quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Maiores bancos portugueses recusaram apoio à Dielmar

 


EMPRESAS

Maiores bancos portugueses recusaram apoio à Dielmar

 

Banca nacional não quis emprestar sem garantias e estas não podiam ser dadas pelo Estado porque a empresa estava desde 2019 sem capital próprio suficiente.

 

Victor Ferreira

3 de Agosto de 2021, 21:31

https://www.publico.pt/2021/08/03/economia/noticia/maiores-bancos-portugueses-recusaram-apoio-dielmar-1972904

 

A insolvência da Dielmar, em Alcains (Castelo Branco) é uma bomba-relógio na mão de mais de 300 trabalhadores que se arriscam a perder o emprego, se o caminho for a liquidação. Uma das últimas tentativas para evitar esta situação foi pedir ajuda à banca. Mas os quatro maiores bancos portugueses recusaram, porque já era tarde de mais.

 

Em 2020, já em plena pandemia, a empresa viu-se afastada dos apoios das linhas covid criadas pelo Estado. E bem precisava delas. O volume de negócios estava a cair drasticamente, de nove milhões de euros em 2019 para três milhões em 2020. O que agravava ainda mais o desequilíbrio financeiro da Dielmar que, no final de 2019, já violava o artigo 35 do Código das Sociedades Comerciais, ou seja, o capital próprio era inferior a metade do capital social.

 

As empresas nesta situação são consideradas em dificuldade e, pelas regras europeias, não poderiam ser ajudadas pelos Estados. Por isso, o Estado português não podia emitir garantias para novos créditos da Dielmar enquanto durasse a pandemia. E sem garantias públicas, nenhum dos principais bancos nacionais acedeu a ajudar. Novo Banco, BCP, Caixa Geral de Depósitos e Santander foram todos contactados. E todos fecharam a porta, segundo apurou o PÚBLICO.

 

Em certas situações de incumprimento do referido artigo 35.º, as empresas reduzem o capital social para cumprir o rácio. Mas neste caso não era possível. A abordagem a investidores, que fora feita com ajuda do Estado como contou esta segunda-feira o ministro Siza Vieira, não deu frutos. Algumas sociedades de capital de risco veriam a Dielmar como um projecto de valor negativo.

 

Nas contas dos últimos dez anos, estava tudo abaixo de zero. O resultado operacional (EBITDA), o dinheiro gerado pelas operações correntes da empresa, foi negativo mesmo no melhor ano da década: em 2018, foi de menos 250 mil euros. Tal resultado piorou em 2019 e 2020, com um EBITDA (resultados antes de impostos, juros, depreciações e amortizações) negativo de 790 mil e 2,5 milhões, respectivamente.

 

Isto significava que o mero funcionamento corrente e normal (como em 2018 ou 2019) era insuficiente para manter as contas positivas. Uns analistas apontaram para um peso excessivo da estrutura de custos, outros viam uma estratégia comercial errada que gerava um problema de receita.

 

Seja como for, a administração da empresa, liderada pela família Rafael, foi mantendo o rumo que entendia. Nos contactos que o PÚBLICO fez sobre este assunto, foi sendo referida a capacidade de Ana Paula Rafael, rosto principal da empresa, de estabelecer e manter relações privilegiadas com altas figuras nacionais de diferentes círculos.

 

Amiga do actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Paula Rafael vivia e trabalhava no interior do país mas estava mais perto do poder do que a maioria dos empresários do litoral. Muitas figuras influentes passaram, ao longo dos anos, pelo famoso camarote da Dielmar no Estádio da Luz.

 

Aos olhos mais desatentos, a Dielmar era uma marca de prestígio, o alfaiate do Benfica, das estrelas de televisão ou da selecção nacional de futebol que ganhou o Euro 2016. Mas quem a acompanhava sabia que era um poço de problemas. Nunca gerou dinheiro para investir na modernização (a última injecção pública desapareceu quase logo na banca), concorria num mercado povoado por marcas de escala internacional (como a Massimo Dutti) e competia, sem ter essa escala além-fronteiras, num mercado nacional exíguo, nas mesmas ruas e com preços mais caros. 

