TRANSPARÊNCIA
Mariana Mortágua não perde o mandato, mas atitude
“moralista” sai prejudicada
Em resposta ao PÚBLICO, o gabinete do secretário-geral da
Assembleia da República, Albino de Azevedo Soares, diz que o assunto ficou
resolvido com a devolução do montante recebido pela deputada.
Liliana Borges e
David Santiago
11 de Março de
2022, 21:03
Durante cerca de
cinco meses, Mariana Mortágua acumulou o salário que recebe enquanto
parlamentar com a remuneração pela sua participação enquanto comentadora no
programa Linhas Vermelhas da SIC Notícias. Ora, uma vez que a bloquista – à
semelhança da restante bancada parlamentar – está em regime de exclusividade, a
situação foi irregular e desobedeceu às condições do regime de exclusividade
dos deputados.
Como
justificação, Mortágua alegou desconhecimento da alteração deste regime em 2019
pela Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados. Ao PÚBLICO o
secretário-geral da Assembleia da República (AR), Albino de Azevedo Soares,
afirma que “não há razão para se abrir qualquer processo de inquérito” e afasta
a possibilidade de perda de mandato da bloquista.
“Considerando que
o assunto se encontra devidamente esclarecido entre a Assembleia da República e
a senhora deputada, não há razão para se abrir qualquer processo de inquérito”,
afirma o secretário-geral da AR, numa resposta enviada pelo seu gabinete.
A mesma resposta
reitera a informação dada na quinta-feira pelo Bloco de Esquerda e destaca que
Mariana Mortágua já está a regularizar a situação junto da AR. Ou seja, a
deputada irá devolver o valor correspondente aos 10% de remuneração extra paga
aos deputados que optam pelo regime de exclusividade parlamentar
(aproximadamente 382 euros brutos) e deixa de receber qualquer pagamento pela
sua participação no programa televisivo.
Assim, e uma vez
que as únicas sanções previstas para estes casos são a “devolução do montante
indevidamente creditado”, o assunto ficou resolvido “por iniciativa” da
deputada, considera o gabinete. “Não se vislumbra a prática de crime de
peculato ou de qualquer outro tipo, razão pela qual não será feito qualquer
reporte ao Ministério Público”, conclui.
Na base da
irregularidade protagonizada por Mortágua está a mudança das excepções
admitidas no regime de exclusividade. Até então, a participação remunerada em
programas de televisão também era permitida aos deputados neste regime. Porém,
no conjunto de alterações feitas em 2019 por um grupo de trabalho – e que
incluiu o deputado bloquista José Manuel Pureza –, só o comentário político em
imprensa escrita continuou a ser considerado compatível por ser considerado um
rendimento proveniente “de direitos de autor”. Aliás, exemplo disso é que
Mortágua já era colunista remunerada do Jornal de Notícias sem que isso
configurasse qualquer incompatibilidade.
Por oposição, a
participação regular em programas de comentário televisivo deixou de ser
considerada compatível com o exercício do mandato em regime de exclusividade
“sendo, todavia, compatíveis com o exercício do mandato, nos termos gerais”,
lê-se no relatório elaborado pelo grupo de trabalho a 13 de Fevereiro de 2020.
Caso Mortágua não
estivesse em regime de exclusividade poderia ser paga pela sua participação no
programa Linhas Vermelhas, tal como pode o socialista Pedro Delgado Alves, que
não está em regime de exclusividade. Mas uma vez que este regime é uma bandeira
do BE – em Janeiro, Pedro Filipe Soares afirmou que devia ser obrigatório para
todos os deputados – Mortágua optou por abdicar da remuneração televisiva e
manter o regime dos seus colegas de bancada.
Mortágua e o
moralismo
Se em termos
legais não há qualquer consequência para a deputada do Bloco, resta saber se,
do ponto de vista político, Mariana Mortágua pode sair beliscada, sobretudo
tendo em conta tratar-se de alguém que, dos discursos às participações em
comissões parlamentares de inquérito, sempre pautou as suas intervenções pela
defesa acérrima da lisura de comportamentos.
António Costa
Pinto admite que Mortágua “sofra as consequências” da adopção de um “modelo
excessivamente moralista”, porém o politólogo acredita que “individualmente não
ficará fragilizada, até porque não estamos em presença de um caso Robles”.
O
investigador-coordenador no Instituto de Ciências Sociais considera que “sob o
ponto de vista político, isto remete para o ambiente de polarização muito
significativo que existe nos segmentos mais salientes da elite parlamentar e
partidária”, e defende estarmos perante um “caso absolutamente menor”.
Na mesma linha,
José Adelino Maltez retira importância ao sucedido e diz que este caso “não é
uma coisa muito grave”. Para o professor jubilado de Ciência Política no ISCSP,
o problema está num regime de incompatibilidades que limita os direitos de
autor e que Maltez classifica de “normazinhas”. “Não devia ser abrangido numa
interpretação puritana da lei”, remata.
Costa Pinto
concorda, afirmando tratar-se de um regime “um pouco excessivo” e de uma
“legislação extremamente defeituosa”. “Casos como este são de longe pouco
importantes comparado com o fundamental desta legislação: evitar que os
deputados sejam capturados por grupos de interesse particulares”, conclui o
politólogo.
tp.ocilbup@segrob.anailil
Sem comentários:
Enviar um comentário