PENSAR OS TRANSPORTES
“Não investimos na ferrovia, taxamos o camião e deixamos
aviões e navios a poluírem sem pagar impostos”
A forma como está montada a fiscalidade no sistema de
transportes e dos próprios combustíveis faz com que seja mais barato trazer
produtos agrícolas da Argentina para Lisboa do que da Beira Interior, denuncia
o professor Álvaro Costa da Faculdade de Engenharia do Porto.
Carlos Cipriano e
Ruben Martins
7 de Junho de
2022, 7:24
"Se se puser
uma taxação correcta, o transporte aéreo acabará por encontrar soluções
tecnológicas para poluir menos", defende o professor da Faculdade de
Engenharia do Porto Álvaro Costa DANIEL ROCHA
James Jelly podia
ter sido apenas mais um passageiro de um voo da companhia low-cost Ryanair que
a 19 de Maio voou entre a cidade britânica de Newcastle e a ilha de Menorca, em
Espanha. Mas o destino final deste adepto do Sunderland era o estádio de
Wembley, na capital inglesa, e não a ilha espanhola para onde acabou por voar.
O trajecto pouco provável é resultado da constatação que lhe ficava mais barato
voar para as Baleares, dormir num hostel da ilha, apanhar umas horas de sol e
retomar depois a Londres em vez de apanhar um comboio ou um voo directo.
Entre os dois
voos low-cost, que lhe custaram 27 euros no total, e a noite num hostel da ilha
de Menorca, que lhe ficou por 32 euros com pequeno-almoço, a opção pela viagem
mais longa compensou claramente face aos cerca de 80 euros que custam em média
uma viagem de comboio naquele trajecto ou aos 190 euros que lhe pediram pelo
voo directo.
À BBC, James
Jelly disse que, quando estava a tentar perceber quais as possibilidades para
poder ver o jogo em Londres, pensou que “deveria haver outra opção do que
passar seis horas num autocarro ou gastar centenas num comboio para Londres”.
Jelly partilhou ainda que conhece quem tivesse gasto perto de 300 euros por um
bilhete de comboio ida e volta para Londres graças ao sistema de tarifas
dinâmicas que empurrou para cima o preço do bilhete.
O homem de 33
anos revelou ao canal britânico que a sua família o considerou “louco” pelo
percurso escolhido. À volta, acabou por viajar à boleia de um outro fã do
Sunderland que conheceu a sua história nas redes sociais. O Sunderland lá
acabou por ganhar em Wembley e a viagem de regresso foi feita em festa. Quem
ficou a perder foi o ambiente, mas o adepto acabou por admitir que não pensou
em como a sua viagem “não seria ambientalmente correcta”, porque,
“honestamente, só queria o melhor negócio”.
Este exemplo de
James Jelly mostra como o sistema nem sempre favorece as melhores práticas
ambientais e que o preço é um factor chave na escolha do meio de transporte
para a viagem quando o factor tempo não é o mais determinante.
Engane-se quem
possa pensar que estas coisas só acontecem lá fora. Numa pesquisa feita pelo
PÚBLICO é possível encontrar um voo Porto-Bordéus-Faro a 15 de Junho por 31
euros, mais barato do que apanhar um comboio entre as duas cidades. A viagem
mais em conta no intercidades da CP fica por 43,30 euros. Curiosidade, o voo
directo entre as duas cidades para o mesmo dia custa 45 euros, mas demora menos
quase seis horas no trajecto (a que se tem de somar ainda o tempo no aeroporto
e de deslocação até ao centro da cidade de Faro). Nos autocarros da Rede
Expressos o custo é ligeiramente menor (33 euros) mas a viagem prolonga-se para
lá das 7h30, já os low cost da FlixBus fazem o mesmo tempo por 19 euros, mas
oferecem menos ligações diárias.
Custos maiores
para distâncias mais curtas
Álvaro Costa, da
Faculdade de Engenharia do Porto, diz que o desequilíbrio na taxação do
combustível entre os modos terrestre e os modos aéreo marítimo faz com que os
aviões e navios tenham mais competitividade do que o transporte rodoviário e ferroviário,
aumentando as distâncias de deslocação dos produtos. “Acaba por ser mais barato
trazer produtos agrícolas da Argentina para Lisboa do que da Beira Interior. Se
eu retirasse toda a taxação da gasolina induziria uma diminuía da poluição a
nível mundial porque os produtos deixariam de vir de tão longe e passávamos a
ter redes curtas de produção e distribuição”.
Para este
investigador no sector dos transportes, “o aumento da gasolina e do gasóleo
torna o transporte rodoviário (e ferroviário) menos competitivo do que o
transporte aéreo e marítimo porque estes não pagam os mesmos impostos e, logo,
a concorrência é desleal”. A solução diz, é retirar carga fiscal ao modo
rodoviário ou taxar todos por igual. “Agora, tal como está é que não pode ser
porque estamos com uma taxação que prejudica os modos de transporte usados nas
cadeias curtas. No fundo, não investimos na ferrovia, taxamos o camião e
deixamos aviões e navios a poluírem sem pagar impostos.”
