OPINIÃO
Em defesa de Emmanuel Macron
Lendo a imprensa portuguesa e ouvindo alguns comentários
nas televisões, fica por vezes a ideia de que é um grande sacrifício votar
Macron contra Le Pen. Acontece a todos.
Teresa de Sousa
24 de Abril de
2022, 0:20
https://www.publico.pt/2022/04/24/opiniao/opiniao/defesa-emmanuel-macron-2003616
1. Eu sei que
pode parecer estranho o título que escolhi para a minha coluna de hoje. Quem a
lê deseja, provavelmente tanto como eu, uma vitória de Emmanuel Macron logo à
noite. O contrário seria um desastre para a França, para a Europa e para o
Ocidente, num momento em que a guerra da Ucrânia tornaria esse desastre numa
verdadeira tragédia.
A minha questão é
outra. Lendo a imprensa portuguesa e ouvindo alguns comentários nas televisões,
fica por vezes a ideia de que é um grande sacrifício votar Macron contra Le
Pen, porque o Presidente fez pouco nos seus cinco anos de mandato ou fez mal.
Não foi “suficientemente ecologista”. Beneficiou os ricos e descurou os pobres.
É elitista e arrogante. E “neoliberal”, o supremo insulto. Por vezes, tenho a
sensação de que quem escreve estas coisas não terá acompanhado com atenção o
que aconteceu em França nos últimos cinco anos. É humano. É comum. É
compreensível. As nossas democracias vivem hoje a um ritmo alucinante em que
muitas vezes não há tempo para dar um passo atrás e reflectir. Acontece a
todos.
2. Os argumentos
que são invocados para criticar e desvalorizar Macron são, em boa parte,
aqueles que os dois extremos políticos franceses esgrimiram quase todos os dias
dos últimos cinco anos e que acabaram por dominar o debate político. Entre
Macron e os extremos, à direita e à esquerda, os partidos democráticos
tradicionais – socialistas e republicanos – ficaram sem grandes argumentos para
se afirmar. O radical Mélenchon foi progressivamente dominando a esquerda, como
se viu nos resultados da primeira volta das presidenciais. Os republicanos
deixaram-se contaminar pelas bandeiras da extrema-direita, ao ponto de termos
ouvido Michel Barnier, o homem que negociou o “Brexit” em nome da União
Europeia, admitir que, em certas circunstâncias, a lei europeia devia
subordinar-se à lei nacional. Le Pen diz isso no seu programa. Barnier sabe,
melhor do que ninguém, que isso significaria o fim da União Europeia tal como a
conhecemos.
O último dos
“insultos”, dito e redito na campanha francesa e repetido por cá, é que o
Presidente francês trabalhou para o Banco Rothschild antes de se dedicar à
política – a prova derradeira de que está ao serviço dos ricos. Terá tido um
desempenho brilhante no banco, o que lhe valeu o epíteto de “Mozart das
Finanças”. Ninguém se lembra de dizer que foi assistente de Paul Ricoeur, o
grande filósofo e sociólogo francês, de quem foi aluno. Foi quase sempre
brilhante em tudo o que fez. As duas coisas só podem pesar a favor de quem
entrou no Eliseu aos 39 anos.
Macron tem certamente muitos defeitos, como têm quase
todos os líderes políticos que conhecemos e que conseguem fazer a diferença.
Mas é também o mais europeísta de todos os Presidentes da V República e o menos
proteccionista
3. Macron chegou
ao Eliseu em 2017 com um programa reformista, sobretudo para os padrões
franceses. A França é um país sui generis, como sabemos, onde o Estado tem um
peso substancial em comparação com as outras democracias europeias. O seu
Estado Social muito generoso ainda não tinha passado pelo conjunto de reformas
que foram feitas na generalidade dos países da União Europeia, dos Nórdicos à
Alemanha, passando por Portugal. As leis laborais mantinham a mesma rigidez em
relação aos despedimentos, bem como o sistema de pensões ou o peso da
burocracia sobre a economia. Em dez anos, de 2000 a 2010, a produtividade do
trabalho em França passou de uma das mais altas da Europa para níveis muito
inferiores, deixando-se ultrapassar pela Alemanha, sobretudo a partir de 2005,
fruto das reformas levadas a cabo por um governo social-democrata alemão.
Macron conseguiu
uma reforma da legislação laboral que, não indo tão longe como pretendia,
libertou o mercado de trabalho de muitos dos seus constrangimentos. A
consequência está à vista. O desemprego em França, mesmo com a pandemia, nunca
foi tão baixo. A reforma das pensões, que prometeu, andou em bolandas durante
quase todo o seu primeiro mandato, mas é um bom exemplo da realidade francesa.
Marine Le Pen quer descer a idade da reforma dos actuais 62 anos (a mais baixa
da Europa) para os 60 nas profissões mais duras. Macron queria subi-la para os
65 de forma faseada até 2030. Convém acrescentar que a França goza de uma das
esperanças de vida mais elevadas do mundo – 82 anos. A candidata da extrema-direita
fez desta questão uma das suas bandeiras, obrigando Macron a considerar a
hipótese dos 64 anos, mesmo que não tenha desistido de explicar que não é só
uma questão de esperança de vida é também uma questão de financiamento e de
carga adicional para as gerações futuras.
