“O DL não terá efeitos retroactivos” ( !? )
OVOODOCORVO
INVESTIGAÇÃO
PÚBLICO
Governo exige real ligação a Portugal para atribuir
nacionalidade a judeus sefarditas
Presidente da República promulgou Decreto-Lei aprovado em
conselho de ministros para aumentar o controlo sobre os candidatos à
naturalização de descendentes de judeus sefarditas.
Paulo Curado
16 de Março de
2022, 6:27
Após algumas
hesitações, o Governo aprovou em conselho de ministros um Decreto-Lei (DL) que
reforça a regulamentação da Lei da Nacionalidade relativa aos descendentes de
judeus sefarditas que pretendam obter a nacionalidade e passaporte portugueses.
O diploma, que foi promulgado no passado dia 9 por Marcelo Rebelo de Sousa,
acrescenta exigências de uma ligação objectiva a Portugal por parte dos
potenciais candidatos à naturalização, segundo o PÚBLICO apurou. As novas
regras, que deverão entrar em vigor brevemente, impediriam a nacionalidade ao
oligarca russo Roman Abramovich.
O DL não terá
efeitos retroactivos, mas irá diminuir drasticamente o número de candidatos à
cidadania portuguesa. Entre outras alterações, a nova regulamentação passará a
exigir aos requerentes documentos adicionais que comprovem um real e mensurável
vínculo com o país. A herança de um imóvel em território português ou a
comprovação de visitas a Portugal ao longo da vida são algumas das medidas
adicionais. Para além disso, o processo de certificação continua a ter de ser
suportado com documentos comprovativos da descendência de judeus.
Fonte da
Presidência da República (PR) confirmou ao PÚBLICO que o DL chegou a Belém a 14
de Fevereiro e foi promulgado a 9 de Março, isto apesar de ainda não surgir no
site oficial onde constam os diplomas que têm luz verde por parte de Marcelo
Rebelo de Sousa. No dia 10 de Março o PÚBLICO já tinha questionado a PR sobre
este documento, não obtendo na altura qualquer esclarecimento.
Negócios
imobiliários
Os novos
requisitos irão reduzir substancialmente os potenciais candidatos e o Governo
passa a poder controlar melhor o processo, segundo fontes contactadas pelo
PÚBLICO. Mas a versão final do DL agora promulgada chegou a ter outra
formulação. Uma versão do diploma, de Novembro, que circulou em sítios da
internet destinados à promoção da aquisição do passaporte português, até
reforçava as competências das comunidades judaicas portuguesas a quem foi
delegada a certificação de descendentes sefarditas, a Comunidade Israelita do
Porto (CIP) e a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL).
Na versão que não
chegou a ser aprovada exigia-se aos requerentes da nacionalidade que, para além
da comprovação da descendência, tivessem comprado imóveis em Portugal, por
exemplo.
Na prática, ainda
que não para efeitos de certificação, Eliran Graedje, um dos membros da
comunidade judaica portuense já se dedicava pelo menos desde 2016 à venda de
imobiliário aos descendentes de judeus sefarditas, como o PÚBLICO revelou na
segunda parte da investigação sobre a obtenção da nacionalidade portuguesa por
Roman Abramovich, a 11 de Fevereiro.
Em Fevereiro de
2018, Graedje congratulava-se com os negócios imobiliários e os lucros obtidos
com os descendentes dos sefarditas. Num artigo publicado pelo Jornal de
Notícias, com o título “Israelitas ‘à caça’ de investimentos imobiliários no
Porto”, Eliran Graedje surge com o sócio, Nélson Bento Pereira, garantindo que
são muitos os clientes israelitas interessados em investir.
“[Os descendentes
de judeus sefarditas] Aparecem com fundos de investimento de cinco ou dez
milhões [de euros], para gastar de uma vez. Mas também particulares dispostos a
gastar 400 ou 500 mil euros num edifício”, revelou na altura Nélson Pereira,
engenheiro civil e militante do PSD. “Os judeus gostam de negociar e no Porto
podem fazer-se grandes negócios. Pelo que percebemos, em Israel ainda existe
muito a prática de aforrar. Qualquer chefe de família, aos 45 anos, já tem meio
milhão de euros, o que para nós é muito bom, mas para eles é considerado
normal”, contava o membro da direcção da CIP. Os dois sócios revelaram ainda
que a obtenção da nacionalidade tem proporcionado grande parte destes negócios.
Sem essa possibilidade, “muitos nunca investiriam no mercado português”, dizia Eliran
Graedge, antecipando mesmo que o Porto pudesse “até vir a ter um bairro judeu”
no espaço de cinco anos.
