OPINIÃO
O que fazer com a disfuncionalidade do mercado de
arrendamento português?
Neste momento de crise de habitação, é imperativo
categórico que o Estado torne a reabilitação urbana e o mercado de arrendamento
acessível um setor atrativo para as dinâmicas imobiliárias.
Luís Mendes
2 de Março de
2022, 5:59
O mercado de
arrendamento português é profundamente disfuncional há várias décadas. Em todas
as reformas realizadas, não foi possível descongelar permanentemente as rendas
antigas, desenvolver mecanismos de apoio às famílias que não conseguem pagar as
suas rendas e criar um clima de confiança que atraia investimentos e aumente a
oferta de locados para arrendar no setor privado. Não se conseguiu resolver o
problema estrutural de desajustamento constante entre oferta e procura de
arrendamento no mercado nacional português. As autoridades públicas, com um
pequeno parque habitacional público, também descapitalizado e incapaz de fazer
do mercado de arrendamento uma prioridade na política nacional de habitação,
delegam a responsabilidade pela criação de um mercado de arrendamento a preços
acessíveis para o sector da propriedade privada.
Os resultados,
apesar de algumas melhorias pontuais na última década, são bem visíveis: Uma
degradação acentuada do parque habitacional, resultante da descapitalização dos
seus proprietários; um número crescente de casas vazias em Portugal, embora os
devolutos na cidade de Lisboa tenham diminuído desde 2011, ainda que existam
mais de 48 mil casas vazias; uma redução progressiva na oferta de casas para
arrendar, escassas e com valores de arrendamento inacessíveis à maioria das
famílias, se considerarmos os novos contratos no mercado livre.
Uma questão
impõe-se: o que fazer? Que medidas políticas tomar no sentido de reverter esta
situação? Neste momento de crise de habitação que se tem agravado ao longo dos
últimos anos, é imperativo categórico que o Estado torne a reabilitação urbana
e o mercado de arrendamento acessível um setor atrativo para as dinâmicas
imobiliárias, atraindo o maior número de fogos privados possível, através de
isenções fiscais mais drásticas e estímulos ao nível da política fiscal para o
setor privado e particulares onde se concentra a esmagadora maioria do parque
habitacional devoluto. Neste âmbito, pode até prever-se medidas de subsidiação
ao arrendamento (diretamente ao proprietário) em casos específicos de
acolhimento de famílias / indivíduos vulneráveis ou de emergência habitacional
(exemplo do Programa da Renda Segura da Câmara Municipal Lisboa). Veja-se que a
quebra, desde o início da pandemia, de cerca de 7% dos fogos afetos a unidades
de alojamento local e a migração de muitos destes para o sector do
arrendamento, conciliada com outros fatores, contribuíram para um abaixamento
do valor das rendas na cidade de Lisboa em cerca de 15% nos meses seguintes.
Por outro lado,
em áreas de forte pressão urbana, onde a percentagem de devolutos persista em
manter-se muito elevada, é obrigação do Estado fazer cumprir a recente
promulgada Lei de Bases da Habitação, promovendo o cumprimento da função social
da propriedade. Assim, recomenda-se que se ativem medidas mais coercivas e
drásticas que elevem o IMI aos devolutos de forma tal que não seja benéfico
para os proprietários não lhe dar um uso social ou económico. Em caso de
abandono motivado por heranças indivisas, cadastro inexistente ou dono
desconhecido, ou total desinteresse pelo proprietário, sugere-se a tomada de
posse administrativa do fogo/edifício ou mesmo expropriação por parte do
Estado, como acontece noutros países e cidades europeias em que o mercado de
habitação se encontra sobreaquecido e não ajustado à procura, tais como Berlim
ou Viena.
Em áreas de forte pressão urbana, onde a percentagem de
devolutos persista muito elevada, é obrigação do Estado fazer cumprir a recente
Lei de Bases da Habitação, promovendo a função social da propriedade
É necessária uma
nova lei do arrendamento que permita a criação de um ambiente de confiança no
mercado de arrendamento, contrário ao desenvolvido nos últimos 60 anos, com
garantias efetivas de proteção aos senhorios e inquilinos, no caso do
incumprimento dos contratos, mas também direitos e deveres para ambas as partes
(senhorios e inquilinos) e que não permita, em nenhuma circunstância, processos
de despejo dos inquilinos em que não estejam devidamente asseguradas
alternativas dignas ou meios de subsistência suficientes, devendo forçosamente
analisar-se a situação familiar e encontrar-se os meios adequados para o apoio
às famílias em caso de incapacidade financeira para manter a habitação.
O Estado Central
tem de assumir as responsabilidades que lhe são incumbidas pela Constituição da
República Portuguesa e pela Lei de Bases da Habitação, como regulador,
executor, construtor, promotor e provisor direto de habitação pública e de
acesso à habitação, ao contrário do papel de gestor ou de mero garantidor,
facilitador do mercado privado, papel que tem assumido com maior peso nos
últimos anos em que vivemos uma verdadeira viragem neoliberal nas políticas
urbanas e de reabilitação. É indubitável que ao Estado incumbe intervir em
todos os níveis da definição e planeamento da utilização de solo urbano, no
controlo de preços e mais-valias, ser simultaneamente promotor e proprietário
de habitação, contribuir na reabilitação do edificado e na oferta de habitação
e arrendamento acessível. Não quer isto dizer que para garantir o direito à
habitação [em Lisboa], o Estado, representado a nível local pela Câmara
Municipal de Lisboa deva ser, maioritariamente, Proprietário, Gestor ou
Regulador do parque habitacional da cidade.
Isto significa
que o Estado se deve comprometer com uma coordenação eficaz de políticas de arrendamento
que medeie os mais diversos e contraditórios interesses, stakeholders e
organizações envolvidas no setor; exigir e permitir que todas as partes
interessadas relevantes nos setores público e privado desempenhem um papel na
realização de metas de habitação acessível e inclusiva; estabelecer e monitorar
padrões para arrendamento adequado e acessível em todas as formas. O que
significa é que deve esforçar-se por fazerem coexistir de forma equilibrada são
os três modelos de regime de propriedade previstos na Constituição da República
Portuguesa e cuja lógica se deve estender também ao arrendamento: o do setor
privado (portanto mercado livre), o do setor público e o do setor cooperativo e
social.
Portanto, é
importante entender como o problema público relacionado ao arrendamento
acessível é percebido pelo ambiente político e confrontá-lo com outras
experiências e com evidências empíricas. A ação governamental é decisiva e
molda a política habitacional e as formas e regimes de ocupação, afetando
também o mercado privado de arrendamento, por exemplo, por meio da regulação
das instituições e do mercado financeiro, mas também por meio de isenções
fiscais para os proprietários que colocam as suas casas no mercado de
arrendamento, criando um quadro jurídico e marco regulatório que transmita
credibilidade, estabilidade e segurança às formas contratuais entre oferta e
procura, e um efetivo direito à habitação por via do arrendamento acessível,
reconhecendo este tanta pela sua função económica quanto social.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Sem comentários:
Enviar um comentário