OPINIÃO
Marcelino da Mata e a memória selectiva de Portugal
A democracia portuguesa criou uma história oficial e
entrincheirou-se nela. Marcelino da Mata não cabia lá dentro. Morreu
semi-desconhecido, até ao dia em que alguém tenha a coragem de sair da
trincheira para contar a sua história, como ele merecia e nós merecemos.
João Miguel
Tavares
13 de Fevereiro
de 2021, 0:00
https://www.publico.pt/2021/02/13/opiniao/opiniao/marcelino-mata-memoria-selectiva-portugal-1950421
Marcelino da Mata
morreu na quinta-feira, aos 80 anos de idade, de covid-19. Os telejornais
ignoraram a notícia. A maior parte dos portugueses não faz a menor ideia de
quem foi Marcelino da Mata. Há uma forma particular de pobreza que afecta este
país – a pobreza da nossa memória histórica, demasiado selectiva e formatada,
que conduz à ignorância generalizada sempre que falamos de factos ou de pessoas
que não encaixam na historiografia oficial do regime. Marcelino da Mata foi
colocado do lado de fora da história da democracia portuguesa, e por isso
morreu sem que o seu nome e a sua vida extraordinária fossem integrados na
memória colectiva.
Há dois anos
escrevi sobre Marcelino da Mata, o que deu origem a uma resposta de Vasco
Lourenço e a uma réplica da minha parte. Na altura recebi dezenas de mails de
leitores, a maior parte deles oriundos de antigos combatentes, alguns dos quais
tinham conhecido Marcelino da Mata na Guiné. Havia um pouco de tudo nessa
correspondência, desde gente que o considerava um herói português e relembrava
os seus feitos, até pessoas que entendiam, à semelhança de Vasco Lourenço, que
se tratava de um criminoso de guerra. Uns queriam enaltecê-lo, enquanto militar
mais condecorado do exército português; outros acolhiam a argumentação de
Lourenço, de que há “actos que deveriam enterrar-se de vez”, encontrando
virtudes no esquecimento selectivo da guerra colonial.
Quer Marcelino da Mata tenha sido um herói, quer tenha
sido um criminoso de guerra, quer tenha sido as duas coisas, o que importa é
que a sua vida e as suas acções são uma grande história
Este desejo de
esquecer é compreensível do ponto de vista pessoal, mas é obviamente
inaceitável do ponto de vista colectivo. Para a minha geração, nascida na
década de 70, e para as gerações posteriores, a guerra colonial é matéria dos
livros de História, e quer Marcelino da Mata tenha sido um herói, quer tenha
sido um criminoso de guerra, quer tenha sido (parece-me o mais provável) as duas
coisas, o que importa é que a sua vida e as suas acções, na dúzia de anos em
que andou a combater na Guiné, são uma grande história, que rompe com as
interpretações primárias dos conflitos coloniais, e que singulariza essa
complexidade. As grandes histórias existem para serem contadas e integradas no
imaginário popular.
Como se explica,
então, que Marcelino da Mata seja uma figura quase desconhecida, apenas
resgatado na hora da morte por uma breve nota da Presidência e pelo pedido do
CDS para que se decretasse luto nacional e funeral de Estado? Porque o seu
perfil é triplamente incómodo para aquilo que se impôs como a narrativa oficial
do Estado Novo, da guerra colonial, da descolonização ou das conquistas de
Abril. Marcelino da Mata foi: 1) um negro que lutou ao lado dos portugueses na
guerra colonial; 2) um herói do Estado Novo; 3) um militar barbaramente
espancado por militares de extrema-esquerda ligados ao MRPP, em Lisboa, já em
plena democracia. É um triplo desconforto, triplamente silenciado.
Aquilo que uma
sociedade adulta deveria perceber – lição essencial em tempos maniqueístas – é
que é perfeitamente possível alguém ser herói e ser vilão; um regime ser
racista e oferecer a um negro as mais altas condecorações; um guineense
preferir Portugal ao PAIGC; uma revolução libertadora torturar tão barbaramente
quanto uma ditadura; e por aí fora. A democracia portuguesa criou uma história
oficial e entrincheirou-se nela. Marcelino da Mata não cabia lá dentro. Morreu
semi-desconhecido, até ao dia em que alguém tenha a coragem de sair da
trincheira para contar a sua história, como ele merecia e nós merecemos.


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