A ideia de os
países imporem restrições ao uso do avião para curtas distâncias é, em sua
opinião, um remendo para aquilo que está estruturalmente errado. “Recorre-se à
regulamentação para alterar coisas que estão mal feitas em vez de corrigir os
erros. O que se devia fazer era transferir a taxação que há na gasolina para os
aviões e navios e criar assim um mercado mais equilibrado. Se se puser uma
taxação correcta, o transporte aéreo acabará por encontrar soluções
tecnológicas para poluir menos. Se as decisões de taxação forem correctas,
virão as tecnologias correctas”.
Restrições ao
tráfego aéreo de curta distância?
“É preciso ter em
conta que o transporte aéreo tem sobre o ferroviário a enorme vantagem de poder
ir em todas as direcções enquanto o comboio só vai para onde houver linhas, se
as houver”, recorda José Manuel Viegas, que dá o exemplo da relação Lisboa – Sevilha,
separadas por apenas 500 quilómetros, mas para onde não faria sentido acabar
com as ligações aéreas porque não há alternativa ferroviária.
“Acabar com os
voos de curta distância não é, portanto, uma solução para qualquer par de
origem-destino. Será só para onde tiver que ser”, diz este investigador que, no
entanto, vê com agrado esta ideia “se do lado do caminho-de-ferro houver
frequência de serviço e horários adaptados para os segmentos de mercado que
procurem esses serviços”. Neste caso, diz, as pessoas escolherão
preferencialmente o modo ferroviário e quase nem será necessário haver
regulamentação a proibir os voos nesses percursos. “Aliás, não é necessária nem
desejável porque, se do ponto de vista ambiental a proibição faz todo o
sentido, do ponto de vista concorrencial pode haver o risco de um price
ceilling [tecto de preço / limite de preço]”, ou seja, as companhias
ferroviárias aproveitarem-se da situação para aumentarem os preços.
Por outro lado,
os voos de curta distância justificam-se para dar continuidade a voos
intercontinentais. José Manuel Viegas dá o exemplo da relação Paris – Bruxelas,
que com o Thalys (TGV que liga as duas cidades e também Amesterdão e Colónia)
ficou sem ligações aéreas, mas que voltou a tê-las porque Bruxelas ficou com
menos voos de longo curso do que a capital francesa e tornava-se incómodo para
muitos passageiros chegarem a Paris vindos de Nova Iorque, Tóquio, ou mesmo
Istambul, e não disporem de um voo de ligação para a Bélgica.
O catedrático em
Transportes alerta que entretanto a indústria da aviação não tem estado parada
e que a Airbus tem vindo, com um parceiro mais pequeno, a desenvolver um avião
a hidrogénio que poderá estar a ser comercializado em 2035 e que terá uma
autonomia até 1000 quilómetros. “Pode ser que algumas redes ferroviárias possam
não estar a disponíveis para investir em mais ligações se souberem que dentro
de 15 anos pode haver aviões não poluentes que lhes façam concorrência”, diz.
Vergonha de voar
É na vergonha de
voar pela poluição associada que está hoje o maior risco para o sector da
aviação. O termo já é conhecido nos países nórdicos e surge da noção,
especialmente por parte das gerações mais novas, da enorme pegada ambiental que
um passageiro aéreo representa. O “flygskam”, como é conhecido na Suécia, tem
ganho seguidores, sendo uma das mais populares seguidoras desta prática a
cantora de ópera sueca Malena Ernman, mãe da conhecida activista Greta
Thunberg, que se recusou a viajar de avião até aos locais dos seus
espectáculos.
Greta foi também
a protagonista de uma travessia atlântica de veleiro para participar na Cimeira
de Acção Climática das Nações Unidas de 2019, nos Estados Unidos da América,
para evitar ter de voar para fazer a viagem. No regresso, depois de 21 dias de
travessia, passou por Lisboa rumo a Madrid, tendo sido, em Dezembro de 2019,
uma das últimas passageiras do Lusitânia comboio-hotel que diariamente ligava
Santa Apolónia e a cidade de Madrid. Hoje a ligação não existe nem há
perspectivas de que venha a voltar no curto prazo.
Pode parecer
pouco, mas em 2019 o director da companhia aérea sueca SAS, Rickard Gustafson,
estimou que o movimento “flygskam” originou uma queda de 5% do tráfego aéreo
sueco no primeiro trimestre daquele ano, enquanto a companhia de caminho-de-ferro
sueca SJ anunciava números recordes de passageiros. No total, o número de
passageiros nos comboios da Suécia mais do que dobrou face aos números da
década de 90.
Actualmente
estima-se que os voos comerciais representem cerca de 2,5% das emissões mundial
de carbono, num valor que deverá aumentar consideravelmente com a recuperação
do trafego aéreo pós-pandemia e com a expansão dos voos baratos proporcionados
por companhias low cost
Por outro lado,
vai crescendo o “tagskryt”, nome sueco para designar o orgulho em viajar de
comboio. Em comparação, um voo entre Estocolmo e Gotemburgo gera uma pegada de
carbono equivalente a 40 mil viagens de comboio no mesmo trajecto. Em 2019, a
SJ diz terem-se poupado 174 mil toneladas de emissões de dióxido de carbono com
a escolha dos seus comboios em detrimento do avião. Este cenário tem potenciado
o aumento do número de ligações ferroviárias depois de anos de quebra e
desinvestimento. Também em força voltaram os comboios nocturnos ao centro e
norte da Europa, cenário a que a Península Ibérica tem assistido como
espectador não participante.
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