domingo, 13 de março de 2022

O preço da paz para a Ucrânia

 



ANÁLISE

O preço da paz para a Ucrânia

 

José Pedro Teixeira Fernandes

13 de Março de 2022, 17:07

https://www.publico.pt/2022/03/13/mundo/analise/preco-paz-ucrania-1998638

 

1. Quando, a 24 de Fevereiro de 2022, a Rússia iniciou a invasão da Ucrânia estava à espera que o choque militar levasse à queda do Governo ucraniano. Não foi assim que aconteceu. A resistência do Presidente Volodimir Zelenskii e da população fizeram descarrilar os planos russos de uma vitória rápida e fácil. Tal é, pelo menos, a interpretação dos acontecimentos feita no Ocidente. No entanto, é necessária prudência. Como espectadores, temos a sensação de ver e saber quase tudo. É uma ilusão. As torrentes de imagens transmitem-nos uma guerra em directo onde há uma profusão de acontecimentos e relatos impressionantes sobre o terrível drama humano em curso. Para além disso, é, todavia, escassa a informação confirmável. Em termos militares, não sabemos quais eram exactamente os planos russos e os cálculos subjacentes à invasão. Não sabemos também a exacta dimensão das operações militares e as perdas reais de soldados e equipamento, quer do lado russo (percebe-se que há perdas significativas), quer do ucraniano (onde não há uma equivalente informação). Estamos fundamentalmente a ver um lado da guerra.

 

2. No campo de batalha da opinião pública internacional — e as guerras também se ganham ou perdem aí — a Ucrânia está a vencer de forma inequívoca. A invasão da Rússia foi largamente condenada a nível internacional e vista como ilegítima e violadora do Direito Internacional. A resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1 de Março de 2022, onde se deplorou, “nos termos mais fortes, a agressão da Federação Russa sobre a Ucrânia nos termos do artigo 2 (4) da Carta”, foi votada favoravelmente por mais de 140 Estados (entre 193 membros das Nações Unidas). O Presidente Volodimir Zelenskii ganhou o respeito e admiração internacional pela sua coragem e capacidade mobilizadora da população. Os ucranianos são agora objecto de grande simpatia e solidariedade, não só no Ocidente como em parte substancial do mundo. Ao contrário do que sustenta a história e propaganda nacionalista russa, que lhes nega especificidade nacional, a sua mobilização e resistência sugere estarmos perante uma nação em formação. A ser assim, o que estamos a assistir no início do século XXI é um processo similar ao ocorrido na Europa século XIX, onde as nações — e os respectivos Estados nacionais — emergiram da guerra. Na Europa da União Europeia julgávamos ser esse um passado encerrado.

 

3. Enquanto a guerra perdura, existe apenas uma coisa garantida: o prolongar do sofrimento da população, algo que não deveria deixar ninguém indiferente. Sejamos, todavia, realistas. Apesar da notável determinação da Ucrânia em resistir, a probabilidade de continuar a enfrentar militarmente a Rússia — até ao ponto em que esta seria obrigada a recuar e abandonar todas as exigências feitas — é baixa. Implicaria, certamente, um conflito prolongado com elevadíssimo custo humano, em mortos, feridos e milhões de refugiados, bem como imensas perdas materiais. Claro que uma guerra longa de atrito — e as sanções económicas — terão também um custo material e humano muito elevado para a Rússia. O Governo de Vladimir Putin poderá ficar em apuros. Todavia, o facto de a Rússia ter de suportar perdas enormes não resolve, só por si, o problema da Ucrânia. Mesmo que estas provocassem sérias convulsões internas e dessem origem a um novo governo na Rússia, nada indica que emergiria uma democracia liberal. Podemos até esperar o pior de um governo acossado: uma guerra ainda mais violenta e destrutiva. Provavelmente é esse o sentido da frase do Presidente francês Emmanuel Macron, de que “o pior ainda está para vir”. Encontrar uma saída para este conflito é, assim, uma tarefa crucial da diplomacia, seja da França e/ou Alemanha ou outra. A China, Israel e a Turquia têm sugerido poder mediar, esta última conseguiu até um fugaz diálogo directo entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia e Rússia, todavia sem resultados palpáveis. Em qualquer caso, a questão permanece: em que termos poderá ser encontrada uma solução diplomática?

