OPINIÃO
Recursos milagrosos
Não é bom sinal continuar a esperar pelos recursos
milagrosos e não cuidar da riqueza que se produz ou da poupança que se
estimula. Não se pode viver sempre ligado ao ventilador ou ao milagre.
António Barreto
11 de Outubro de
2020, 7:45
https://www.publico.pt/2020/10/11/opiniao/opiniao/recursos-milagrosos-1934686
Vão chegar a
Portugal, vindas da União Europeia, as dezenas de milhares de milhões do Plano
de Recuperação e Resiliência (que designação tão estúpida!), também intitulado
“bazuca” (epíteto não menos estúpido). É, para todos os efeitos, uma boa
notícia e poderá ser um bom contributo para o desenvolvimento económico e
social e para a democracia portuguesa.
As reacções
habituais dizem tudo sobre os seus autores. Milagre! É a salvação de Portugal.
Vai tudo para os trafulhas! Agora é que vai ser corrupção. Ninguém controla com
honestidade e independência. Vai ser tudo gasto no curto prazo. Quem vai ficar
a ganhar são os milionários habituais. Os partidos no poder vão ser os
principais beneficiários. É uma extraordinária prova de solidariedade europeia.
É muito mais do que o Plano Marshall. É o que a Europa deve a Portugal. Há
recursos para relançar o crescimento e fortalecer o Estado Social. É mais uma
solução de facilidade que alivia os portugueses, mas que também os ajuda a
fazer menos pela vida.
É tudo um pouco
verdade. Tanto os críticos como os entusiastas têm carradas de razão. Mas
nenhuns têm só ou toda a razão.
Verdade é que nos
piores momentos das últimas décadas, nos maiores apertos ou para pagar as mais
desatinadas loucuras, houve sempre recursos extraordinários que ajudaram
milhões de cidadãos a sobreviver e a salvar a democracia. Não há dúvidas que o
essencial foi feito pelos portugueses, trabalhadores e empresários,
agricultores e técnicos, militares e civis, todos eles eleitores: é seguramente
deles o principal contributo para garantir as liberdades e algum equilíbrio do
sistema social. Foram eles que fizeram a democracia e são eles que a têm
mantido.
Mas, com que
meios? Esse é o aspecto mais curioso. Os portugueses não conseguiram produzir
mais do que consumiram. Nem sequer tanto quanto gastaram. Nem investir o que
era necessário. Tiveram de se endividar, já sabíamos. Mas, ano após ano, foi
possível segurar as pontas soltas, estancar hemorragias iminentes e evitar
bancarrotas prováveis. Houve o necessário para distribuir um mínimo
indispensável à paz. Foi possível guardar um pacote para alimentar a política,
a administração pública, o serviço de saúde e de educação, a segurança social e
as pensões cujo número nunca cessou de se alargar e com o que se aguentou a
democracia sem estremeções excessivos e perigosos. Foi possível, através dos
mecanismos indesejáveis e imprevisíveis, sossegar os mais nervosos e contentar
os mais ambiciosos, assim como pagar a demagogia e o desperdício.
Foi necessário
pagar a revolução, a contra-revolução e a consolidação da democracia, assim
como uma nova segurança social sem contribuições prévias suficientes. Foi
necessário cobrir os défices externos, a produção insuficiente e o Estado
social sem receitas. Foi necessário alimentar os circuitos de economia paralela
e de empresas marginais. Foi necessário encontrar recursos para acalmar
empresários descontentes, trabalhadores com altas expectativas e funcionários
atordoados ou ambiciosos. Foi preciso alimentar os desvios de fortunas para
offshore de conveniência e ajudar ministros de vários governos a enriquecer
depressa.
Em poucas
palavras, foi necessário manter a paz, aguentar as faltas e cumprir os mínimos,
sem o que não haveria paz social nem democracia partidária. Até os
revolucionários diletantes, os teóricos radicais marginais, as máfias, os
capitalistas sem escrúpulos, os contrabandistas e os traficantes de influências
tiveram de ser “contentados”, “cuidados” ou “tratados”, sem o que se
entregariam a actividades ilícitas, conspirações políticas e actos de
terrorismo ou de sabotagem.
Tudo isto custou
muito dinheiro. Que foi distribuído de várias maneiras: dinheiro vivo, pensões,
aumentos salariais, saúde e educação, subsídios para a habitação, rendimento
mínimo, fomento da exportação, concursos públicos para obras úteis e inúteis,
adjudicações directas para parcerias público privadas, bolsas de estudo e
privilégios do funcionalismo público. Custou muito caro e não foi tudo graças
ao esforço, ao trabalho e ao investimento dos portugueses. O crédito e o
endividamento pagaram muito. Mas mesmo estes e os respectivos juros tiveram de
ser pagos e reembolsados. Com que recursos se pagou tudo isto?
Em primeiro
lugar, as reservas de ouro e divisas do anterior regime. Ajudaram a revolução.
Financiaram o desperdício e a demagogia. Pagaram centenas de milhares de novos
funcionários. Alimentaram o sistema democrático. Evitaram, em cima do risco da
catástrofe, a ruína e a bancarrota.
Depois, as
nacionalizações e as ocupações da banca, de empresas, de propriedades
agrícolas, de edifícios e de habitações, tudo sem indemnizações. Fez-se o que
as revoluções fazem, justa ou injustamente: o Estado e os revolucionários foram
buscar os recursos onde eles estavam. Destruíram-se os grupos económicos
portugueses e expropriaram-se os ricos, mas arranjaram-se recursos para manter
viva uma base económica de produção e emprego. E um pouco de democracia.
Há ainda que
contar as receitas das privatizações e das reprivatizações, muitas delas
precedidas de expropriações e nacionalizações efectuadas sem indemnização
prévia. O Estado democrático e o sistema político encontraram aqui recursos
importantes para aguentar uma década e manter a democracia. Venderam-se, a
privados e a Estados estrangeiros, as melhores empresas nacionais.
Finalmente, outro
contributo excepcional é o dos fundos europeus nas suas várias remessas, desde
os tempos da ajuda de pré-adesão, passando pelos famosos Fundo Social Europeu,
PEDIP e PRODEP, chegando aos programas de coesão ou 2020 e agora à recuperação
e resiliência. Foram muitas, muitas, mesmo muitas dezenas de milhares de
milhões de euros, não produzidos pelos portugueses, nem trabalhadores, nem
empresários, nem políticos.
Foram ajudas e
apoios irrepetíveis. Por entre enormes dificuldades, Portugal democrático e os
portugueses mantém-se graças a receitas extraordinárias e a fundos
excepcionais. Alguns do passado, outros do exterior. E muitos do futuro, por
via do endividamento e das parcerias público privadas. Não é bom sinal
continuar a esperar pelos recursos milagrosos e não cuidar da riqueza que se
produz ou da poupança que se estimula. Não se pode viver sempre ligado ao
ventilador ou ao milagre. Muito menos à espera de solidariedade. Viver do
alheio, do crédito e da dádiva não é um bom programa de vida.


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