SNS: a importância da clarificação ideológica
Resta agora saber se António Costa vai satisfazer as
expectativas que criou na quarta-feira e se tem vontade e capacidade política
para liderar a reestruturação do SNS
São José Almeida
25 de Junho de
2022, 7:23
https://www.publico.pt/2022/06/25/politica/opiniao/sns-importancia-clarificacao-ideologica-2011262
O debate
parlamentar de quarta-feira, com a presença do primeiro-ministro, foi
importante em mais de um plano. Não só permitiu que António Costa assumisse a
urgência da reestruturação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), como contribuiu
para uma clarificação ideológica dos modelos de serviços de saúde que os
partidos defendem.
Pelas palavras do
primeiro-ministro, irão agora avançar medidas como o estatuto do SNS (em
Julho), a rede de referenciação das urgências, o alargamento de Unidades de
Saúde Familiar, a concretização da autonomia de contratação dos hospitais, as
reformas dos cuidados primários e dos cuidados continuados integrados. Assim
como a implementação do regime de dedicação plena e a aposta na formação dos
médicos, medidas destinadas a aumentar a atractividade da adesão ao SNS.
É evidente que o
objectivo de estancar o esvaziamento dos médicos no SNS e voltar a tornar as
carreiras médicas no sector público de saúde um projecto profissional de futuro
passa não só por reestruturar as carreiras e a formação, mas também é preciso
alterar profundamente o sistema. Daí que seja central o processo negocial com
os sindicatos dos médicos que decorrerá nos próximos seis meses, destinado a
encontrar consensos quanto às medidas a adoptar pelo Governo para potenciar a
atractividade e a fixação de médicos no SNS. Ou seja, serão feitas negociações
com os sindicatos que só podem terminar numa verdadeira reformulação das
carreiras e das tabelas salariais dos médicos do SNS, que lhes devolva
dignidade.
Estas negociações
foram anunciadas pela ministra da Saúde, Marta Temido, no final da reunião com
os sindicatos dos médicos, que decorreu ao fim do dia também na quarta-feira,
sobre o pagamento de horas extraordinárias nos serviços de urgência hospitalar,
que acabou sem acordo. Marta Temido anunciou mesmo assim que o Governo vai
passar a pagar aos médicos do SNS 50 euros (em vez dos actuais 19 euros) por
hora extraordinária prestada nas urgências hospitalares para além do limite de
150 horas extraordinárias por ano. Um regime classificado por Marta Temido como
transitório, mas que irá durar um ano e não os três meses inicialmente
previstos.
Com esta medida,
o Governo procura aproximar a situação dos médicos do SNS às condições que
auferem os médicos tarefeiros contratados pelos hospitais públicos às empresas
privadas de prestação de serviços médicos. Mas é importante que nas
preocupações do Governo esteja a criação de condições que permitam travar e
diminuir o recurso a médicos tarefeiros, que só tem servido para ajudar a
vampirizar o SNS.
Mas o debate de
quarta-feira contribuiu para a clarificação ideológica. Assumindo-se como líder
do Governo, António Costa fez a defesa de um modelo de saúde em Portugal que
assenta na complementaridade entre sector público e privado, demarcando-se do
modelo defendido pelo PSD, que acusou de idolatrar a saúde privada, num momento
em que, como o PÚBLICO noticiou, os privados já fizeram quase 30% dos partos em
Lisboa e Vale do Tejo em 2021.
Em resposta ao
líder parlamentar do PSD, Paulo da Mota Pinto, António Costa começou por
revelar que não houve renovação das parcerias público-privadas (PPP) porque os
concessionários privados “não aceitaram manter o contrato, nos termos propostos
pelo Tribunal de Contas”. E, perante a intervenção do líder parlamentar do PS,
Eurico Brilhante Dias — que clarificou que todas as PPP foram criadas pelos
governos do PS —, o primeiro-ministro acusou o PSD de querer destruir o SNS e
assumiu a defesa do modelo social-democrata de Estado Social que defende,
retirando dele o PSD: “O PPD, que era PPD, quis-se inventar PSD. Mas não cabem
lá.”
A clarificação
ideológica foi feita também à esquerda, tornando transparente a distância entre
o PS e os antigos parceiros parlamentares, o PCP e o BE. Foi, aliás, notória a
agressividade de António Costa ao responder à coordenadora do BE, Catarina
Martins, que acusou de “demagogia”, chegando mesmo a afirmar: “O Bloco não
criou o SNS; o SNS não deve nada ao Bloco para a sua melhoria.” Voltando a
recusar o modelo de exclusividade dos médicos no SNS proposto pelo BE —
divergência que esteve na base do chumbo da proposta de Orçamento do Estado
para este ano, em Outubro passado —, o primeiro-ministro insistiu na defesa da
liberdade dos médicos e na complementaridade entre público e privado.
Ficou claro o
modelo de saúde que o PS perfilha. Resta agora saber se António Costa vai
satisfazer as expectativas que criou na quarta-feira e se tem vontade e
capacidade política para liderar a reestruturação do SNS, apostando na
complementaridade entre público e privado (quem sabe se lançando até novas
PPP). Uma coisa parece certa: o modelo que António Costa defendeu não pode
passar pelo esvaziamento do SNS, que se tem verificado ao longo de anos.


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