Macron quis fazer
da França um país de start-ups e de “unicórnios” (empresas tecnológicas que
valem mais de mil milhões de dólares), insistindo em que as indústrias
tradicionais ou até alguns serviços de excelência seriam rapidamente ultrapassados
por uma economia moldada pelo digital. Criou vantagens fiscais para essas
empresas. Fixou a meta dos 25 “unicórnios” em 2025, que já foi ultrapassada. E,
evidentemente, ganhou as eleições de 2017 defendendo uma França aberta ao mundo
e à globalização, sem medo de competir nos mercados internacionais. Outro
“pecado capital” num país que ainda hoje se vê, alternadamente, como o centro
do universo ou como uma potência decadente e infeliz.
Nada do que
Macron defendeu ou as reformas que fez o afasta dos seus parceiros europeus
sociais-democratas. Aliás, uma recente sondagem em França indicava que 39% dos
franceses o consideravam politicamente de “centro-esquerda” e 51% de
centro-direita.
4. A acusação
mais generalizada que lhe é feita em Portugal, até pelos que o defendem, é a de
ser “arrogante”, de nunca abandonar totalmente a sua atitude do “melhor aluno
da turma”. Pode ser verdade e alimenta as acusações de elitismo que lhe são
sistematicamente feitas pelos extremos políticos. Afasta-o da gente comum. Mas
quando, em 2019, teve de enfrentar os “gilets jaunes”, vimo-lo sair do Eliseu,
percorrer o país de Norte a Sul, ouvindo todos aqueles que o criticavam e
discutindo com eles as suas queixas. Convém também não confundir este movimento
que espalhou a violência em Paris e muitas outras cidades com uma revolta dos
mais pobres. Foi uma parte da classe média que veio para a rua, deixando-se
levar por slogans anti-semitas e anti-imigrantes profundamente reaccionários.
Talvez por isso, apenas conquistou o total apoio de Le Pen. O Presidente voltou
agora ao terreno, nunca virando a cara a um insulto ou a uma crítica,
defendendo as suas ideias com convicção, sem grandes cedências às conveniências
eleitorais.
Macron tem
certamente muitos defeitos, como têm quase todos os líderes políticos que
conhecemos e que conseguem fazer a diferença. É demasiado voluntarista e
demasiado volúvel, dizem alguns dos líderes europeus que mais conviveram com
ele. Criou uma constante tensão entre o Eliseu e o Quai d’Orsay, com as suas
iniciativas internacionais, por vezes pouco prudentes. Não ouviu as
advertências dos diplomatas franceses à sua política de abertura ao diálogo com
Vladimir Putin, aliás de mão dada com Angela Merkel. Tentou tirar proveito do
“Brexit” a favor da França, radicalizando demasiado o discurso contra Londres e
desvalorizando em excesso o impacto negativo da saída do Reino Unido da União.
Talvez tenha ido longe demais quando disse, numa célebre entrevista à
Economist, que a NATO estava “em morte cerebral”. É polémico, ambicioso,
voluntarista. Mas é também o mais europeísta de todos os Presidentes da V
República e o menos proteccionista, mesmo que a sua ideia de “soberania
europeia” possa ser discutível.
A principal lição que talvez possamos tirar destas eleições
é a sua similitude com o que estamos a ver há já bastante tempo nos Estados
Unidos – a criação de dois “países” distintos que progressivamente deixam de
ter pontes entre si. A França corre o mesmo risco
5. As sondagens
indicam que é na faixa etária acima dos 60 anos que tem mais apoios. Se
pensarmos dois minutos, o facto não tem nada de anormal. É a geração dos
baby-boomers e do Maio de 68. Que nunca, mas nunca, votaria Le Pen e que ficou
vacinada contra os “Mélenchon” desta vida. Muitos jovens que votaram no
candidato da França Insubmissa dizem que não conseguem escolher “entre a peste
e a cólera”. Alguém lhes devia explicar que esse foi o “slogan” do Partido
Comunista alemão antes da II Guerra, quando não quis escolher entre o Partido
Nacional-Socialista de Hitler e os sociais-democratas. Não será certamente
Mélenchon a explicar-lhes, porque a sua única mensagem relevante antes da
segunda volta foi qualquer coisa como isto: não importa quem ganha as
presidenciais, desde que, nas legislativas de Junho, me elejam
primeiro-ministro. Como se isso fosse possível, a não ser na sua mente
megalómana.
A principal lição
que talvez possamos tirar destas eleições é a sua similitude com o que estamos
a ver há já bastante tempo nos Estados Unidos, com as consequências
profundamente negativas que conhecemos – a criação de dois “países” distintos
que progressivamente deixam de ter pontes entre si. A França corre o
mesmo risco.
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