sábado, 23 de abril de 2022

Não há por aí um dissidente comunista, só para desenjoar?

 



OPINIÃO

Não há por aí um dissidente comunista, só para desenjoar?

 

Onde estão as vozes comunistas que se opõem a esta vil interpretação da guerra da Ucrânia, e gritam “já basta”?

 

João Miguel Tavares

23 de Abril de 2022, 0:00

https://www.publico.pt/2022/04/23/opiniao/opiniao/nao-ha-ai-dissidente-comunista-so-desenjoar-2003477

 

Desde o início da guerra da Ucrânia, nós olhamos para o Partido Comunista Português com a atracção e o horror de uma imolação pelo fogo a acontecer mesmo à nossa frente. Ela repetiu-se na quinta-feira. O PCP faltou à sessão com Zelenskii. Não faltou às reacções partidárias sobre a sessão com Zelenskii. Os comunistas podiam não ter aparecido, mas fizeram questão de mostrar que a sua resiliência não é menor do que a do Batalhão Azov na siderurgia de Mariupol – apareceram. Chamemos-lhe a luxúria do martírio. A nova líder parlamentar do PCP, Paula Santos, aproximou-se dos jornalistas, abriu o jerrican, encharcou-se de gasolina, acendeu o fósforo, e durante vinte minutos foi ver arder.

 

Paula Santos não se limitou a uma breve declaração de barbaridades e equivalências obscenas, iguais a tantas outras que já ouvimos do PCP. Aumentou a parada. Respondeu às perguntas dos jornalistas com a boca em chamas, tropeçando nas palavras, mas disposta a entregar a vida por aquela causa. E aqui não há metáfora: ela está mesmo a entregar a sua vida política por aquela causa. Imagino que sonhasse vir a ser a primeira mulher do PCP a destacar-se na liderança da bancada parlamentar, como Bernardino Soares ou João Oliveira antes dela. Em vez disso, Paula Santos transformou-se na porta-voz portuguesa de Vladimir Putin durante a mais brutal agressão em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. As cicatrizes desta imolação absurda acompanhá-la-ão pela vida fora.

 

E este é o ponto que justifica a pergunta do título: onde estão, desta vez, os dissidentes do PCP? Onde estão as vozes comunistas que se opõem a esta vil interpretação da guerra da Ucrânia, e gritam “já basta”? Embora o PCP seja famoso pelas suas posições empedernidas e pelo amor à linha dura, a verdade é que sempre teve no seu interior alguém que resistisse, alguém que dissesse não. A lista dos seus dissidentes é vastíssima, e é assim desde a fundação do partido, nos anos 20 do século passado.

 

A vida do seu primeiro secretário-geral foi tão complicada que passou de comunista na década de 20 a membro da União Nacional na década de 30. Há um livro recente sobre ele: Incorrigível – A História Desconhecida de Carlos Rates, de Pedro Prostes da Fonseca. Na década de 40, deu-se o embate entre Cunhal e Júlio Fogaça em torno da Política de Transição Pacífica, que anos depois acabaria muito mal para Fogaça, acusado de “desvio de direita”. Na década de 60, foi a vez da cisão entre estalinistas e maoístas, na sequência da ruptura entre URSS e China. Na década de 80, com a Perestroika, surgiu o movimento de contestação interna denominado “grupo dos seis”, que evoluiria para a grande dissidência da Terceira Via e a debandada de centenas de militantes no início dos anos 90, alguns dos quais acabariam ministros do PS, e outros, mais jovens, transitariam para o Bloco de Esquerda.

 

O PCP nunca foi este cemitério de ideias, mesmo nos seus tempos estalinistas. Hoje é um zombie com uma cassete da Guerra Fria ligada ao sistema nervoso central

 

Esta é a história do PCP, por muito “centralismo democrático” que Cunhal tivesse imposto. Mas onde estão os dissidentes de 2022? Onde estão os comunistas revoltados? Ana Sá Lopes conseguiu desencantar uns autarcas descontentes num bom trabalho sobre o tema. Só que no espaço público não se ouve nada. Apenas intervenções de Paula Santos, editoriais do Avante! e tuítes de António Filipe. O PCP nunca foi este cemitério de ideias, mesmo nos seus tempos estalinistas. Hoje é um zombie com uma cassete da Guerra Fria ligada ao sistema nervoso central. Fascinante – mas assustador, e um pouco triste.

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