Lei abrangente
Foi em 2013 que o
Parlamento aprovou, por unanimidade, uma revisão à Lei da Nacionalidade (Lei
Orgânica n.º 1/2013, de 29 de Julho) – proposta pela então deputada Maria de
Belém Roseira, tia de Francisco de Almeida Garrett, também membro da direcção
da CIP e figura proeminente desta entidade religiosa –, que estabelecia a
possibilidade de atribuição de nacionalidade portuguesa a descendentes de
judeus sefarditas expulsos de Portugal no final do século XV. Essa
possibilidade ficou consagrada a 2 de Março de 2015, com a entrada em vigor do
DL n.º 30-A/2015.
De acordo com o
diploma, os pretendentes tinham de fazer “demonstração da tradição de pertença
a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos
objectivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma
familiar, descendência directa ou colateral” (Artigo 6.º, n.º 7). Estavam
abrangidos os interessados maiores de idade ou emancipados, que não tivessem
sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime
punível com pena de prisão igual ou superior a três anos.
Os potenciais
interessados ficavam dispensados de dois requisitos aplicados a outros cidadãos
estrangeiros, como a residência legal no território nacional há pelo menos
cinco anos ou o domínio da língua portuguesa. Uma lei abrangente que, já em
2020, o PS procurou alterar, por iniciativa de Constança Urbano de Sousa,
ex-ministra da Administração Interna e então vice-presidente da bancada
parlamentar socialista.
Cidadania
europeia
A proposta do PS
pretendia clarificar o conceito da “ligação a Portugal”, incluindo a
obrigatoriedade da residência no país por um período de dois anos para requerer
a nacionalidade. Temia-se uma desvirtuação da finalidade da lei e uma
“comercialização” da nacionalidade portuguesa, contrária aos princípios do
direito internacional e da UE na matéria. “A cidadania europeia e os direitos reconhecidos
pelo DUE [Direito da União Europeia] aos cidadãos nacionais, pressupõe que
Portugal atribua a sua nacionalidade aos que tenham com o país e, portanto, com
a UE [União Europeia] uma ligação efectiva e não meramente de conveniência”,
esclareceu em Abril de 2020 Constança Urbano de Sousa, na proposta de alteração
à Lei.
“O facto de
Portugal estar integrado na União Europeia dá à nacionalidade portuguesa uma
dimensão adicional inerente à Cidadania Europeia, permitindo a livre circulação
e direito de residência em qualquer Estado-Membro e a isenção de vistos para
entrar em cerca de 185 países do mundo. E esta é uma vantagem inegável de quem
tem um passaporte português, mas da qual também decorrem obrigações adicionais
perante estes nossos parceiros”, reforçou Constança Urbano de Sousa, num artigo
de opinião publicado no jornal PÚBLICO, em Maio de 2020.
Esta
possibilidade foi muito mal recebida pela comunidade judaica portuguesa e
internacional e fortemente contestada dentro do próprio PS pelos “históricos”
José Vera Jardim, Manuel Alegre, Alberto Martins e Maria de Belém Roseira, que
escreveram uma carta aberta publicada, também em Maio de 2020, no PÚBLICO.
“A alteração
anunciada à lei em vigor, a avançar e a ser aprovada, é uma lei de ruptura no
plano cultural e cívico. Uma ruptura com valores essenciais a que, nesta
matéria, os presidentes Mário Soares e Jorge Sampaio souberam dar voz em nome
de Portugal”, defenderam. “Não nos reconhecemos nas alterações que subvertem a
Lei de 2013.”
Investigação da
PJ
A 18 de Dezembro
do ano passado, uma investigação do PÚBLICO revelou que Roman Abramovich, um
dos principais benfeitores da CIP, tinha obtido a nacionalidade portuguesa ao
abrigo desta lei, num processo célere de seis meses e meio, iniciado a 16 de
Outubro de 2020 e concluído a 30 de Abril do ano passado. Na sequência deste
trabalho, a Procuradoria-Geral da República (PGR) avançou a meio de Janeiro com
um inquérito sobre os contornos do processo de certificação do oligarca russo.
Abramovich, tido como muito próximo de Vladimir Putin, surgiu na semana passada
na lista de sanções do Reino Unido contra personalidades ligadas ao Kremlin e,
já esta semana, foi incluído na nova actualização da lista de sanções da União
Europeia impostas em resposta à guerra da Rússia na Ucrânia.
Já na última
quinta-feira o rabino da CIP, Daniel Litvak, foi constituído arguido e detido.
Litvak foi solto na madrugada de sábado com as medidas de coação de Termo de
Identidade e Residência, apreensão de dois dos seus passaportes e apresentações
periódicas às autoridades.
Nesta operação,
desencadeada pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia
Judiciária, também foi constituído arguido Francisco de Almeida Garrett. Em
causa estão “crimes de tráfico de influência, corrupção activa, falsificação de
documentos, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e associação
criminosa”.
Com Leonete Botelho
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