 

4. Vejamos, primeiro, o que poderia ser um possível compromisso político na perspectiva da Ucrânia. Segundo declarações oficiais do Presidente Volodimir Zelenskii publicadas a 8 de Março de 2022, “a Ucrânia está pronta a manter um diálogo com a Rússia sobre garantias de segurança, sobre o futuro dos territórios ocupados das regiões de Donetsk e Luhansk, e da Crimeia, mas não está disposta a capitular.” Em termos de garantias de segurança da Ucrânia, Volodimyi Zelenskii admitiu que “no futuro a Ucrânia deve ter um acordo de segurança colectiva com todos os seus vizinhos e com a participação dos principais países do mundo — os Estados Unidos, França, Alemanha e Turquia, com os quais o nosso país faz fronteira no Mar Negro.” Acrescentou também que “não serão garantias apenas para a Ucrânia. Serão garantias também para a Rússia.” Sobre o delicadíssimo problema das populações que vivem em território ucraniano, mas que se identificam com a Rússia, notou o seguinte: “Estou interessado na opinião daqueles que se consideram cidadãos da Federação Russa” pelo que se deverá “discutir essa questão”. Acrescentou que “somos inteligentes o suficiente para garantir que a decisão sobre essas duas questões” — a Crimeia e o Donbass — “não provoque revoluções dentro das nossas sociedades, para que as pessoas fiquem satisfeitas com esta decisão”.

 

5. No caso da Rússia há também indicações sobre os termos de um eventual compromisso político. Aparentemente, nesta altura, o objectivo maximalista de afastar o Governo de Volodimir Zelenskii parece ter sido abandonado. Estaria, talvez, associado a um cenário de vitória fácil e rápida nos primeiros dias, o que não aconteceu. As exigências políticas e de segurança da Rússia parecem agora mais limitadas, mas são substanciais. Uma primeira, o fim da pretensão da Ucrânia aderir à NATO, afastando-se, também, daquilo que os russos vêem como uma presença indirecta desta em território ucraniano. Uma segunda exigência, ligada com a primeira, é uma alteração da Constituição da Ucrânia onde ficará inscrita a neutralidade. Implica retirar do seu texto constitucional a obrigação de os órgãos de soberania prosseguirem uma política de adesão à NATO. Não é claro se essa exigência também se aplicará a uma possível adesão União Europeia. Uma terceira exigência, o reconhecimento da independência das regiões separatistas de Luhansk e Donetsk no Donbass, feita pela Ucrânia, que o Governo da Rússia reconheceu como independentes antes de iniciar a invasão. Uma variante dessa reivindicação será essas regiões manterem-se numa Ucrânia transformada em Estado federal, onde teriam uma larga autonomia, na lógica dos Acordos Minsk de 2015 (pelo menos, tal como a Rússia os interpreta). Uma quarta o reconhecimento da integração da Crimeia na Federação Russa, anexada em 2014.

 

6. Com tais posições que se mantêm substancialmente divergentes, apenas podemos conjecturar se será possível (e quando) um compromisso político que vá além de um cessar-fogo (para já, nem isso foi possível). Importa notar que Volodimir Zelenskii vai estar perante um extraordinário dilema político e humano. Continuar um esforço de guerra defensiva que lhe deu já um estatuto de herói — a imagem do pequeno David que resistiu ao gigante Golias dos textos bíblicos encaixa bem (até pelas suas origens judaicas) — é, provavelmente, a única via possível nesta altura. Mas prolongar muito no tempo a guerra de resistência ao invasor implica assumir uma elevada responsabilidade moral e política. Acabará por aumentar drasticamente o sofrimento humano e a destruição material da Ucrânia, sem garantias de uma vitória que afaste todas as exigências da Rússia. Por outro lado, se futuramente aceitar os termos da Rússia, ainda que numa versão suavizada — mas que implicará concessões políticas que a Ucrânia rejeitou veementemente antes da guerra —, são previsíveis sérios problemas internos. Depois dos enormes sacrifícios feitos na guerra muitos ucranianos verão tais concessões como uma capitulação humilhante. Fazer a paz pode mostrar-se uma tarefa tão árdua como resistir à invasão militar da Rússia.

 

7. Uma nota final sobre as comparações históricas que ultimamente proliferam. Num discurso em vídeo para o Parlamento britânico, efectuado a 8 de Março de 2022, Volodimir Zelenskii ecoou o discurso de Churchill em 1940, quando a Grã-Bretanha se encontrava sozinha na guerra a lutar contra a Alemanha nazi. A imagem é poderosa, mas a Ucrânia está numa situação mais parecida com a que a Finlândia enfrentou na II Guerra Mundial. Na altura, a pequena Finlândia resistiu, com bravura, à gigante União Soviética. Foi aí que nasceu o uso do cocktail Molotov como arma de resistência (o nome é uma ironia e ataque ao Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético da época, Vyacheslav Molotov — que celebrou o pacto Molotov-Ribbentrop com a Alemanha nazi). Com a persistência da guerra, a Finlândia viu-se perante um profundo dilema: continuar uma heróica resistência, mas sem perspectiva de derrotar a ameaça russa; ou negociar um compromisso político com um preço elevado, mas que podia trazer a paz e manter a independência. Nenhuma era uma boa opção, apenas uma escolha entre dois males. A Finlândia viu como mal menor a neutralidade. Veremos o que Zelenskii fará se tiver de enfrentar um “momento finlandês”.

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