 

O histórico de prejuízos vale mil palavras. Em 2011, 747 mil euros. Em 2012, 1,7 milhões. Em 2013, 700 mil. Em 2014, 2015 e 2016 foram 976 mil, 594 mil e 1,57 milhões, respectivamente. Em 2017 voltou a ser na ordem dos 700 mil, em 2018 aproximou-se novamente do milhão, fasquia ultrapassada tanto em 2019 como 2020. 

 

Ou seja, quando o Estado mete dinheiro na Dielmar pela última vez, algures entre 2017 e 2018, já a empresa levava sete a oito anos consecutivos de prejuízos. Mesmo assim, e apesar de já deter cerca de 30% do capital sem conseguir mudanças, naquela época é decidido que o Fundo Imobiliário Especial de Apoio a Empresas (FIEAE), criado em 2009 num dos governos de Sócrates, deveria entrar com 2,5 milhões de euros. 

 

Este fundo, cuja existência tinha sido renovada em 2016 por mais quatro anos pelo então secretário de Estado João Vasconcelos, falecido em 2019, fica com o património imobiliário da Dielmar, arrendando-o “com opção e obrigação de compra à própria empresa”. As regras do fundo, por onde já passou a actual ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, era o de apoiar empresas economicamente viáveis. Apesar de naquela altura já haver avaliações negativas sobre a viabilidade da Dielmar, o investimento avançou durante o consulado de Ana Teresa Lehmann na secretaria de Estado da Indústria.

 

"Gestão muito pouco clara"

Em troca, o Estado exigiu uma reestruturação operacional e de gestão que não aconteceu. Quem o disse foi o actual ministro da Economia. Na segunda-feira, Pedro Siza Vieira seguiu o guião habitual e mostrou preocupação. Mas o governante saudado como “ministro das empresas” pôs de lado o politicamente correcto, individualizando abertamente a “gestão muito pouco clara” de uma empresa. Mais: numa intervenção de cerca de oito minutos disse duas vezes que o dinheiro do Estado “não serve para ajudar empresários”. E avisou que provavelmente o Estado não recuperaria os oito milhões que meteu na Dielmar em dez anos.

 

O tom único desta intervenção ganhou ainda mais destaque com o comunicado que se lhe seguiu, emitido pelo ministério. Todo ele, em tom de desmentido ao comunicado da administração da Dielmar, que horas antes dissera que a insolvência era culpa da pandemia. O comunicado revelava as dívidas da empresa (10,3 milhões à banca, Segurança Social, fisco e fornecedores). Alegava que um dos fundos decidiu desinvestir em 2020 – o que, apurou o PÚBLICO, não aconteceu já que a opção de compra não foi concretizada por falta de dinheiro do accionista principal. Dizia ainda que o Governo soubera da notícia pela comunicação social.

 

No entanto, o executivo sabia bem dos problemas: como o PÚBLICO confirmou, muitos técnicos e políticos estavam cientes do caminho errado da Dielmar e, nos últimos dois anos, viam a derrocada como inevitável. Para esses, era apenas uma questão de tempo.

 

Para o PS, o pedido de insolvência a um mês e meio de distância das próximas eleições autárquicas pode ser um desenvolvimento preocupante. Os socialistas mandam na Câmara de Castelo Branco, com maioria absoluta, desde 1997. E embora o Governo PSD-CDS também tenha prolongado o FIEAE no seu mandato, foram governos do PS que, na última década, criaram e alimentaram aquele fundo e outro, o FACCE, que financiaram a Dielmar.

 

Em Castelo Branco, a população local pode, por outro lado, olhar para essa factura como uma contribuição nacional para haver indústria fora dos grandes centros, uma espécie de compensação pela interioridade.

 

Para alguns observadores, a Dielmar é agora usada como exemplo do risco sistémico da pandemia sobre o têxtil e vestuário. Mas a Dielmar não é isso, na perspectiva de quem seguiu o seu rumo de perto. Despedimentos e encerramentos nestes sectores estão previstos pelas associações sectoriais pelo menos desde 2018 e a pandemia não entrava nessas previsões. Se a covid tem culpa é a de expor as fragilidades que sempre estiveram à vista, tanto na Dielmar como na intervenção estatal, acreditam.

 

tp.ocilbup@arierrefov

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