracção penal,
quando praticado intencionalmente, o enriquecimento ilícito”. Como é possível,
com seriedade, afirmar que é legislar “a quente” procurar concretizar uma
obrigação decorrente de um tratado internacional que subscrevemos há 14 anos? E
após as inúmeras tentativas legislativas frustradas e das discussões jurídicas
frustrantes a que temos assistido ao longo dos anos?
Outro argumento
que pode surgir para torpedear esta iniciativa é a intransigente defesa do
princípio à política o que é da política e à justiça o que é da justiça. Na
exposição dos motivos deste projecto, o Bloco de Esquerda refere que o mesmo
surge “na senda da proposta apresentada pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses
(ASJP)". Eis um pecado original neste projecto de lei: no fundo, são os
juízes a meterem-se na política e não lhes cabe apresentarem propostas
legislativas sob pena de violação do sacrossanto princípio da separação de
poderes. A ver vamos se esta objecção de princípio, embora não assumida
publicamente, não será discretamente rosnada.
Mas de que trata
este projecto de lei? Uma vez que o Tribunal Constitucional afastou a
criminalização propriamente dita do enriquecimento ilícito, a proposta da ASJP
vai por outro lado: para além do dever de declaração de rendimentos e bens que
já existe, os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos passariam
a ter um dever de declaração e justificação dos aumentos patrimoniais
especialmente relevantes que ocorram no exercício do cargo e durante os anos
seguintes e, no caso de os não declararem nem justificarem, com a intenção de
os ocultar, serão passíveis de ser punidos com prisão de um a cinco anos.
Não se pense que o declarado apoio do primeiro-ministro à
proposta da ASJP e a boa vontade declarada dos partidos parlamentares garante
seja o que for
São,
visivelmente, tímidas alterações legislativas e, provavelmente, o projecto será
também estraçalhado por isso mesmo: depois de se ter inviabilizado uma
criminalização mais frontal e dura do enriquecimento injustificado, esta
tentativa será atacada e posta em causa por constituir apenas mais legislação
inútil e ineficaz. Mas a ASJP já respondeu a este argumento: “A persistir-se
nesse caminho, de afirmar que não são necessárias mais leis mas sim, apenas,
mais meios e eficácia, continuarão a repetir-se no futuro, com toda a
probabilidade, casos de exibição imoral de património incongruente e não
declarado, por pessoas que exerceram altas funções públicas, sem que se
chegue a descobrir a fonte desse enriquecimento, e daqui a 30 anos a sociedade
estará exactamente na mesma, a discutir a milésima estratégia
anticorrupção e a necessidade de apostar no reforço dos meios.”
Não se pense que
o declarado apoio do primeiro-ministro à proposta da ASJP e a boa vontade
declarada dos partidos parlamentares garante seja o que for. Apesar da modéstia
do projecto, outros argumentos, cheios de inatacáveis princípios, vão,
naturalmente, surgir na arena pública vindos dos mais diversos quadrantes. E,
claro, na Assembleia da República o agendamento e o andamento deste projecto
serão, também, esclarecedores das reais vontades dos dirigentes partidários.
Na verdade, acaba
de abrir a estação da caça à lei que cria o crime de enriquecimento
injustificado e ocultação de riqueza. Vamos, seguramente, ter muitos caçadores,
furtivos ou não, a querer abater este projecto legal. O espectáculo já começou
e, sinceramente, tenho as maiores dúvidas que o dinheiro não continue a cair do
céu.

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