sábado, 24 de abril de 2021

A americanização do futebol europeu

 



ANÁLISE

A americanização do futebol europeu

 

Doze clubes tentaram liquidar o futebol europeu tal como o conhecemos. O dinheiro não é tudo. Quiseram jogar sem risco. Perder e ganhar, subir e descer são o segredo do grande jogo da bola.

 

Jorge Almeida Fernandes

24 de Abril de 2021, 7:10

https://www.publico.pt/2021/04/24/mundo/analise/americanizacao-futebol-europeu-1959838

 

A “superliga europeia de futebol” durou 48 horas. A rapidez da explosão deve-se à magnitude do desafio – o fim do futebol tal qual o conhecemos. O alcance da manobra ia muito para lá do dinheiro ou da busca de legitimação e prestígio. Tinha uma dimensão histórica e cultural: a americanização do futebol europeu. Foi, por dois dias, um problema geopolítico.

 

A operação não reproduzia as anteriores aventuras, como a tomada do poder por bilionários populistas, magnatas americanos, oligarcas russos, potentados árabes ou asiáticos. Os adeptos aplaudiam-nos desde que trouxessem fundos para comprar vedetas. Desta vez, tratava-se de uma mudança radical das regras do jogo e, por isso, os adeptos ingleses se revoltaram. O futebol não é só negócio, é também uma questão de identidade.

 

O projecto faz recordar outras tentativas de “reestruturação”, que remontam aos anos 1980. E o momento do “golpe” não foi casual. Pelo contrário, é a conjuntura que explica a magnitude da operação.

 

A pandemia da covid-19 subverteu a “indústria do futebol”. Fez cair os fluxos financeiros provocados pelos estádios vazios e pela quebra das receitas televisivas, colocando alguns dos maiores clubes numa dramática crise de liquidez ou, até, à beira da bancarrota. Isto permitiu a dramatização: Florentino Pérez, do Real Madrid, anunciou que o futebol morreria antes de 2024; Andrea Agnelli, da Juventus, clamou que a modalidade enfrentava uma “ameaça existencial”.

 

O “golpe” foi anulado por uma irresistível conjunção de forças. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, ameaçou os clubes ingleses com “medidas legislativas” drásticas. Os adeptos ensaiaram uma insurreição. Políticos europeus, como Emmanuel Macron ou Mario Draghi, condenaram a iniciativa. Johnson também ameaçou com uma “crise diplomática” o xeque Mansour, de Abu Dhabi, que logo retirou o Manchester City da iniciativa. O primeiro-ministro sabe que a Premier League inglesa se tornou na sua “primeira exportação cultural”.

 

Os seis ingleses (Manchester United, Manchester City. Arsenal, Chelsea, Tottenham e Liverpool), caíram como dominós. Na Itália, o mesmo fizeram o Milan e o Inter, seguidos pelo Atlético de Madrid, isolando os três irredutíveis do Continente: Real Madrid, Barcelona e Juventus. Da debandada sai humilhado o banco JP Morgan Chase, mentor financeiro da grande manobra.

 

O negócio era um maná para os “doze”. Cada sócio receberia, à cabeça, 3,5 mil milhões de euros a título de investimento-empréstimo do JP Morgan. E, graças às receitas televisivas, esperavam encaixar anualmente 10 mil milhões, muito acima dos 2.220 milhões que hoje rende a Liga dos Campeões.

 

 

A tentação americana

O projecto era muito mais do que isso: fazer um “clube fechado” nos moldes das ligas desportivas americanas. Os 15 eleitos (estavam reservados três lugares para o Bayern de Munique, o Borussia Dortmund e o Paris Saint-Germain) seriam os sócios eternos. Acolheriam anualmente e por bondade cinco outras equipas, por “mérito desportivo”. A maioria dos clubes históricos eram relegados para a periferia.

 

O modelo das ligas americanas – no basquetebol, no futebol americano ou no basebol – é o de um “cartel”, que se auto-regula e distribui as rendas da televisão. Uma liga é um clube fechado. As equipas são “marcas” que o proprietário pode mudar de cidade, consoante o mercado ou as vantagens fiscais. O que na América é normal na Europa seria um escândalo.

 

Este modelo exclui em absoluto uma ideia básica do futebol e outras modalidades: a promoção e a despromoção. O sistema é composto por uma pirâmide de divisões ou ligas, dos amadores à elite. Entres estes andares há sempre circulação. Um clube modesto pode sonhar chegar ao topo.

 

Outra consequência é a possibilidade de um clube modesto poder jogar contra os “grandes”. É este o segredo, sublinha o treinador argentino Marcelo Bielsa: “Uma das razões por que o futebol é o desporto mais difundido no mundo é o facto de os fracos poderem derrotar poderosos.” A surpresa e a imprevisibilidade são factores essenciais da atracção do futebol.

 

Numa liga fechada, os mesmos jogam sempre contra os mesmos. Disse há semanas um dirigente do Real Madrid: “O Barcelona e o Real não têm qualquer interesse em jogar com o Ossasuna ou com o Athletic Bilbao.” Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, ironizou a este respeito: “Podemos jogar sempre, durante dez anos, com o Real Madrid.”

 

As equipas, e não só as milionárias, dependem muito das receitas dos jogos da Liga dos Campeões ou da Liga Europa. Um dos maiores riscos financeiros é “ficar fora da Europa”. É o que, de há uns anos para cá, acontece ao Arsenal. O problema deixaria de existir com a Superliga: o Arsenal estaria sempre dentro. A isto aludiu Josep Guardiola: não há desporto quando não se perde com as derrotas.

 

Identidades

 

Como foi possível o projecto da Superliga? Os “conspiradores”, de Florentino Pérez ao JP Morgan Chase, sonharam que a sua proposta de “salvação” seria aplaudida. Até destinavam uma razoável verba a ser distribuída pelos “pequenos”.

 

Chamar “Superliga Europeia” a um projecto que excluiria “para a eternidade” a maior parte dos grandes clubes europeus equivale a um insulto. Clubes históricos seriam relegados para a margem. Perguntou também Guardiola: como justificar a exclusão de clubes como o Ajax, quatro vezes campeão europeu? Os alemães convidados tiveram a inteligência de recusar.

 

Longe vai a era em que o futebol era um símbolo de classe social, a bandeira de uma cidade ou até de um bairro. É inegável a componente de “negócio”. Mas é um completo equívoco esquecer as identidades que o futebol arrasta. Como dizem do Barça os catalães: “Més que un club”.

 

Numa diatribe contra Florentino Pérez, escreve o jornalista britânico, John Carlin: “Desta vez o seu rival foi o desporto-rei. Não percebeu que não o poderia vencer. (…) Não entendeu o que alguns de nós repetiam até à exaustão: o futebol é uma religião, a maior do mundo, com 4.000 milhões de seguidores. Não entendeu que os 4.000 milhões não são entidades comerciais e são, em primeiro lugar, fiéis.”

 

Explicava há dias, no New York Times, o jornalista britânico James Montague que o futebol europeu atrai cada vez mais os bilionários das ligas americanas (proprietários já do Arsenal, do Liverpool e do Manchester United). “Sonham explorar a imensa e global atracção do futebol europeu, especialmente os direitos televisivos e comerciais em novos mercados, como a China, a Índia e… os Estados Unidos.”

 

Deixa uma pergunta: “Estão os valores americanos a arruinar o futebol europeu?” A superliga morreu. Mas a ameaça permanece, dado o miserável estado das finanças de muitos clubes europeus. “Eles voltarão a atacar.”

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