sexta-feira, 23 de abril de 2021

Abriu a época da caça...

 


OPINIÃO

Abriu a época da caça...

 

Acaba de abrir a estação da caça à lei que cria o crime de enriquecimento injustificado e ocultação de riqueza. O espectáculo já começou e tenho as maiores dúvidas que o dinheiro não continue a cair do céu.

 

Francisco Teixeira da Mota

23 de Abril de 2021, 0:15

https://www.publico.pt/2021/04/23/opiniao/noticia/abriu-epoca-caca-1959652

 

Vamos ter a possibilidade de ver ao vivo como vai ser torpedeado, estraçalhado e esvaziado de qualquer eventual eficácia que pudesse vir a ter o projecto de lei do Bloco de Esquerda que cria o crime de enriquecimento injustificado e ocultação de riqueza.

 

Em primeiro lugar, sempre com eficácia garantida no protelamento de qualquer medida que possa pôr em causa a sossegada vida que levamos, iremos ouvir o clássico argumento que não é bom legislar “a quente”, isto é, aprovar medidas legislativas em virtude de um concreto caso judicial. Um argumento cheio de bom senso, sem dúvida, só que neste caso a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que está em vigor nosso país há quase 14 anos, recomenda expressamente a “adopção de medidas legislativas (...) para classificar como infracção penal, quando praticado intencionalmente, o enriquecimento ilícito”. Como é possível, com seriedade, afirmar que é legislar “a quente” procurar concretizar uma obrigação decorrente de um tratado internacional que subscrevemos há 14 anos? E após as inúmeras tentativas legislativas frustradas e das discussões jurídicas frustrantes a que temos assistido ao longo dos anos?

 

Outro argumento que pode surgir para torpedear esta iniciativa é a intransigente defesa do princípio à política o que é da política e à justiça o que é da justiça. Na exposição dos motivos deste projecto, o Bloco de Esquerda refere que o mesmo surge “na senda da proposta apresentada pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP)". Eis um pecado original neste projecto de lei: no fundo, são os juízes a meterem-se na política e não lhes cabe apresentarem propostas legislativas sob pena de violação do sacrossanto princípio da separação de poderes. A ver vamos se esta objecção de princípio, embora não assumida publicamente, não será discretamente rosnada.

 

Mas de que trata este projecto de lei? Uma vez que o Tribunal Constitucional afastou a criminalização propriamente dita do enriquecimento ilícito, a proposta da ASJP vai por outro lado: para além do dever de declaração de rendimentos e bens que já existe, os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos passariam a ter um dever de declaração e justificação dos aumentos patrimoniais especialmente relevantes que ocorram no exercício do cargo e durante os anos seguintes e, no caso de os não declararem nem justificarem, com a intenção de os ocultar, serão passíveis de ser punidos com prisão de um a cinco anos.

 

Não se pense que o declarado apoio do primeiro-ministro à proposta da ASJP e a boa vontade declarada dos partidos parlamentares garante seja o que for

 

São, visivelmente, tímidas alterações legislativas e, provavelmente, o projecto será também estraçalhado por isso mesmo: depois de se ter inviabilizado uma criminalização mais frontal e dura do enriquecimento injustificado, esta tentativa será atacada e posta em causa por constituir apenas mais legislação inútil e ineficaz. Mas a ASJP já respondeu a este argumento: “A persistir-se nesse caminho, de afirmar que não são necessárias mais leis mas sim, apenas, mais meios e eficácia, continuarão a repetir-se no futuro, com toda a probabilidade, casos de exibição imoral de património incongruente e não declarado, por pessoas que exerceram altas funções públicas, sem que se chegue a descobrir a fonte desse enriquecimento, e daqui a 30 anos a sociedade estará exactamente na mesma, a discutir a milésima estratégia anticorrupção e a necessidade de apostar no reforço dos meios.”

 

Não se pense que o declarado apoio do primeiro-ministro à proposta da ASJP e a boa vontade declarada dos partidos parlamentares garante seja o que for. Apesar da modéstia do projecto, outros argumentos, cheios de inatacáveis princípios, vão, naturalmente, surgir na arena pública vindos dos mais diversos quadrantes. E, claro, na Assembleia da República o agendamento e o andamento deste projecto serão, também, esclarecedores das reais vontades dos dirigentes partidários.

 

Na verdade, acaba de abrir a estação da caça à lei que cria o crime de enriquecimento injustificado e ocultação de riqueza. Vamos, seguramente, ter muitos caçadores, furtivos ou não, a querer abater este projecto legal. O espectáculo já começou e, sinceramente, tenho as maiores dúvidas que o dinheiro não continue a cair do céu.

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